terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

RELATO DE UMA VISITA AO PINHEIRINHO


   O relato que segue foi colhido do facebook. É de Murilo Muraah, que não conheço pessoal ou virtualmente.






No
domingo de carnaval tive a oportunidade de ir pessoalmente a um dos
alojamentos para onde foram levados os moradores de Pinheirinho. Antes
de falar sobre o que vivi por lá, preciso falar de como essa simples
decisão de ver de perto e tentar entender o que aconteceu com eles gerou
medo e desconfiança em pessoas próximas. Cada testemunho de medo era
uma punhalada a mais no peito, porque onde eu enxergava
pessoas, alguém enxergava ligações partidárias, onde eu enxergava seres
humanos, alguém enxergava movimentos sociais, onde eu enxergava homens,
mulheres e crianças, alguém enxergava lideranças disso ou daquilo,
enxergava bandidos, aproveitadores ou sei lá o que mais enxergavam. É
triste ver esse processo de desumanização tão enraizado entre nós,
parece que cada vez mais vamos nos tornando incapazes de enxergar o ser
humano como ele é, não como aparenta ser a partir de uma visão limitada,
mesquinha, interesseira, padronizada. Só me resta convidar a todos a
irem até lá também, pra conversar com as pessoas, ver, ouvir, cheirar,
sentir o que as rodeia. Talvez o contato humano quebre a barreira dessa
desumanização que está presente nas páginas dos jornais, na TV, na
internet. Quanto aos partidos, aos movimentos, às lideranças, não me
meto nessas guerras, pois sei que de todos os lados tem gente disposta a
colocar os próprios interesses acima dos seres humanos.

Seres
humanos... Não me canso de falar! E na visita ao alojamento do Vale do
Sol, foram seres humanos que encontrei. É inexplicável e pode parecer
demagogia, mas a verdade é que desde o instante que cheguei lá,
acompanhado de um grupo de voluntários, me senti tranquilo, me senti em
casa. Eles ali, após perderem suas casas, vivendo espalhados num ginásio
e num campo de bocha, fizeram com que eu me sentisse em casa... Havia
tristeza, é claro, como havia perplexidade, urgência, mas não desespero.
Havia, acima de tudo, respeito e dignidade. A cada doação entregue, a
cada doação devolvida (sim, recebi roupas de volta pois não serviriam
àquela pessoa, assim poderíamos entregar para alguém que de fato fosse
utilizar).

Ouvi um pedido simples, um rapaz queria uma bermuda e
uma camiseta para que pudesse tomar banho e colocar roupas limpas. Ele
veio até mim assim que cheguei com o grupo de voluntários e deixou claro
que era só isso que precisava, que não ia pegar nada mais. Um outro
também pediu apenas uma bermuda e livros, me disse serem fundamentais
para manter a mente sã naquela situação! Entre as doações que estavam no
meu carro, nenhuma bermuda masculina. Pedi desculpas aos dois, que
trataram de agradecer pelo que estávamos fazendo, cheios de bom humor
mesmo vivendo um momento tão delicado de suas vidas. Livros, ainda bem,
tinham alguns! Ele comemorou ao achar um livro do Machado de Assis, foi
organizando os livros e acabou sendo nomeado extra-oficialmente o novo
bibliotecário de Pinheirinho. Foi com ele, o Sr. Faria, que conversei
sobre livros, mas também sobre como estava a vida ali dentro, como havia
sido o processo de reintegração, qual era a visão daquelas pessoas a
respeito de tudo o que estava acontecendo. Ele fez questão de andar
comigo pelo alojamento e me contar sobre como estava o dia-a-dia no
local. Me mostrou o osso da face afundado e a costela quebrada durante a
ação policial, falou com orgulho da ação pacífica da qual participou
antes da reintegração, quando entregou, junto com um grupo de moradores
do Pinheirinho, uma carta ao Alckmin em Campos do Jordão.


Outros moradores me contaram como, além de serem expulsos das próprias
casas, estão sendo jogados de um alojamento para o outro. Ontem fiquei
sabendo que o próprio alojamento do Vale do Sol que visitei foi
esvaziado. Me contaram também que o auxílio-aluguel de R$500,00 não é
suficiente para alugar nada, e mesmo que fosse, de que adiantaria ter
uma casa sem nada dentro, já que tudo o que eles tinham em suas casas
foi destruído? Outro problema, o auxílio é válido por 6 meses, mas
muitos dos desalojados perderam o emprego com esse caos que foi
instaurado pelos nossos governantes e nossa “justiça” (e não causado por
um Tsunami, um furacão, ainda que o efeito tenha sido o mesmo). Como
esperar que pessoas que perderam tudo consigam arcar com os custos de um
aluguel em tão pouco tempo?

Há mesmo uma preocupação
constante, mas há também esperança. Um rapaz disse estar tirando forças
do episódio para construir uma vida melhor. Falou que estava acomodado
com o padrão de vida que tinha, mas que agora só pensa em trabalhar pra
recuperar tudo, mas quer também arrumar um emprego melhor pra conquistar
coisas que ele não tinha. Vivi também a experiência de me aproximar de
algumas das crianças e ver, em todas, uma força inexplicável. Era nítido
que estavam em condições de saúde e higiene precárias, mas ainda assim
sorriam, brincavam, corriam.

Infelizmente, não vi essa mesma
força nos animais. Quase fui mordido por um cachorro bastante assustado
quando fui fazer carinho nele. Um outro permitiu que eu me aproximasse,
mas tremia muito enquanto eu tentava brincar com ele. De todos os que eu
conheci naquele dia, foi nesse cachorro que vi os olhos mais tristes.


É mesmo grande a força das pessoas de lá, gente que, invariavelmente,
só quer uma coisa, e ouvi isso muitas vezes. Não querem dinheiro do
governo, não querem auxílio-aluguel, nem bolsa isso ou bolsa aquilo. Só
querem o que já tinham e que lhes foi tirado: uma casa pra morar. Alguns
ainda fizeram questão de me convidar para ir até suas casas assim que
tiverem uma. Ali passei algumas horas entre amigos que ainda não
conhecia, entre pessoas que tem muito pra ensinar. Passei alguns
instantes entre seres humanos, distante desse mundo gelado das opiniões
padronizadas, incapazes de ver a imensa insensatez que é a defesa de
qualquer interesse acima do bem estar de um semelhante.

Obrigado Carmen Sampaio,
mulher de força gigantesca que organiza as doações, mobiliza os
voluntários, está presente em todas as visitas aos alojamentos... Mesmo
sem nunca ter vivido lá, virou a cara e o coração de Pinheirinho! Força a
todos os voluntários, a todos que se sensibilizaram e não aceitaram
ficar calados! Força aos moradores de Pinheirinho!

Pinheirinho
existe! Tratores colocaram um bairro com suas casas abaixo, mas não
derrubaram a força e a união destes SERES HUMANOS!



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2 comentários:

  1. Diz Larrosa: "A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara" Ir até o abrigo, ver o Pinheirinho, foi uma experiência.

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  2. Caro Marcio,

    Li sua entrevista no site pragmatismo politico e outras intervenções suas pela internet sobre o caso do Pinheirinho.
    Eu sou antropólogo da Unicamp, formado pela Usp, e dediquei os últimos quatro anos estudando o acampamento. Também fiquei inconformado com a truculência e ilegalidade da ação.
    Em todo o caso, percebi que você tem documentos que atestam a inobservância das leis no caso.
    Eu gostaria de saber se eu poderia ter acesso a tais documentos e como isso poderia ser feito.
    Eu estou produzindo um artigo para uma revista de antropologia e tenho agendado duas palestras sobre o tema na Ufscar e na Usp (essa ainda por confirmar) e gostaria de focar-me também sobre essa questão
    cordialmente
    Inácio Dias de Andrade

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