Segue a segunda peça da denúncia do Ministério Público Federal contra Carlos Brilhante Ustra e Dirceu Gravina.
(Peço que relevem um ou outro truncamento da edição. O arquivo original estava em PDF e foi convertido)
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo
EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA ____ VARA CRIMINAL DA
SUBSEÇÃO
JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO.
Denúncia n.o 31.107/2012
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores
da República
infra-assinados, vem respeitosamente à presença de Vossa
Excelência ajuizar
a presente
DENÚNCIA
em face de
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República em São Paulo
CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA (à época do início da execução
conhecido
como “Dr. Tibiriçá”), brasileiro, militar reformado, portador da cédula de
identidade XXXXXXXX, inscrito no CPF/MF sob o número XXXXXXXXX, filho de
Célio Martins Ustra e Cacilda Brilhante Ustra, nascido em Santa Maria – RS,
em
28 de julho de 1932, o qual poderá ser encontrado no seguinte endereço
constante dos autos: XXXXXXXXXXXXXXXXXX; e
DIRCEU GRAVINA (à época do início da execução conhecido como “JC” ou
“Jesus Cristo”), brasileiro, delegado de Polícia Civil do Estado de São
Paulo,
portador da cédula de identidade RG XXXXXXXX, inscrito no CPF/MF sob
o
número XXXXXXXXX, filho de Vito Maria Gravina e Dinorah Melchiori Gravina,
nascido em São Paulo – SP, em 26 de novembro de 1948, o qual poderá ser
encontrado em um dos seguintes endereços constantes dos autos: XXXXXXXXX;
pela prática da seguinte conduta criminosa:
Consta dos inclusos autos do procedimento criminal de
número
1.34.001.001785/2009-31 que, desde o dia 06 de maio de 1971 até a
presente
data, nesta cidade e subseção judiciária, os denunciados CARLOS
ALBERTO
BRILHANTE USTRA e DIRCEU GRAVINA, em contexto de ataque
estatal generalizado
e sistemático contra a população civil – com pleno
conhecimento das
circunstâncias deste ataque –, previamente ajustados e
mediante unidade de
desígnios entre si e com outros agentes estatais ainda não
totalmente
identificados, privam ilegalmente a vítima Aluízio Palhano Pedreira
Ferreira1 de sua liberdade, mediante sequestro.
1 Em documentos oficiais e depoimentos constam também as grafias: Aloísio
Palhano e Aloysio
Palhano.
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Consta ainda que Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, em
razão da natureza
ilícita da detenção e dos maus-tratos provocados pelo
denunciado DIRCEU
GRAVINA, sob o comando e aquiescência do denunciado
CARLOS ALBERTO BRILHANTE
USTRA, padeceu de gravíssimo sofrimento
físico e moral.
1. Materialidade do crime de sequestro
Segundo se apurou, a vítima
Aluízio Palhano, no período
anterior à deposição do presidente eleito João
Goulart, era um dos principais
sindicalistas do país, tendo ocupado as
posições de presidente do Sindicato dos
Bancários do Rio de Janeiro,
presidente da Confederação Nacional dos Bancários
e Vice-Presidente da
antiga Central Geral dos Trabalhadores – CGT2.
Logo após o golpe de Estado de 1964, os direitos políticos
da vítima
foram cassados pelo “Comando Supremo da Revolução” através do Ato
Institucional nº 13. Em 06 de outubro do mesmo ano, a vítima foi
sumariamente
exonerada do cargo que ocupava no Banco do Brasil, por ato do
Presidente da
República4.
Em razão das perseguições políticas sofridas, a vítima
exilou-se em Cuba,
onde permaneceu até o final do ano de 1970. Como revela a
leitura dos
documentos relacionados a Aluizio Palhano armazenados em arquivos
públicos,
as atividades da vítima eram vigiadas de perto pelos órgãos de
repressão
política desde o ano de seu exílio.
2 Fls. 144 dos autos.
3 Fls. 347 dos autos.
4 Fls. 350-351 dos autos.
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Corroboram esta afirmação os seguintes elementos de
convicção, dentre outros constantes dos autos:
a) Informe Confidencial no 2 PM/PM-606/3-77, da Polícia Militar do
Estado
de São Paulo, no qual há o registro de que, em 05 de julho
de 1966, a
DOPS/GB estava diligenciando no sentido de prender
Aluísio Palhano,
articulador de “um plano insurrecional armado
contra o regime (...) de
acordo com a orientação firmada na
recente Conferência Tricontinental de
Havana”5;
b) Informação fornecida pelo Departamento de Policia Federal,
datada de
05 de janeiro de 1970, em resposta à solicitação “P.B.
no 160/CO/69”, na
qual a vítima é citada em uma “relação dos
brasileiros que viajam
frequentemente para Cuba”6;
c) Relatório Especial de Informações no 01/70, datado de 10 de
novembro
de 1970, redigido pelo Centro de Informações do
Exército e difundido ao 2º
Comando do Exército em São Paulo
(onde estava lotado o denunciado USTRA).
Elaborado a partir da
análise da documentação apreendida no “aparelho”7 de
Joaquim
Câmara Ferreira, o relatório contem o seguinte parágrafo:
“Existem elementos terroristas banidos prontos para o retorno em
fins de
novembro, dependendo da remessa, para Cuba, da
documentação necessária.
Sobre o roteiro para a volta, há
referências específicas ao Uruguai e
Paraguai. Alguns desses
elementos já estariam no Brasil. É também citado
Aloísio Palhano,
que há tempo se encontrava em Cuba, o qual já se ligou com
Carlos Lamarca, em busca de contato com a ALN.” No mesmo
5 Fls. 584.
6 Fls. 401 dos autos.
7 Termo constante do documento original, usado na época para designar o
local de esconderijo
dos dissidentes políticos do regime.
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relatório, o nome de Aluízio Palhano consta da “relação de nomes
e
codinomes citados nos diversos documentos apreendidos no
aparelho de
‘Toledo’ [Joaquim Câmara Ferreira], acrescido da
seguinte observação:
“Esteve em Cuba. Vinha para o Brasil. É da
VPR.”8;
d) Termo de interrogatório de Alípio Cristiano de Freitas ao DOPS,
datado
de 30 de novembro de 1970. Segundo consta do
interrogatório, Alípio
mencionou ter encontrado, durante sua
permanência em Cuba, “Aloísio Palhano,
presidente da Federação
dos Bancário em 1964.” No mesmo termo de
interrogatório, Alípio
menciona as testemunhas Altino Rodrigues Dantas Filho
e Lenira
Machado, detidos no mesmo mês que Aluízio9;
e) Informe confidencial datado de 05 de janeiro de 1971, pelo qual
o Ministério da Aeronáutica difundiu ao 2º Exército, e aos demais
órgãos
envolvidos no sistema de repressão política, documento
cujo assunto era a
“presença de subversivos brasileiros em Cuba”,
listando, dentre outros, os
nomes de Aloísio Palhano e José
Anselmo dos Santos, o “Cabo Anselmo”10;
f) Difusão, ao 2º Exército/SP e demais órgãos envolvidos na
repressão
política, datada de 12 de fevereiro de 1971, do
depoimento de Edson Lourival
Reis de Menezes, “detido em Belo
Horizonte, em setembro de 1970”, no qual há
a referência a
encontros da testemunha com Palhano, em Cuba, no ano de
196911;
8 Fls. 585 dos autos.
9 Fls. 332-337 dos autos.
10 Fls. 352 dos
autos.
11 Fls. 586-589 dos autos.
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g) Informação secreta nº 80/SNI/ASP/1971, de 10 de março de
1971, a
respeito da “atuação dos exilados, cassados, banidos, ou
punidos pela
Revolução, no exterior e sua vinculação a processos
subversivos de âmbito
interno”. Segundo a informação, “ao
retornarem [do congresso de Cuba] em ago
67, Aloysio Palhano e
Carlos Marighella, antes de chegarem ao Brasil,
passaram por
Montevidéu, onde mantiveram contatos com Brizola. Ficou então
acertado que o Comando Nacional revolucionário deveria se
deslocar para
São Paulo, onde iniciaram a estruturação de frentes
de luta, contando com o
apoio de líderes sindicais e estudantis
filiados à UNE. Tiveram início,
então, as atividades terroristas em
São Paulo e outros Estados, com a
criação de organizações sob a
inspiração de Carlos Marighella.”12.
O nome e fotografia da vítima constam também de
comunicado do 2º Exército
difundido ao DOI/CODI/SP, no qual é feita referência à
participação de
Aluízio Palhano e outras 185 pessoas em cursos de guerrilha
ministrados em
Cuba. Segundo o mesmo comunicado, a referência à participação
de um suspeito
em um “Curso de Guerrilha em Cuba” deveria ser considerado um
“indício
importante para a caracterização da periculosidade de um terrorista”13.
No final do ano de 1970, a vítima retornou de Cuba para a
cidade de São
Paulo, onde passou a viver na clandestinidade, atuando como
ponto de contato
da organização Vanguarda Popular Revolucionária – VPR,
fortemente combatida
pelos órgãos da repressão política, inclusive por possuir
Carlos Lamarca
dentre seus membros.
12 Fls. 590-591 dos autos.
13 Fls. 373 dos autos.
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Naquele tempo, segundo registros históricos14, os
dissidentes políticos
que haviam se engajado na luta armada estavam, em sua
maioria, presos (cerca
de quinhentos dissidentes) ou exilados; apenas cem viviam
clandestinamente
nos centros urbanos brasileiros, correndo o risco de serem
arbitrariamente
detidos e levados para estabelecimentos de repressão política tais
como
aquele em que operavam os denunciados.
Logo em dezembro de 1970, a VPR perdeu Edson Neves
Quaresma e Yoshitane
Fujimori, ambos mortos por agentes da equipe de Busca e
Apreensão do
DOI-CODI-SP15. Segundo declaração do denunciado USTRA, o
automóvel onde os
dois estavam (Quaresma e Fujimori) foi apreendido por ordem
sua, levado à
sede do DOI-CODI-SP e minuciosamente revistado. “No seu interior
encontramos
muitas armas, munições, códigos e cifras para comunicação com o
exterior...”, afirmou USTRA16.
Com a morte de Yoshitane Fujimori e Edson Neves
Quaresma, a militância da
VPR em São Paulo ficou praticamente reduzida a José
Anselmo dos Santos, o
“Cabo Anselmo” (que havia chegado a São Paulo vindo
de Cuba em setembro de
197017), e a vítima Aluízio Palhano, que aportou em São
Paulo possivelmente
dois meses depois. Carlos Lamarca, Inês Etienne Romeu e
outros dirigentes da
organização residiam no Rio de Janeiro e em outros Estados.
14 Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada, São Paulo, Companhia das Letras,
2002, p.. 337.
15 Fls. 592 dos autos e Marco Aurélio Borba, Cabo Anselmo: a
luta armada ferida por dentro, São
Paulo, Global, p. 40.
16 Carlos
Alberto Brilhante Ustra, Rompendo o Silêncio: OBAN DOI/CODI 29 Set 70-23 jan 74,
Brasília, Editerra, 1987, p. 145.
17 Percival de Souza, Eu, Cabo Anselmo,
São Paulo, Globo, 1999, pp. 141-142. Segundo
Anselmo, em São Paulo suas
atividades se restringiram a aguardar a comunicação dos dirigentes
da VPR.
Seu contato principal era com Edson Quaresma, que logo no primeiro encontro
comunicou a morte de Francisco Boêmio, outro militante da organização.
Depois, Anselmo afirma
que alugou um quarto numa pensão, e que passava os
dias isolado.
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De acordo com registros históricos, a VPR na data de início dos fatos não
chegava a somar cinquenta quadros18.
Segundo as declarações prestadas por José Anselmo dos
Santos à época,
localizadas no arquivo do DOPS/SP:
“Em junho ou julho de 1970, vieram José Maria e Quaresma, [que]
deviam
preparar as condições para receber-nos. (...) Corria o mês
de novembro,
quando se deu a morte de Toledo, da ALN, e pelos
documentos publicados
soubemos que Palhano estava chegando.
Efetivamente Quaresma recebeu-o e
fez-me contatar com ele em
fins de novembro (...)”19
O relato de José Anselmo dos Santos foi posteriormente
completado em
depoimento por ele prestado ao jornalista Percival de Souza:
“[Após a morte de Fujimori e Quaresma], ficamos, eu e o Aloísio
Palhano,
sem contato com a organização. (...) Sem contato, com
pouco dinheiro para
sobreviver, viajamos ao Rio de Janeiro, onde
o Aloísio tinha uma irmã. Ficamos hospedados no apartamento
dela, em
Ipanema, e a partir daí saímos de novo em busca de
contatos, usando antigos
relacionamentos confiáveis. (...) De volta
do Rio, eu e o Aloísio passamos a
contatar também o pessoal da
organização de Marighella. (...)20
18
Gaspari, A Ditadura Escancarada, op. cit., p. 338.
19 Citado em Nilmário
Miranda e Carlos Tibúrcio, Dos Filhos deste Solo, São Paulo, Perseu
Abramo,
2008, p. 343-344. No mesmo sentido é o depoimento de José Anselmo dos Santos ao
jornalista Octávio Ribeiro: “Depois do encontro com Lamarca é que chegou o
Aluísio Palhano. Nós
perdemos o contato com a VPR, e fomos de São Paulo para
o Rio de Janeiro, onde o Palhano
teria condições de reatar os contatos.”
(Octávio Ribeiro, Por que eu traí: confissões de Cabo
Anselmo, São Paulo,
Global, 1984, p. 62).
20 Percival de Souza, Eu, Cabo Anselmo, op. cit., p.
163.
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A dissidente da mesma organização, Inês Etienne Romeu,
em relatório
apresentado ao Conselho Federal da OAB em 18 de setembro de
1971, descreve
os seguintes eventos que imediatamente antecederam o
sequestro da vítima
Aluízio Palhano:
“Fui presa no dia 05 de maio de 1971, em São Paulo, na Avenida
Santo
Amaro (...), às 09 horas da manhã, por agentes
comandados pelo Delegado
Sérgio Paranhos Fleury. Estava em
companhia de um velho camponês, de
codinome “Primo”, com
quem tinha encontro marcado desde abril. Assistiu
impassível à
minha prisão, sem ser molestado.
Levada para o DEOPS,
iniciou-se o interrogatório. O camponês,
que era da região de Imperatriz, já
havia denunciado um
encontro marcado entre ele e José Raimundo da Costa, no
qual
compareceria também Palhano, ex-líder dos bancários do Rio
de
Janeiro, para o dia seguinte. Confirmei a informação e disse
que desde o dia
10 de março deste ano estava desligada do
movimento e me preparava para
deixar o país. Em seguida, fui
levada à sala de torturas, onde me colocaram
no ‘pau de arara’ e
me espancaram barbaramente. Foram aplicados choques
elétricos na cabeça, pés e mãos. Queriam conhecer o meu
endereço na
Guanabara, mas consegui, apesar de tudo, ocultá-lo,
para proteger uma pessoa
que lá se encontrava.”21
Levada em seguida ao famigerado centro ilegal de torturas
conhecido como
“Casa de Petrópolis”, Inês Etienne Romeu prossegue afirmando
o seguinte:
21 Fls. 165-v dos autos.
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“Chegando ao local, uma casa de fino acabamento, fui colocada
numa cama
de campanha, cuja roupa estava marcada com as
iniciais do C.I.E. (Centro de
Informação do Exército), onde o
interrogatório continuou, sob a direção de
um dos elementos que
me torturara em São Paulo. Mostrou-me uma fotografia de
José
Roberto Rezende, querendo saber ser eu o conhecia e dizendo-
me que
ele já estava preso. Disse também que Palhano, exlíder
dos bancários já
referido, fora preso no mesmo dia seis
de maio, em companhia do camponês
[“Primo”] que me
entregara.”22
Desse modo e por esses motivos, no dia 06 de maio de
1971, agentes
integrantes da estrutura de repressão política lograram
localizar e
sequestrar a vítima Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e em seguida
conduzi-la às dependências do Destacamento de Operações Internas (DOICODI),
situado nesta Subseção Judiciária, na esquina das ruas Tutoia e Tomás
Carvalhal, no bairro do Ibirapuera, e chefiado, à época, pelo denunciado
CARLOS
ALBERTO BRILHANTE USTRA.
Ainda segundo o relatório de Inês Etienne Romeu, a vítima
Aluízio foi
levada, no dia 13 de maio de 1971, à mesma “Casa de Petrópolis”,
onde
permaneceu até o dia seguinte.
Segundo a testemunha:
“Aluízio Palhano, ex-líder dos bancários do Rio de Janeiro, preso
no dia
seis de maio de 1971, foi conduzido para aquela casa
[em Petrópolis] no dia
13 do mesmo mês, onde ficou até o dia
22 Fls. 166-v e 167 dos autos.
10
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seguinte. Não o vi pessoalmente mas Mariano Joaquim da Silva
contou-me
que presenciou sua chegada, dizendo-me que seu
estado físico era deplorável.
Ouvi, contudo, sua voz várias
vezes, quando interrogado. Perguntei a Dr.
Pepe sobre ele que
me respondeu: ‘ele sumiu’.”23
O testemunho de Inês Etienne Romeu é completado pelos
depoimentos das
testemunhas Altino Dantas Júnior e Lenira Machado, que se
encontravam
sequestradas no DOI-CODI de São Paulo desde o dia 13 de maio
de 1971.
Assim afirmou a testemunha Lenira Machado:
“Foi presa com Altino no dia 13 de maio daquele ano... No dia
seguinte à
prisão, Altino e a declarante foram levados ao DOICODI.
Lá falaram para a
declarante: ‘- Você conhece a
Declaração dos Direitos Humanos? Esqueça!’.
Foi barbaramente
torturada, com choques, pau de arara, cadeira do dragão e
telefone. (...)
Já conhecia Aluízio Palhano pois (...) era do movimento
estudantil
e Palhano, sindicalista. Declara ter visto Aluízio preso no
DOICODI
em uma ocasião. (...) Tem a impressão de que esse
episódio
aconteceu cerca de dez dias depois de sua prisão.”24
A testemunha Altino Dantas Júnior confirmou, em
depoimento oficial, que:
23 Fls. 173 dos autos.
24 Fls. 515-517 dos autos
11
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“Foi preso (...) em 13 de maio de 1971. (...) Alguns dias depois [de
sua
prisão], pela fresta de sua cela, viu quando Aluízio entrou
nas dependências
do DOI-CODI conduzido por agentes
policiais e sabe dizer que era ele pois o
conhecia
anteriormente. Quando viu Aluízio pela segunda vez, alguns
dias
mais tarde, Aluízio já estava muito machucado e lhe
contou que fora levado
para Petrópolis, onde também foi
torturado. Aluízio lhe disse que o haviam
levado para
Petrópolis para ser interrogado e depois o trouxeram de volta
para o DOI-CODI de São Paulo. O declarante ouviu Aluízio ser
torturado
porque sua cela forte era ao lado da sala de
torturas. Logo depois o capitão
Ítalo Rolim, que também integrava
uma das equipes de tortura, permitiu que o
declarante e Aluízio se
ajudassem mutuamente a se banhar (...), pois ambos
estavam
muito machucados. (...) Foi nessa ocasião que Aluízio lhe contou
que havia sido levado para Petrópolis e depois trazido de
volta. Por
fim, a terceira vez que viu Aluízio ocorreu alguns
dias mais tarde.”25
Está devidamente demonstrado nos autos, como se vê, a
materialidade do
fato criminoso consistente na privação ilegal da liberdade
da vítima Aluízio
Palhano Pedreira Ferreira, mediante sequestro, e sua
manutenção clandestina,
ao menos a partir do dia 06 de maio de 1971 (à
exceção de dois dias, entre
13 e 15 de maio do mesmo ano, quando foi
transferido temporariamente para
uma casa, em Petrópolis) nas dependências
do DOI-CODI-SP, onde foi vista
pelas testemunhas Altino e Lenira.
A privação da liberdade da vítima nas dependências do
DOI-CODI-SP é
ilegal, pois nem mesmo na ordem vigente na data de início
25 Fls. 257-258 dos autos.
12
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da conduta delitiva agentes de Estado estavam autorizados a atentar contra
a integridade física dos presos e muito menos a sequestrar pessoas e
depois fazê-las “desaparecer”.
Com efeito, o art. 153, § 12, da Emenda Constitucional n.o
01 de 1969,
estabelece claramente que “a prisão ou detenção de qualquer pessoa
será
imediatamente comunicada ao juiz competente, que relaxará, se não for
legal.” Mesmo o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, apesar de
ter
suspendido a garantia do habeas corpus para os crimes contra a segurança
nacional, não excluiu o dever de comunicação da prisão, nem autorizou a
manutenção de suspeitos, por tempo indeterminado, em estabelecimentos
oficiais, sob a responsabilidade de agentes públicos. Portanto, ainda que a
pretexto de combater supostos terroristas, não estavam os agentes públicos
envolvidos autorizados a sequestrar a vítima, mantê-la secretamente em
estabelecimento oficial e depois dar-lhe um paradeiro conhecido somente
pelos
próprios autores do delito.
A ilegalidade dos sequestros efetivados pelo DOI-CODI-SP
e outros órgãos
similares está assim descrita na representação de presos
políticos
encaminhada pelo Presidente do Conselho Federal da OAB, em 1975,
ao
Ministro-Chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva:
“A prisão de nenhum de nós se revestiu das mínimas formalidades
legais. A
determinação de que ninguém será preso senão em
flagrante delito ou por
ordem escrita de autoridade competente
(art. 153, § 12, da Constituição em
vigor e art. 221 do Código de
Processo Penal Militar) é letra morta da qual
não fazem uso os
chamados órgãos de segurança. Todos nós fomos seqüestrados,
muitos em plena via pública, por bandos de homens armados,
13
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sem nenhum mandado judicial, e que não poucas vezes
desferiram tiros à
queima roupa, causando-nos ferimentos e
ferindo transeuntes (...). Outras
vezes nossas casas foram
invadidas, seja de dia ou em altas horas da noite,
as portas
arrombadas, bens roubados, e sofremos espancamentos em
nossos
próprios lares na presença da esposa, de filhos, pais ou
vizinhos; algemados, e muitas vezes amarrados, fomos
conduzidos sob capuz
para lugar ignorado. (...) Por outro lado,
nenhum de nós teve a prisão
comunicada a Juiz competente,
conforme prescreve norma constitucional (art. 153, § 12, da
Constituição
em vigor e art. 222 do CPM). (...) Presos ilegalmente,
(...) estivemos
sujeitos a prolongados períodos de
incomunicabilidade. Esta varia não de
acordo com o que diz a
própria lei de exceção, mas conforme o arbítrio dos
órgãos
repressivos. Dez dias é o prazo da lei (art. 59, § 1o, da LSN) que
nunca é respeitado. Nem mesmo a prevista prorrogação de dez
dias é
solicitada legalmente. A regra foi permanecermos de um a
três meses sem
assistência de qualquer espécie, sem direito à
visita de familiares e muito
menos de advogado. Alguns de nós
chegamos a permanecer até um ano ou mais
nos órgãos de
repressão, transferidos de um organismo para outro, às vezes
localizados em Estados diferentes, com destino ignorado pelo
próprio
preso. (...) Nesse período, nossos familiares ficam a bater
de porta em
porta, do CODI-DOI para o DOPS, para o QG do
Exército, sempre a receberem a
resposta de que não existe
nenhum preso com o nome reclamado. Quando se
recorre a
advogado, é comum que este vá ao Juiz e receba também aí
respostas evasivas. Se o Juiz pede informações aos órgãos
repressivos,
estas são prestadas quando lhes é conveniente, 20,
30 dias, ou mais, após a
prisão. Tem sido usado o recurso do
habeas corpus, não para garantir a
liberdade do cidadão
14
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seqüestrado (já vimos que, para estes casos, sua vigência foi
suspensa
pelo AI-5), mas para tentar a localização do preso ou
quebrar sua
incomunicabilidade e, em última instancia, tentar
preservar sua vida. Os
órgãos de repressão costumam negar
informações ao próprio Superior Tribunal
Militar quando julgam
necessário continuar mantendo o preso
clandestinamente.”26
Plenamente demonstrada, dessa forma, a materialidade do
crime de privação
ilegal da liberdade, mediante sequestro, da vítima Aluízio
Palhano Pedreira
Ferreira.
26 Fls. 610 dos autos.
15
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1.1. Incidência da qualificadora do § 2º do art. 148 do Código Penal.
Na
data de início da conduta delitiva, o DOI-CODI-SP era
sabidamente um dos
maiores27 e piores centros de repressão política do regime
ditatorial do
Brasil. Funcionava ininterruptamente, sete dias por semana, como
unidade
policial autárquica, concebida de forma a preencher todas as
necessidades da
ação repressiva sem depender de outros serviços públicos28.
Segundo a compilação feita pelo projeto “Brasil: Nunca
Mais”, o local
registrou o maior número de prisões ilegais29 e o maior número de
comunicações formais de tortura30 formuladas à Justiça Militar no período.
Mais
especificamente, entre 1970 e 1974, os processos da Justiça Militar
registram 542
comunicações de torturas ocorridas nas dependências comandadas
pelo
denunciado USTRA, e onde o denunciado DIRCEU GRAVINA também estava
lotado. A grande maioria (382 registros) envolvia espancamentos e uso de
instrumentos especialmente desenhados para provocar graves lesões corporais.
A estrutura do DOI-CODI-SP à época em que os
denunciados lá operavam está
reproduzida no organograma abaixo, constante do
livro de autoria do
denunciado USTRA31:
27 Segundo o denunciado CARLOS USTRA, “de todos os DOI ativados, o de São
Paulo era o de
maior efetivo, com cerca de 250 homens.” (Rompendo o
Silêncio: op. cit., p. 127). Entre 1970 e
1974, período em que o denunciado
comandou a unidade, o DOI-SP chegou a abrigar cerca de
dois mil presos
políticos, segundo o “Relatório Periódico de Informações do DOI de São Paulo”,
de
junho de 1975. Entre setembro de 1970 e junho de 75 o DOI paulista teve
2335 presos (Folha de
S. Paulo, 15 de outubro de 2000). As informações estão registradas em
Gaspari, A Ditadura
Escancarada, op. cit., p. 187.
28 Gaspari, A
Ditadura Escancarada, op. cit., p. 180.
29 Arquidiocese de São Paulo,
Projeto Brasil Nunca Mais, tomo IV, p. 30. O relatório registra 745
casos de
prisão ilegal pelo DOI-CODI-SP.
30 Arquidiocese de São Paulo, Projeto Brasil
Nunca Mais, op. cit., tomo V, volume 1, quadro 120,
p. 76.
31 Ustra,
Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 140.
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Uma vez detido, o suspeito era levado a uma das salas de
interrogatório do destacamento, onde era inquirido por uma das três equipes
que
operavam no local.
Segundo o denunciado USTRA:
“[Q]uando um terrorista era preso, a fase crucial da prisão tanto
para
ele como para nós era a do interrogatório. As prisões eram
efetuadas,
normalmente, pelas Turmas de Busca e Apreensão,
sendo o preso conduzido para
o DOI, a fim de ser interrogado.
Quando a prisão era planejada, a Turma de
Interrogatório
17
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República em São Paulo
Preliminar já o aguardava com a documentação referente a ele,
preparada
pela Subseção de Análise. Sabíamos pela sua ficha:
seus codinomes,
organização a qual pertencia, ações armadas
em que tomara parte, localização
do seu ‘aparelho’, seus contatos
e outros dados. Quando de uma prisão
inopinada, o interrogador
necessitava obter alguns dados essenciais, tais
como: a
localização do ‘aparelho’, o próximo ‘ponto’, o nome verdadeiro e
o codinome do preso.”32
Antes de iniciarmos o interrogatório – prossegue
USTRA –
procurávamos dialogar com ele, analisando a sua situação, mostrando
os dados
de que dispúnhamos a seu respeito e o aconselhávamos a dizer tudo o
que sabia,
para que pudesse sair o mais rápido possível da
incomunicabilidade.”33
O relato apresentado pelo denunciado USTRA, todavia, não
informa o que
acontecia caso o suspeito detido se recusasse a colaborar. Não
obstante, o
farto material probatório nos autos atesta que o que se passava era a
submissão do suspeito às mais aberrantes formas de maus tratos, praticadas
de
forma rotineira por três equipes de interrogatório que se revezavam, em
turnos
ininterruptos. Está também comprovado que ocasionalmente homicídios
eram
cometidos pelos interrogadores, durante intermináveis sessões que
incluíam
espancamentos, enforcamentos, afogamentos e choques elétricos.“
A forma usual de interrogatório de um suspeito de subversão
está assim
descrita em uma representação de presos políticos encaminhada pelo
então
Presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. Caio Mário da Silva Pereira,
32 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 159.
33 Idem, ibidem.
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ao Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República, em novembro de
197534.
“Chegando ao órgão repressivo, na maioria das vezes já
encapuzado ou com
os olhos vendados, o preso se depara com
um ambiente de pancadarias.
Arrastado à ‘sala de interrogatório’,
tem início a ‘busca de informações’,
que se prolonga por vários
dias, semanas ou meses. A ‘sala de
interrogatório’ é revestida
com material isolante, forma de tentar impedir
que os gritos dos
presos torturados se propaguem aos ouvidos da vizinhança.
Na
sala, espalhados pelo chão, encontram-se cavaletes, cordas, fios
elétricos, ripas de madeira, mangueiras de borracha, etc., enfim,
todos
os instrumentos usados na tortura.”
No caso específico, são coesos os elementos
indicativos de que a vítima
sofreu intensos e cruéis maus-tratos provocados
pelo denunciado DIRCEU
GRAVINA, sob o comando e aquiescência do
denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE
USTRA.
A imputação está fundada nas declarações prestadas por
Lenira Machado e
Altino Dantas Júnior. Segundo a testemunha Lenira, “Aluízio
estava muito
machucado e saía da sala de tortura, enquanto a declarante
estava sendo
conduzida para ser torturada.”35
A testemunha Altino Dantas Júnior, por sua vez, afirmou:
34 Representação encaminhada pelo então Presidente do Conselho Federal da
OAB, Caio Mário
da Silva Pereira, ao Ministro Chefe da Casa Civil, Golbery
do Couto e Silva, datada de 26.11.75
(fls. 595-624 dos autos). No ofício, o
professor Caio Mário reafirma sua convicção de que “a ação
mantenedora da
segurança do Estado deve guardar um limite (...) intransponível: o do respeito
aos direitos da pessoa humana, que a civilização ocidental levou milênios a
proclamar, e que é de
origem divina.” Também ressalta que o Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, de
que o Presidente da OAB é membro
nato, não se reúne há dois anos.”
19
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Procuradoria da
República em São Paulo
“O declarante ouviu Aluízio ser torturado porque sua cela
forte era ao
lado da sala de torturas. Logo depois o capitão Ítalo
Rolim, que também
integrava uma das equipes de tortura, permitiu
que o declarante e Aluízio se
ajudassem mutuamente a se
banhar[...], pois ambos estavam muito machucados.
(...) Por fim, a
terceira vez que viu Aluízio ocorreu alguns dias mais
tarde.
Nesse dia, ouviu Aluízio ser barbaramente torturado na sala
ao
lado, por Dirceu Gravina e outros integrantes daquela
equipe, e depois ouviu
Aluizio ser jogado já quase inerte no
pátio da delegacia a pontapés. Aluízio
já não conseguia mais
falar.”36
O grave sofrimento físico e mental imposto à vítima foi
provocado
mediante o emprego de métodos concebidos com a finalidade de
causar lesões
físicas e humilhação moral intensas. Os elementos constantes dos
autos
atestam que tais métodos eram normalmente usados pelas equipes de
interrogatório do DOI-CODI-SP, dentre elas a integrada pelo denunciado
DIRCEU
GRAVINA. Os métodos específicos empregados no Destacamento incluíam,
além
dos espancamentos, o uso de “pau de arara”37, “cadeira do dragão”38,
35 Fls. 515-517 dos autos.
36 Fls. 257-258 dos autos.
37 Segundo a
representação de presos políticos encaminhada pela OAB ao Ministro Golbery do
Couto e Silva, o “‘pau de arara”, “também conhecido por ‘cambão’... consiste
em amarrar punhos e
pés do torturado já despido, e sentado no chão,
forçando-o a dobrar os joelhos e a envolvê-los
com os braços; em seguida,
passar uma barra de ferro de lado a lado – perpendicularmente ao
eixo
longitudinal do corpo – por um estreito vão formado entre os joelhos fletidos e
as dobras do
cotovelo. A barra é suspensa e apoiada em dois cavaletes (..).
A posição provoca fortes e
crescentes dores em todo o corpo, especialmente
nos braços, pernas, costas e pescoço, ao que
se soma o estrangulamento da
circulação sanguínea nos membros superiores e inferiores. A
aplicação do
‘pau de arara’ é acompanhada sistematicamente de choques elétricos, afogamento,
queimadura com cigarros ou charutos e pancadas generalizadas, principalmente
nas partes do
corpo mais sensíveis, como órgãos genitais, etc. Esse tipo de
tortura é responsável por
deformações na espinha, nos joelhos, nas pernas,
nas mãos e nos pés, além de outros problemas
ósseos, musculares,
neurológicos, etc. Durante o período em que se é vítima dessa tortura, fica-se
impedido de andar e com as mãos e pés inchados, sintomas que permanecem
geralmente por
20
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afogamentos39, choques elétricos40 e “telefone”41. Vale registrar que esses
métodos eram largamente utilizados pelos órgãos da repressão política, como
prova o teor da entrevista do tenente Marcelo Paixão de Araújo, lotado no 12º
Regimento de Infantaria de Belo Horizonte, entre 1968 e 1971, autor confesso
de
atos de maus-tratos/tortura:
longo tempo (sendo isso às vezes o fator determinante no prolongamento da
incomunicabilidadedo preso, para que desapareçam os mais perceptíveis vestígios
de violência de que foi vítima). É
bom frisar, desde já, que a aplicação
demorada do ‘pau de arara’ tem sido causa de muitas
mortes, particularmente
quando se trata de cardíacos” (fls. 599-600).
38 Segundo a mesma
representação: a “cadeira do dragão” é semelhante a uma ‘cadeira elétrica’.
Constitui-se por uma poltrona de madeira, revestida com folha de zinco. O
torturado é sentado nu,
tendo seus pulsos amarrados aos braços da cadeira, e
as pernas forçadas para baixo e presas por
uma trava. Ao ser ligada a
corrente elétrica, os choques atingem todo o corpo, principalmente
nádegas e
testículos; as pernas se ferem batendo na trava que as prende. Além disso, há
sevícias
complementares: ‘capacete elétrico’ (balde de metal enfiado na
cabeça e onde se aplicam
descargas elétricas); jogar água no corpo para
aumentar a intensidade do choque; obrigar a comer
sal, que além de agravar o
choque, provoca intensa sede e faz arder a língua já cortada pelos
dentes;
tudo acompanhado de pancadas generalizadas.” (fls. 600 dos autos)
39 Também
segundo a mesma representação, “‘afogamento” é “um método de tortura cuja
aplicação varia de um órgão repressivo para outro. Uma das formas mais
comuns consiste em
derramar-se água, ou uma mistura de água com querosene ou
amoníaco ou outro liquido qualquer
pelo nariz da vítima já pendurada de
cabeça para baixo (como, por exemplo, no ‘pau de arara’’).
Outra forma
consiste em vedar as narinas e introduzir uma mangueira na boca, por onde é
despejada a água. Outras formas, ainda, são: mergulhar-se a cabeça do preso
em um tanque,
tambor ou balde de água, forçando-lhe a nuca para baixo
(...)”. (fls. 600 dos autos)
40 Segundo a mesma representação, o choque
consiste na “aplicação de descargas elétricas em
várias partes do corpo do
torturado, preferencialmente nas partes mais sensíveis, como, por
exemplo,
no pênis e no ânus, amarrando-se um pólo no primeiro e introduzindo-se o outro
no
segundo; ou amarrando-se um pólo nos testículos e outro no ouvido; ou,
ainda, nos dedos dos pés
e mãos, na língua, etc. (quando se trata de presas
políticas, os pólos costumam ser introduzidos
na vagina e no ânus.). Para
conseguir as descargas, os torturadores utilizam-se de vários
aparelhos:
magneto (conhecido por ‘maquininha’ na OBAN e ‘maricota’ no DOPS-RS); telefone
de
campanha (em quartéis); aparelho de televisão (conhecido por ‘Brigitte
Bardot’ no DEOPS-SP);
‘pianola’, aparelho que, dispondo de várias teclas,
permite a variação da voltagem da corrente
elétrica (no PIC-Brasília e no
DEOPS-SP); e ainda choque direto de tomada em corrente de 110 e
até 220
volts. O choque queima as partes sensíveis do corpo e leva o torturado a
convulsões. E é
muito comum a vítima, recebendo as descargas, morder a
língua, ferindo-a profundamente.
Consta de compêndios médicos que o
eletrochoque aplicado na cabeça provoca microhemorragias
no cérebro,
destruindo substância cerebral e diminuindo o patrimônio neurônico do
cérebro. Com isso, no mínimo provoca grandes distúrbios na memória e
sensível diminuição da
capacidade de pensar, e as vezes amnésia afetiva. A
aplicação intensa de choque já foi causa da
morte de muitos presos
políticos, particularmente quando portadores de afecções cardíacas.” (fls.
600 dos autos)
41 O “telefone” consiste “na aplicação de pancada com as
mãos em concha nos dois ouvidos ao
mesmo tempo. Esse método de tortura é
responsável pelo rompimento de tímpanos de vários
21
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“A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala, tirar a
roupa
dele e começar a gritar para ele entregar o ponto (lugar
marcado para
encontros) e os militantes do grupo. Era o primeiro
estágio. Se ele
resistisse, tinha um segundo estágio, que era,
vamos dizer assim, mais
porrada. Um dava tapa na cara. Outro,
soco na boca do estômago. Um terceiro,
soco no rim. Tudo para
ver se ele falava. Se não falava, tinha dois
caminhos. Dependia
muito de quem aplicava a tortura. Eu gostava muito de
aplicar a
palmatória. É muito doloroso, mas faz o sujeito falar. (…) Você
manda o sujeito abrir a mão. O pior é que, de tão desmoralizado,
ele
abre. Aí se aplicam dez, quinze bolos na mão dele com força.
A mão fica
roxa. Ele fala. A etapa seguinte era o famoso telefone
das Forças Armadas.
(...) É uma corrente de baixa amperagem e
alta voltagem. (...) Eu gostava
muito de ligar nas duas pontas dos
dedos. Pode ligar numa mão e na orelha,
mas sempre do mesmo
lado do corpo. O sujeito fica arrasado. O que não se
pode fazer é
deixar a corrente passar pelo coração. Aí mata. (...) O último
estágio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque. Isso era
para o
queixo-duro, o cara que não abria nas etapas anteriores.
Mas pau-de-arara é
um negócio meio complicado. No Rio e em
São Paulo gostavam mais de usar o
pau-de-arara do que em
Minas Gerais. (...). O pau-de-arara não é vantagem.
(...) [É]
necessário tomar conta do indivíduo porque ele pode passar mal.
Também tinha o afogamento. Você mete o preso dentro da água e
tira.
Quando ele vai respirar, coloca dentro de novo, e vai por aí
afora. É como
um caldo, como se faz na piscina. Era eficiente.
Mas eu não gostava. Achava
que o risco era muito alto.”42
presos políticos, provocando em alguns casos surdos permanentes; em outros,
labirintite, etc.” (fls.
600 dos autos)
42 Entrevista de Marcelo Paixão
de Araújo a Alexandre Oltramari, Revista Veja, 09 de dezembro de
1998, pp.
42-53.
22
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A natureza permanente da privação da liberdade importa em
grave
sofrimento moral não apenas à própria vítima, como também a todos os
seus
familiares e amigos, que desde 1971 buscam, sem sucesso, que o Estado
lhes
informe o paradeiro do sequestrado.
Devidamente demonstrada nos autos a ocorrência das
circunstâncias
indicadas no § 2º do art. 148 do Código Penal, impõe-se o
reconhecimento do
crime de sequestro em sua forma qualificada.
1.2. Classificação penal dos fatos como crime de sequestro
As provas
constantes dos autos comprovam de forma cabal
a privação ilegal da liberdade
de Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, mas não a sua
morte. A mera
possibilidade de que a vítima tenha sido executada ou, em razão
do tempo
decorrido, esteja morta por outros motivos, não afasta a tipificação dos
fatos como crime de sequestro qualificado, como exaustivamente discutido na
quota que acompanha esta denúncia.
Isto porque o paradeiro da vítima é, até a presente data,
ignorado, e seu
corpo nunca foi localizado. Nessas circunstâncias, o
reconhecimento da
eventual morte presumida dependeria, nos termos do
parágrafo único do art.
7º do Código Civil, de sentença judicial que fixasse a data
provável do
falecimento “depois de esgotadas as buscas e averiguações”, o que
até hoje
não ocorreu. Sem este ato, não é juridicamente possível afirmar que a
vítima
está morta ou quando tal evento teria supostamente acontecido.
23
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Este foi exatamente o entendimento adotado pelo Supremo
Tribunal Federal no julgamento recente das Extradições 97443 e 115044 ,
requeridas pelo Estado argentino, tendo a Corte, em ambos os casos, deferido
o
pedido para determinar a devolução de agentes acusados de sequestro de
dissidentes políticos no país vizinho.
Na Extradição 1150, o Ministro Ricardo Lewandowski
asseverou que “embora tenham passado mais de trinta e oito anos do fato
imputado ao extraditando [sequestro e desaparecimento forçado de presos
políticos naquele Estado], as vítimas até hoje não apareceram, nem tampouco
os
respectivos corpos, razão pela qual não se pode cogitar, por ora, de
homicídio”.
No mesmo julgamento, o Ministro Cezar Peluso foi ainda
mais específico, ao asseverar que, em casos de “desaparecimento” de pessoas
sequestradas por agentes estatais, somente uma sentença na qual esteja fixada
a
data provável do óbito é apta a fazer cessar a permanência do crime de
sequestro
pois, sem ela, “o homicídio não passa de mera especulação, incapaz de
desencadear a fluência do prazo prescricional”:
43 STF – Pleno – Extradição 974 – rel. Min. Ricardo Lewandowski – j. 06.08.09
– DJE 04.12.09.
44 Cuja ementa é a seguinte: “Extradição Instrutória. Prisão
preventiva decretada pela Justiça
Argentina. Tratado específico. Requisitos
atendidos. Extraditando investigado pelos crimes de
homicídio qualificado
pela traição (‘homicídio agravado pela aleivosia e por el número de
participes’) e sequestro qualificado (‘desaparición forzada de personas’).
Dupla tipicidade atendida.
Extinção da punibilidade dos crimes de homicídio
pela prescrição. Procedência. Crime
permanente de sequestro qualificado.
Inexistência de prescrição. Alegações de ausência de
documentação. Crime
militar ou político. Tribunal de Exceção e eventual indulto: improcedência.
Extradição parcialmente deferida. (…). 4. Requisito da dupla tipicidade,
previsto no art. 77, inc.
II, da Lei n. 6.815/1980 satisfeito: fato
delituoso imputado ao Extraditando correspondente,
no Brasil, ao crime de
sequestro qualificado, previsto no art. 148, § 1º, inc. III, do Código
Penal. (...) 6. Crime de sequestro qualificado: de natureza permanente,
prazo prescricional
começa a fluir a partir da cessação da permanência e não
da data do início do sequestro.
Precedentes.” (STF – Pleno -Extradição 1.150
– rel. Ministra Carmen Lúcia – j. 19.05.11 – DJE
17.06.11).
24
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“[P]ara que exsurja considerável presunção legal de morte,
não basta o
mero juízo de extrema probabilidade da morte de
quem estava em perigo de
vida (art. 7o, inc. I, do Código Civil),
havendo mister a existência de
sentença que, depois de
esgotadas as buscas e averiguações, produzidas em
procedimento de justificação judicial, fixe a data provável do
falecimento” (§ único). (...) Em outras palavras, essa norma não
incide
na espécie, simplesmente porque se lhe não reuniram os
elementos de seu
suporte fático (fattispecie concreta), donde a
idéia de homicídios não
passar, ainda no plano jurídico, de mera
especulação, incapaz de desencadear
fluência do prazo
prescricional.
E incapaz de o desencadear ainda por
outro motivo de não menor
peso. É que, à falta de sentença que, como predica
o art. 7o, (§
único, do Código Civil, deve fixar a data provável do
falecimento,
bem como na carência absoluta de qualquer outro dado ou prova
a respeito, não se saberia quando entraram os prazos de
prescrição da
pretensão punitiva de cada uma das mortes
imaginadas ou de todas, que
poderiam dar-se, como sói
acontecer, em datas diversas, salva cerebrina
hipótese de
execução coletiva! E, tirando o que nasce de fabulações, de modo
algum se poderia sustentar, com razoável pretensão de
consistência,
hajam falecido todas as pessoas que, segundo a
denúncia, teriam sido
seqüestradas, e, muito menos, assentarlhes
as datas prováveis de cada
óbito”.
Assim, até a edição de sentença judicial que, após
esgotadas as buscas e
averiguações, seja capaz de precisar a data do eventual
falecimento da
vítima, remanesce Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, para fins
penais,
privado ilegalmente de sua liberdade, sob o poder e responsabilidade dos
25
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dois denunciados, uma vez que era esta a situação em que se encontrava quando
foi visto pela última vez.
Não se desconhece, obviamente, o conteúdo da Lei nº
9.140/95, cujo texto
reconhece a vítima Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e outros
135
dissidentes políticos como mortos.
Ocorre, todavia, que a norma em questão foi editada com o
simples
objetivo de favorecer os familiares dos desaparecidos políticos,
possibilitando-lhes o recebimento de reparações pecuniárias e também a
prática
de atos de natureza civil, notadamente nas áreas de família e
sucessões. Não
tinha em sua origem, desse modo, nenhuma pretensão de
eliminar os bens
jurídicos liberdade e integridade física da vítima,
tutelados pelo art. 148 do Código
Penal. Seria, aliás, realmente impensável
que o Estado pudesse decretar a morte
de uma pessoa por intermédio de uma
lei.
Tanto a lei não tem o condão de definir com exatidão a data
e as
circunstâncias da morte da vítima que o parágrafo único de seu artigo 3o
estabelece que “[e]m caso de dúvida, será admitida justificação judicial”, o
que
demonstra, de forma inequívoca, o alcance restrito da Lei 9.140/95.
Some-se a isso o fato de que não há nenhuma certeza
objetiva a respeito
da morte provocada ou natural da vítima. O que há de concreto
é tão somente
a afirmação do denunciado DIRCEU GRAVINA, ouvida pela
testemunha Altino
Dantas Júnior, de que Aluízio Palhano foi morto sob tortura.
Prova material só há efetivamente em relação ao sequestro
e aos maus
tratos a que a vítima foi submetida pelos denunciados. Enquanto não
houver
absoluta certeza da morte, mediante identificação de seus restos mortais
26
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ou por outro meio idôneo e hábil a determinar as circunstâncias desses
eventos,
descabe presumir tal fato, que originaria provável processo penal
por homicídio,
em concurso, ou não, com o sequestro, seguido da ocultação do
cadáver da
vítima.
Em síntese, para fins penais, em razão da ausência de
sentença judicial
(ou mesmo de corpo de delito direto ou indireto) que, após
esgotadas as
buscas e averiguações, fixe a data do eventual falecimento da
vítima, não há
como se rechaçar a conclusão de que continua Aluízio Palhano
Pedreira
Ferreira privado ilegalmente de sua liberdade, sob o poder e
responsabilidade dos dois denunciados, situação em que se encontrava quando
visto pela última vez (fato reconhecido pelo próprio Estado brasileiro, no
art. 1º, da
Lei 9.140/95, corroborado de resto pelos elementos colacionados
aos autos).
Por fim, sendo o sequestro um delito de natureza
permanente, e possuindo
os dois denunciados pleno conhecimento do paradeiro
atual da vítima, não há
que se falar em incidência das causas de exclusão da
punibilidade
consistentes em prescrição e anistia, uma vez que a conduta
criminosa ainda
permanece em pleno curso.
27
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2. Da autoria delitiva.
Imputa-se a CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e
DIRCEU GRAVINA a autoria do crime de sequestro qualificado de Aluízio
Palhano Pedreira Ferreira em razão das seguintes evidências constantes dos
autos:
2.1. Denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA
CARLOS ALBERTO BRILHANTE
USTRA era o comandante
operacional de todas as ações de repressão
desenvolvidas pelo principal órgão
de repressão política do início da década
de 1970, o Destacamento de Operações
Internas do Centro de Operações de
Defesa Interna – DOI-CODI-SP. Estava,
segundo suas palavras, responsável por
uma “guerra sem uniformes, travada nas
ruas, onde o inimigo se misturava com
a população.”45
O Destacamento comandado pelo denunciado foi criado em
1970 precisamente
com o intuito de centralizar, em um só órgão, toda a atividade
de repressão
política a subversivos. Segundo o denunciado:
“Era muito mais lógico que tudo ficasse centralizado sob um só
comando,
em um órgão que dispusesse de dados a respeito de
cada organização
subversiva, de sua maneira de agir, de nomes e
fotografias de seus mais
importantes militantes.”46
A participação do denunciado nos fatos que redundaram no
sequestro da
vítima iniciou-se com sua designação, em 28 de setembro de 1970,
45 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 71.
46 Ustra, Rompendo o
Silêncio, op. cit., p. 73.
28
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para assumir o Comando do DOI/CODI/SP47. Tinha sob sua responsabilidade “um
efetivo de 250 homens”, sendo quarenta do Exército e o restante composto por
membros das Policias Civil e Militar dos Estados48.
O denunciado promoveu a reforma do prédio49 onde a vítima
foi vista pela
última vez, e efetuou, segundo suas próprias palavras, “uma
completa
reformulação quanto ao pessoal, à estrutura organizacional, à
segurança, aos
meios de comunicação, ao armamento, às viaturas e às
instalações”50. Seu
objetivo era “procurar os terroristas onde quer que eles
estivessem”51,
porém não necessariamente instaurar um procedimento inquisitivo
contra eles,
uma vez que era prática corrente no DOI/CODI/SP a manutenção
clandestina de
suspeitos em suas dependências, sem nenhuma comunicação
formal a quem quer
que fosse, circunstância que, por si só, já afasta qualquer
traço de
legalidade na conduta imputada ao denunciado USTRA.
Segundo o denunciado, a partir da reestruturação dos
órgãos de repressão
política, promovida a partir de 1970:
“As prisões dos terroristas foram acontecendo em um ritmo
crescente.
Enfim, começávamos a dar uma resposta à altura às
ações terroristas da
Guerrilha Revolucionária. Os presos, ao
serem interrogados, iam
‘entregando’, isto é, iam contando tudo a
respeito de suas organizações.
Assim ficávamos conhecendo o
nome correto dos seus militantes, quais as
ações que eles tinham
tomado parte, a localização dos ‘aparelhos’, isto é,
do local onde
os terroristas residiam na clandestinidade, e onde guardavam
47 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 130.
48 Ustra, Rompendo o
Silêncio, op. cit., p. 127.
49 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 139.
50 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 131.
51 Ustra, Rompendo o
Silêncio, op. cit., p. 139.
29
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armamentos, munições, explosivos, etc.... Enfim, a cada
interrogatório de
um militante preso o nosso arquivo era ampliado
com preciosas informações.
Isso, evidentemente, estava
colocando em risco a vida das Organizações
Terroristas. Era,
portanto, necessário retirar o quanto antes, os seus
companheiros
que na prisão estavam ‘abrindo’, isto é, contando tudo.”52
Os métodos empregados pelas três equipes de
interrogatório subordinadas
ao denunciado USTRA estão suficientemente
descritos no tópico anterior.
Quanto aos fatos objeto da presente denúncia, imputa-se
precisamente a
CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA a autoria e o domínio
de fato penalmente
típico consistente na privação ilegal da liberdade da
vítima Aluízio Palhano
Pedreira Ferreira, mediante sequestro, em caráter
permanente, desde o dia 06
de maio de 1971 (à exceção de dois dias, entre
13 e 15 de maio do mesmo ano)
até a presente data, inicialmente nas
dependências do DOI-CODI-SP, onde o
denunciado era comandante
operacional até 23 de janeiro de 1974, e depois em
local ignorado.
Imputa-se ao denunciado CARLOS USTRA, ainda, a
autoria intelectual,
mediante instigação, e a omissão, na condição de
garante, nos maus-tratos
provocados pelo denunciado DIRCEU GRAVINA,
que ocasionaram gravíssimo
sofrimento físico e moral na vítima,
circunstância qualificadora do delito
do art. 148 do Código Penal.
52 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 73.
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A autoria delitiva imputada ao denunciado CARLOS
ALBERTO BRILHANTE USTRA
está demonstrada nos autos pelos seguintes
elementos de convicção:
a) declaração de Altino Dantas Júnior constante a fls. 255,
na qual se
lê: “O comandante Ustra não participava diretamente das sessões de
tortura.
Ele entrava durante as sessões, quando o declarante estava pendurado
ou
levando choques, e dizia: ‘ele está mentindo, façam ele falar’.”;
b) declaração da mesma testemunha, a fls. 257, segundo a
qual, na
terceira vez que viu a vítima no DOI-CODI-SP, ouviu o denunciado
USTRA
mandar o codenunciado DIRCEU GRAVINA retirar o corpo inerte da
vítima
Aluízio Palhano do pátio: “Não quero esse negócio aqui.”;
c) declaração da testemunha Lenira Machado, a fls. 446 dos
autos, segundo
a qual: “Não se recorda de ter sido torturada por USTRA, mas ele
comparecia
à sala de torturas e via tudo o que acontecia. USTRA, antes da
sessão de
torturas, vinha conversar com o preso, perguntando por que não
colaborava.”;
d) declaração da testemunha Lenira Machado, a fls. 516,
segundo a qual:
“O Dr. Tibiriçá (CARLOS USTRA) não participava diretamente
das sessões de
tortura. Ele entrava na sala de torturas com um papel na mão,
contendo as
perguntas que deveriam ser feitas para o interrogando. USTRA então
perguntava para o interrogando: ‘não quer falar antes que comecem a
trabalhar?”;
e) declaração de Laurindo Martins Junqueira Filho, a fls. na
qual consta:
“USTRA era o Comandante da unidade e assistiu minha tortura,
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assistiu a tortura do meu companheiro que estava comigo. (...) Ele era o
comandante da unidade da tortura e orientava essa tortura pessoalmente.”
f) declaração da testemunha Maria Amélia de Almeida Teles,
a fls. 557,
segundo a qual: “foi quando viu pela primeira vez, nos degraus de cima
da
delegacia, o coronel CARLOS USTRA, que estava lá dando ordens. (...) Via-se
que ele era o homem que mandava ali. A testemunha indagou a USTRA como ele
deixava acontecer aquelas coisas lá. USTRA, então, bateu com toda a força na
testemunha, e a jogou no pátio, dizendo para seus subordinados: ‘Pega essa
terrorista aí.”;
g) declaração da testemunha Ivan Akselrud de Seixas, a fls.
562, segundo
a qual: “O comandante [do DOI-CODI-SP], na época, era o Dr.
Tibiriçá, que
depois se soube chamar CARLOS ALBERTO USTRA”;
h) declaração da mesma testemunha, a fls. 563, segundo a
qual: “Lembra
ainda que, nessa ocasião, houve uma discussão entre dois agentes
que queriam
torturar o declarante e seu pai. USTRA apareceu, perguntou qual o
motivo da
discussão, e determinou que o torturado fosse o pai do declarante”;
i) declaração da mesma testemunha, a fls. 564, segundo a
qual: “Logo
depois viu o comandante USTRA dirigir a limpeza do local onde [o
preso
político Luiz Eduardo] Merlino foi torturado. USTRA dizia: ‘limpa ali que tem
sangue.”;
j) declaração da testemunha Elzira Vilela, a fls. 577, segundo
a qual
“foram levados ao DOI-CODI, que à época era comandado pelo major
CARLOS
USTRA”;
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k) declaração da testemunha Paulo de Tarso Vanucchi, a fls.
476-477,
segundo a qual “o major USTRA era o comandante que determinava
tudo o que
podia, o que devia ser feito lá e o que não tinha”;
l) declaração da mesma testemunha, a fls. 480-482,
segundo a qual: “em
junho de 72, eu retornei pela sexta vez ao DOI-CODI, e fui
submetido a uma
sessão de tortura comandada pessoalmente por ele [USTRA],
não mais para
confissão, e sim porque nós estávamos em greve de fome,
exigindo um
tratamento compatível com a dignidade humana e a dignidade dos
presos
políticos. (...) Esta sessão foi comandada pessoalmente por USTRA, em
junho
de 72”;
m) declaração da testemunha José Damião de Lima
Trindade, a fls., 569,
segundo a qual “recorda-se que o comandante do DOICODI,
à época, era
conhecido pelo nome de Major Tibiriçá, tendo posteriormente
tomado
conhecimento de que se tratava do coronel CARLOS ALBERTO
BRILHANTE USTRA.
Está, dessa forma, devidamente demonstrado nos autos que
o denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, na qualidade de
comandante
do DOI-CODI-SP na época do início da execução da conduta, é o
mentor
intelectual e mantem pleno domínio do fato criminoso objeto da presente
imputação.
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2.2. Denunciado DIRCEU GRAVINA.
O denunciado DIRCEU GRAVINA (vulgo “J.C.”
ou “Jesus
Cristo”) integrava juntamente com outros indivíduos ainda não
totalmente
identificados, uma das equipes de interrogatórios do DOI-CODI-SP
nos anos de
1971 e 1972.
Ao menos desde 197553 o Estado tinha conhecimento de
representações de
presos políticos apontando “J.C” como notório torturador
daquele
destacamento.
Quanto aos fatos objeto da presente denúncia, imputa-se
precisamente ao
denunciado a coautoria na conduta penalmente típica
consistente na privação
ilegal da liberdade da vítima Aluízio Palhano
Pedreira Ferreira, mediante
sequestro, em caráter permanente, desde o dia
06 de maio de 1971 até a
presente data, inicialmente nas dependências do
DOI-CODI-SP, e depois em
local ignorado.
Imputa-se ainda ao denunciado DIRCEU GRAVINA a
autoria, em ao menos uma
ocasião, dos maus-tratos que ocasionaram
gravíssimo sofrimento físico e
moral na vítima, circunstância qualificadora
do delito do art. 148 do Código
Penal.
A autoria delitiva imputada ao denunciado GRAVINA está
demonstrada nos
autos pelos seguintes elementos de convicção:
53 Os dois denunciados são mencionados na representação formulada por presos
políticos e
encaminhada ao Ministro Chefe da Casa Civil, pela OAB, nos
seguintes termos: “1 – Major da
Infantaria do Exército Carlos Alberto
Brilhante Ustra – “Dr. Tibiriçá” – comandante do CODI/DOI
(OBAN), no período
de 1970/1974. Atualmente é tenente-coronel na 9a RM, Campo Grande (...).
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a) termo de declarações de Altino Dantas Jr., a fls. 255-256
dos autos,
no qual se lê: “DIRCEU GRAVINA, policial do DEIC, era o pior
torturador. O
sistema de tortura no DOI-CODI era feito em três turnos e por três
equipes
diferentes: A, B, e C. Eram 6 ou 7 agentes para cada equipe.”;
b) termo de declarações da mesma testemunha, a fls. 258,
no qual se lê:
“a terceira vez que viu Aluízio ocorreu alguns dias mais tarde.
Nesse dia,
ouviu Aluízio ser barbaramente torturado na sala do lado, por DIRCEU
GRAVINA
e outros integrantes daquela equipe, e depois ouviu Aluízio ser jogado
já
quase inerte no pátio da delegacia a pontapés. Aluízio já não conseguia falar”;
c) termo de declarações da mesma testemunha a fls. 258
dos autos, no qual
se lê: “No último dia em que viu Aluízio, ouviu GRAVINA dizer:
‘acabamos de
matar o seu amigo, agora é a sua vez. Em seguida o declarante foi
levado
para a sala de tortura e lá foi novamente torturado”;
d) termo de declarações de Lenira Machado, a fls. 517 dos
autos, na qual
se lê: “[A declarante] tem a impressão de que foi a equipe de
GRAVINA quem o
torturou [a vítima Aluízio Palhano]. Isso porque sempre que
havia sessão de
pau de arara era a equipe de GRAVINA que estava envolvida”;
e) documento encaminhado por Altino Dantas Júnior ao
Ministro do Superior
Tribunal Militar General Rodrigo Otávio Jordão Ramos, em 1o
de agosto de
1978, na qual a testemunha noticia ter presenciado o sequestro e
maus tratos
sofridos pela vítima Aluízio Palhano. No documento, lê-se: “Alguns
minutos
após [a sessão de sevícias sobre a vítima], fui conduzido a essa mesma
88 – Dirceu, “Jesus Cristo”, “JC” – da Equipe A do interrogatório do CODI/DOI
(OBAN) no período
de 1971/1972. Anteriormente foi fotógrafo e auxiliar de
interrogatório do DOPS/SP, em 1970.”
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sala de torturas, que estava suja de sangue mais do que de costume. Perante
vários torturadores, particularmente excitados naquele dia, ouvi de um
deles,
conhecido pelo codinome de “JC” (cujo verdadeiro nome é DIRCEU
GRAVINA), a
seguinte afirmação: ‘Acabamos de matar o seu amigo, agora é a
sua vez’. Ato
contínuo começaram a me torturar, por puro sadismo ou para
descarregar sua
excitação criminosa, pois nenhuma pergunta me era feita.
(...)”54;
f) termo de declarações de Lenira Machado, a fls. 516 dos
autos, no qual
se lê: “Foi barbaramente torturada, com choques, pau de arara,
cadeira do
dragão, e telefone. Em uma dessas ocasiões, o agente JC, que depois
veio a
saber tratar-se de DIRCEU GRAVINA, estava torturando a declarante com
choques quando a declarante conseguiu soltar as suas mãos e o abraçou.
DIRCEU levou um choque, bateu o rosto e foi obrigado a ir ao hospital.
Quando
voltou, mandou pendurarem a Declarante no pau de arara a uma altura
de 1,80
metros e depois a soltaram. A declarante caiu com violência no chão
e bateu a
coluna, sofrendo uma paralisia de natureza permanente.”;
g) declaração da testemunha Maria Amélia de Almeida
Telles, a fls. 558
dos autos, na qual consta: “Lembra-se que foi torturada pelas
seguintes
pessoas: Aparecido Laerte Calandra, Pedro Gracieri, DIRCEU
GRAVINA (JC),
‘Gaeta’ ou ‘Mangabeira’, ‘Jacó’, ‘Albernaz’ e ‘Mário’;
h) declaração da testemunha José Damião de Lima
Trindade, a fls. 569 dos
autos, segundo a qual “não sabe dizer o nome completo
dos agentes que o
torturaram, mas recorda-se que naquela época trabalhavam
naquele órgão
agentes cujos apelidos eram: JC ou ‘Jesus Cristo’ (que na época
era
estudante do Mackenzie, usava cabelos compridos e durante as sessões de
tortura gritava muito) (...)”;
54 Fls. 230 dos autos.
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Está, desse modo, devidamente demonstrado nos autos que o
denunciado
DIRCEU GRAVINA é coautor da conduta objeto da presente
imputação, tendo
diretamente participado dos maus-tratos cometidos contra a
vítima
sequestrada, incorrendo desta forma, também nas penas do art. 148, § 2o,
do
Código Penal brasileiro.
3. Pedido.
Por tais fundamentos de fato e de direito, estando plenamente
demonstrada a autoria e materialidade do sequestro qualificado da vítima
Aluízio
Palhano Pedreira Ferreira, o Ministério Público Federal DENUNCIA
CARLOS
ALBERTO BRILHANTE USTRA e DIRCEU GRAVINA como incursos nas
penas
do art. 148, § 2º, c.c. o art. 29, ambos do Código Penal brasileiro, razão
pela qual requer seja instaurada a competente ação penal e citados os
denunciados, nos termos do Código de Processo Penal, até final condenação,
na
forma da Lei.
Desde logo requer o Ministério Público Federal o
reconhecimento, em
relação aos dois denunciados, das circunstâncias
agravantes indicadas no
art. 61, inciso II, alíneas “d” (“emprego de tortura e
outros meios
insidiosos e cruéis”); “f” (abuso de autoridade); “g” (abuso de
poder e
violação de dever inerente a cargo e função, consistente na
manutenção
clandestina da vítima em prédio público federal); e “i” (ofendido
estava sob
a imediata proteção da autoridade) do Código Penal
(correspondentes ao art.
44, I, “e”, “g”, “h” e “j” da antiga Parte Geral do Código
Penal).
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Procuradoria da
República em São Paulo
Em relação ao denunciado USTRA, requer o Ministério
Público Federal,
ainda, o reconhecimento da circunstância agravante
indicada no art. 62,
inciso I, do Código Penal, uma vez que ele promoveu e
organizou a cooperação
do denunciado GRAVINA no crime, além de dirigir
suas atividades
(correspondente ao art. 45, I, da antiga Parte Geral do Código
Penal).
Requer, outrossim, a oitiva das testemunhas abaixo arroladas,
para
prestar depoimento sob as penas da lei.
São Paulo, 23 de abril de 2012.
THAMEA DANELON DE MELO SERGIO GARDENGHI SUIAMA
Procuradora da República
Procurador da República
EUGENIA AUGUSTA GONZAGA IVAN CLÁUDIO MARX
Procuradora da República
Procurador da República
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ANDREY BORGES DE MENDONÇA TIAGO MODESTO RABELO
Procurador da República
Procurador da República
ANDRÉ CASAGRANDE RAUPP INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES
Procurador da República
Procuradora da República
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