segunda-feira, 30 de abril de 2012

OS 40 MANDAMENTOS DO REACIONÁRIO PERFEITO

 

Do blog do Gustavo Moreira ((aqui)

 

1-Negue sistematicamente a existência de qualquer conflito de classe, gênero, etnia ou origem regional ao seu redor, mesmo que o problema seja evidente até aos olhos do turista mais desatento. Afinal, sempre nos foi ensinado que a sociedade é um todo harmônico.

2-Não sendo possível negar o conflito, pela sua extensão, tente convencer seu interlocutor de que ele é limitado, reduzido a alguns focos ou induzido por estrangeiros perversos, mas que logo tudo voltará à tranquilidade costumeira.

3-Sendo impossível negar que o conflito é vasto e presente em quase toda parte, tome o partido dos mais poderosos. Afinal, eles representam a ordem, que deve ser mantida a qualquer custo.

4- Manifeste sua contrariedade diante de qualquer estatística que aponte para uma tendência de aumento da massa salarial. É inadmissível que os abnegados empreendedores sejam constrangidos a margens de lucro menores.

5-Demonstre contrariedade ainda maior quando notar que filhos de operários, camelôs e empregadas domésticas estão frequentando universidades. Prevalecendo esta aberração, que vai limpar o vaso sanitário para seu filho daqui a vinte anos?

6-Repita mil vezes por dia, para si mesmo e para os outros, que esquerdismo é doença, ainda que faça parte de uma classe média de orçamento curto, mas que, em estranho fenômeno psicológico, se enxerga como parte da melhor aristocracia do planeta.

7-Atribua a culpa pelos altos índices de criminalidade aos migrantes vindos de regiões pobres e imigrantes de países miseráveis. Estas criaturas não conseguem nem reconhecer a generosidade da sociedade que os acolhe.

8-Associe, sempre que possível, o uso de drogas a universitários transgressores e militantes de esquerda, mesmo sabendo que o pó mais puro costuma ser encontrado nas festas da “boa sociedade”. É necessário ampliar ou pelo menos sustentar o nível de reacionarismo da população em geral.

9- Tente revestir seu conservadorismo com uma face humanitária, reivindicando o direito à vida de todos os fetos, ainda que, na prática, vá pagar um aborto caso sua filha fique grávida de um indesejável, e seja favorável ao uso indiscriminado de cassetete e spray de pimenta contra os filhos de indesejáveis já crescidos.

10- Assuma o partido, em qualquer querela, daquele que for mais valorizado socialmente. Não é prudente que os “de baixo” testemunhem quebras de hierarquia, nem nos casos de flagrante injustiça.

11- Tente justificar, em qualquer ocasião, os ataques militares da OTAN contra países da Ásia, África ou da América Latina, mesmo que estes não representem a menor ameaça concreta para os agressores. Pondere que não é fácil carregar o fardo da civilização.

12- Mantenha assinaturas de pelo menos um jornal e uma revista de linha editorial bem reacionária, para usá-las como argumento de autoridade. Quando suas afirmativas forem refutadas, retruque de imediato com a fórmula “eu sei de tudo porque li o ...”.

13-Nunca se esqueça: se um político socialista ou comunista cometer crimes comuns, isto é da essência do esquerdismo; se os crimes forem cometidos por um político de direita, ele é apenas um indivíduo safado que não merece mais o seu voto.

14- Vista-se somente com roupas de grifes caríssimas, não importando o quanto vá se endividar. Sobretudo jamais seja visto sem gravata por pessoas das classes C, D e E.

15- Nunca perca a oportunidade de discursar a favor da pena de morte quando o jornal televisivo noticiar o assassinato de um pequeno burguês por assaltante ou traficante de favela; se, ao contrário, surgir a imagem de algum rico que passou de carro a 200 km/h por cima de pobres, mude de canal, procurando um filme de entretenimento.

16- Quando ouvir narrativas sobre ações violentas de neonazistas e outros militantes de extrema-direita, minimize a questão. Afinal, eles podem ser malucos, mas contrabalançam a ação da esquerda.

17- Reserve pelo menos uma hora, durante as festas de aniversário de seus filhos, para aquela roda em que alguns contam piadas sobre padeiros portugueses burros, negros primitivos, judeus e árabes sovinas, gays escrachados e índios canibais. É necessário, para reforçar a coesão da comunidade burguesa “cristã-velha”!

18- Quando forçado a conversar com pobres, tente parecer um grande doutor, empregando seguidamente expressões estrangeiras; se um subalterno for inconveniente ou falar demais, dispare sem hesitar: “Fermez la bouche!” .

19- Seja sócio de um clube tradicional, ainda que falido, e se possível ocupe uma de suas diretorias, mesmo que totalmente irrelevante. Manifeste-se sempre contra a entrada no quadro social de emergentes sem diploma e outros tipos sem classe.

20- Jamais ande de trem ou de ônibus. É a suprema degradação, comparável somente a ser açougueiro na sociedade absolutista.

21- Obrigue todo empregado doméstico que venha a cair sob suas ordens a comprar uniforme e usá-lo diariamente, impecavelmente lavado e passado. Afinal, para que serve o salário mínimo?

22-Jamais escute música baiana de qualquer vertente, samba, forró ou cantores sertanejos. Uma vez flagrado, sua reputação de homem civilizado estaria arruinada.

23-Pareça o mais alinhado possível com o liberalismo do século XXI. Tendo preguiça de se dedicar a textos complexos, leia pelo menos “Não somos racistas”, de Ali Kamel, e o “Manual do perfeito idiota latino-americano”. Passará como intelectual para pelo menos 90% da juventude de direita.

24- Morra virgem, mas nunca apresente como esposa, noiva ou namorada uma mulher que não caiba no estereótipo da burguesa cosmopolita, porém comportada.

25- Faça eco aos discursos dos octogenários conservadores que constantemente repetem a fórmula “no meu tempo não era assim”, mesmo que saiba sobre inúmeras falcatruas e atrocidades “do tempo deles”. Quanto mais perto do Império e da República Velha, mais longe da contaminação esquerdista!

26- Passe sempre adiante, para parentes, amigos e conhecidos, notícias forjadas na Internet, no estilo “Todas as mulheres de uma cidade do Ceará se recusaram a trabalhar numa fábrica de sapatos, porque já recebiam o bolsa-família”. Não importa se é impossível que qualquer pessoa com mais de quatro neurônios ativos acredite que uma cidade inteira tenha recusado um salário de pelo menos seiscentos reais por achar que vive bem com um auxílio de cento e cinquenta.

27- Repasse, igualmente, juízos de valor negativos sobre personalidades de esquerda, na linha “Michael Moore é mentiroso”, “Chico Buarque é um comunista hipócrita que vive no luxo”, “Dilma foi terrorista”, etc. É preciso dar continuidade à teatral associação entre reacionarismo e moralidade.

28-Diante de qualquer texto ou discurso de esquerda, classifique-o imediatamente como doutrinação barata ou lavagem cerebral. Não importando sua eventual ignorância sobre o tema, é preciso fechar todos os espaços à conspiração gramsciana mundial.

29- Sustente a surrada versão de que “apesar dos erros, os milicos salvaram o Brasil do comunismo em 1964”. Desconverse mais uma vez se alguém perguntar como se chegaria ao comunismo através da provável eleição de Juscelino Kubitschek em 1965.

30- Deprecie ao máximo mexicanos, chilenos, peruanos, paraguaios, bolivianos, colombianos e demais hispânicos como caboclos de cultura atrasada. Abra exceção para argentinos ricos filhos de pais europeus, desde que estes se abstenham de chamá-lo de macaquito.

31- Defenda o caráter sagrado da propriedade rural. Quando alguém recordar que as terras registradas nos cartórios do estado do Pará equivalem a quatro Parás, procure ao menos convencê-lo de que é uma situação atípica.

32- Afirme com veemência que todo posseiro, índio ou quilombola em busca de regularização de terras é vagabundo, mesmo que seus antepassados estejam documentados no local há duzentos anos. Por outro lado, todo latifundiário rico sempre será um proprietário respeitável, ainda que tenha cercado sua fazenda à bala há menos de vinte.

33- Denuncie nas redes sociais os ambientalistas que tentam embargar a construção de fábricas de artefatos de cimento em bairros superpopulosos e de depósitos de gás ao lado de estádios de futebol. Esses idiotas não sabem que nada é mais importante do que o crescimento do PIB?

34- Rejeite toda queixa que ouvir sobre trabalho escravo. É tirania impedir que alguém trabalhe em troca de água, caldo de feijão, laranja mofada e colchão de jornal, se estiver disposto a isto. Deixem a vida social seguir seu curso espontâneo!

35- Quando alguém protestar contra o assassinato de duzentos gays no ano Y, responda que outras quarenta mil pessoas morreram violentamente naquela temporada. Finja que é limítrofe e não entendeu que a cifra se limita aos gays mortos em decorrência desta condição e não aos que tombaram em latrocínios, brigas entre torcidas e disputas armadas por vagas de garagem.

36- Acuse todo movimento constituído contra determinado tipo de opressão de querer promover a opressão com sinal contrário. As feministas, por exemplo, pretendem castrar os machos e colocar-lhes avental para lavar a louça e cuidar de poodles.

37- Enalteça “esportes e diversões” que favorecem o gosto pelo sangue, como arremesso de anões, rinhas de galo, pegas, caçadas em áreas de preservação ambiental, touradas, farras do boi e congêneres. Como já dizia seu patrono oculto Benito Mussolini, “o espírito fascista é emoção, não intelecto”.

38-Procure enxertar referências bíblicas nas suas falas sobre política. Ao defender um oligarca truculento, arremate a obra dizendo algo como “Cristo também jantou na casa do rico Zaqueu”. Tente dar a impressão de que qualquer um que venha a contestá-lo despreza pessoas religiosas.

39-Apresente a todas as crianças que tiver ao seu alcance, antes dos dez anos, o repertório integral de Sylvester Stallone e similares, nos quais o árabe é sempre terrorista, o vietnamita um comunista fanático que jamais tira a farda e o hispano-americano batedor de carteira ou traficante. Tendo a chance, compre também Zulu, para a garotada aprender desde cedo que africanos são selvagens que correm em torno da fogueira sacudindo lanças de madeira.

40- Não permita que a política externa dos Estados Unidos seja criticada impunemente. Nunca se sabe quando o homem de bem precisará de um poder maior e talvez irresistível para defendê-lo do zé povão.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A DENÚNCIA DO MPF CONTRA USTRA E GRAVINA (2)


 Segue a segunda peça da denúncia do Ministério Público Federal contra Carlos Brilhante Ustra e Dirceu Gravina. 




(Peço que relevem um  ou outro truncamento da edição. O arquivo original estava em PDF e foi convertido)








MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA ____ VARA CRIMINAL DA
SUBSEÇÃO
JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO.




Denúncia n.o 31.107/2012




O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores
da República
infra-assinados, vem respeitosamente à presença de Vossa
Excelência ajuizar
a presente




DENÚNCIA




em face de




1





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA (à época do início da execução
conhecido
como “Dr. Tibiriçá”), brasileiro, militar reformado, portador da cédula de

identidade XXXXXXXX, inscrito no CPF/MF sob o número XXXXXXXXX, filho de

Célio Martins Ustra e Cacilda Brilhante Ustra, nascido em Santa Maria – RS,
em
28 de julho de 1932, o qual poderá ser encontrado no seguinte endereço

constante dos autos: XXXXXXXXXXXXXXXXXX; e




DIRCEU GRAVINA (à época do início da execução conhecido como “JC” ou

“Jesus Cristo”), brasileiro, delegado de Polícia Civil do Estado de São
Paulo,
portador da cédula de identidade RG XXXXXXXX, inscrito no CPF/MF sob
o
número XXXXXXXXX, filho de Vito Maria Gravina e Dinorah Melchiori Gravina,

nascido em São Paulo – SP, em 26 de novembro de 1948, o qual poderá ser

encontrado em um dos seguintes endereços constantes dos autos: XXXXXXXXX;





pela prática da seguinte conduta criminosa:




Consta dos inclusos autos do procedimento criminal de
número
1.34.001.001785/2009-31 que, desde o dia 06 de maio de 1971 até a
presente
data, nesta cidade e subseção judiciária, os denunciados CARLOS
ALBERTO
BRILHANTE USTRA e DIRCEU GRAVINA, em contexto de ataque
estatal generalizado
e sistemático contra a população civil – com pleno
conhecimento das
circunstâncias deste ataque –, previamente ajustados e
mediante unidade de
desígnios entre si e com outros agentes estatais ainda não
totalmente
identificados, privam ilegalmente a vítima Aluízio Palhano Pedreira

Ferreira1 de sua liberdade, mediante sequestro.




1 Em documentos oficiais e depoimentos constam também as grafias: Aloísio
Palhano e Aloysio
Palhano.




2





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




Consta ainda que Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, em
razão da natureza
ilícita da detenção e dos maus-tratos provocados pelo
denunciado DIRCEU
GRAVINA, sob o comando e aquiescência do denunciado
CARLOS ALBERTO BRILHANTE
USTRA, padeceu de gravíssimo sofrimento
físico e moral.




1. Materialidade do crime de sequestro
Segundo se apurou, a vítima
Aluízio Palhano, no período
anterior à deposição do presidente eleito João
Goulart, era um dos principais
sindicalistas do país, tendo ocupado as
posições de presidente do Sindicato dos
Bancários do Rio de Janeiro,
presidente da Confederação Nacional dos Bancários
e Vice-Presidente da
antiga Central Geral dos Trabalhadores – CGT2.




Logo após o golpe de Estado de 1964, os direitos políticos
da vítima
foram cassados pelo “Comando Supremo da Revolução” através do Ato

Institucional nº 13. Em 06 de outubro do mesmo ano, a vítima foi
sumariamente
exonerada do cargo que ocupava no Banco do Brasil, por ato do
Presidente da
República4.




Em razão das perseguições políticas sofridas, a vítima
exilou-se em Cuba,
onde permaneceu até o final do ano de 1970. Como revela a
leitura dos
documentos relacionados a Aluizio Palhano armazenados em arquivos
públicos,
as atividades da vítima eram vigiadas de perto pelos órgãos de
repressão
política desde o ano de seu exílio.




2 Fls. 144 dos autos.
3 Fls. 347 dos autos.
4 Fls. 350-351 dos autos.





3





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




Corroboram esta afirmação os seguintes elementos de




convicção, dentre outros constantes dos autos:




a) Informe Confidencial no 2 PM/PM-606/3-77, da Polícia Militar do
Estado
de São Paulo, no qual há o registro de que, em 05 de julho
de 1966, a
DOPS/GB estava diligenciando no sentido de prender
Aluísio Palhano,
articulador de “um plano insurrecional armado
contra o regime (...) de
acordo com a orientação firmada na
recente Conferência Tricontinental de
Havana”5;




b) Informação fornecida pelo Departamento de Policia Federal,
datada de
05 de janeiro de 1970, em resposta à solicitação “P.B.
no 160/CO/69”, na
qual a vítima é citada em uma “relação dos
brasileiros que viajam
frequentemente para Cuba”6;




c) Relatório Especial de Informações no 01/70, datado de 10 de
novembro
de 1970, redigido pelo Centro de Informações do
Exército e difundido ao 2º
Comando do Exército em São Paulo
(onde estava lotado o denunciado USTRA).
Elaborado a partir da
análise da documentação apreendida no “aparelho”7 de
Joaquim
Câmara Ferreira, o relatório contem o seguinte parágrafo:

“Existem elementos terroristas banidos prontos para o retorno em
fins de
novembro, dependendo da remessa, para Cuba, da
documentação necessária.
Sobre o roteiro para a volta, há
referências específicas ao Uruguai e
Paraguai. Alguns desses
elementos já estariam no Brasil. É também citado
Aloísio Palhano,
que há tempo se encontrava em Cuba, o qual já se ligou com

Carlos Lamarca, em busca de contato com a ALN.” No mesmo




5 Fls. 584.
6 Fls. 401 dos autos.





7 Termo constante do documento original, usado na época para designar o
local de esconderijo
dos dissidentes políticos do regime.




4





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




relatório, o nome de Aluízio Palhano consta da “relação de nomes
e
codinomes citados nos diversos documentos apreendidos no
aparelho de
‘Toledo’ [Joaquim Câmara Ferreira], acrescido da
seguinte observação:
“Esteve em Cuba. Vinha para o Brasil. É da
VPR.”8;




d) Termo de interrogatório de Alípio Cristiano de Freitas ao DOPS,
datado
de 30 de novembro de 1970. Segundo consta do
interrogatório, Alípio
mencionou ter encontrado, durante sua
permanência em Cuba, “Aloísio Palhano,
presidente da Federação
dos Bancário em 1964.” No mesmo termo de
interrogatório, Alípio
menciona as testemunhas Altino Rodrigues Dantas Filho
e Lenira
Machado, detidos no mesmo mês que Aluízio9;




e) Informe confidencial datado de 05 de janeiro de 1971, pelo qual




o Ministério da Aeronáutica difundiu ao 2º Exército, e aos demais
órgãos
envolvidos no sistema de repressão política, documento
cujo assunto era a
“presença de subversivos brasileiros em Cuba”,
listando, dentre outros, os
nomes de Aloísio Palhano e José
Anselmo dos Santos, o “Cabo Anselmo”10;

f) Difusão, ao 2º Exército/SP e demais órgãos envolvidos na
repressão
política, datada de 12 de fevereiro de 1971, do
depoimento de Edson Lourival
Reis de Menezes, “detido em Belo
Horizonte, em setembro de 1970”, no qual há
a referência a
encontros da testemunha com Palhano, em Cuba, no ano de

196911;




8 Fls. 585 dos autos.
9 Fls. 332-337 dos autos.
10 Fls. 352 dos
autos.
11 Fls. 586-589 dos autos.




5





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




g) Informação secreta nº 80/SNI/ASP/1971, de 10 de março de
1971, a
respeito da “atuação dos exilados, cassados, banidos, ou
punidos pela
Revolução, no exterior e sua vinculação a processos
subversivos de âmbito
interno”. Segundo a informação, “ao
retornarem [do congresso de Cuba] em ago
67, Aloysio Palhano e
Carlos Marighella, antes de chegarem ao Brasil,
passaram por
Montevidéu, onde mantiveram contatos com Brizola. Ficou então

acertado que o Comando Nacional revolucionário deveria se
deslocar para
São Paulo, onde iniciaram a estruturação de frentes
de luta, contando com o
apoio de líderes sindicais e estudantis
filiados à UNE. Tiveram início,
então, as atividades terroristas em
São Paulo e outros Estados, com a
criação de organizações sob a
inspiração de Carlos Marighella.”12.




O nome e fotografia da vítima constam também de
comunicado do 2º Exército
difundido ao DOI/CODI/SP, no qual é feita referência à
participação de
Aluízio Palhano e outras 185 pessoas em cursos de guerrilha
ministrados em
Cuba. Segundo o mesmo comunicado, a referência à participação
de um suspeito
em um “Curso de Guerrilha em Cuba” deveria ser considerado um
“indício
importante para a caracterização da periculosidade de um terrorista”13.




No final do ano de 1970, a vítima retornou de Cuba para a
cidade de São
Paulo, onde passou a viver na clandestinidade, atuando como
ponto de contato
da organização Vanguarda Popular Revolucionária – VPR,
fortemente combatida
pelos órgãos da repressão política, inclusive por possuir
Carlos Lamarca
dentre seus membros.




12 Fls. 590-591 dos autos.
13 Fls. 373 dos autos.




6





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




Naquele tempo, segundo registros históricos14, os
dissidentes políticos
que haviam se engajado na luta armada estavam, em sua
maioria, presos (cerca
de quinhentos dissidentes) ou exilados; apenas cem viviam
clandestinamente
nos centros urbanos brasileiros, correndo o risco de serem
arbitrariamente
detidos e levados para estabelecimentos de repressão política tais
como
aquele em que operavam os denunciados.




Logo em dezembro de 1970, a VPR perdeu Edson Neves
Quaresma e Yoshitane
Fujimori, ambos mortos por agentes da equipe de Busca e
Apreensão do
DOI-CODI-SP15. Segundo declaração do denunciado USTRA, o
automóvel onde os
dois estavam (Quaresma e Fujimori) foi apreendido por ordem
sua, levado à
sede do DOI-CODI-SP e minuciosamente revistado. “No seu interior
encontramos
muitas armas, munições, códigos e cifras para comunicação com o

exterior...”, afirmou USTRA16.




Com a morte de Yoshitane Fujimori e Edson Neves
Quaresma, a militância da
VPR em São Paulo ficou praticamente reduzida a José
Anselmo dos Santos, o
“Cabo Anselmo” (que havia chegado a São Paulo vindo
de Cuba em setembro de
197017), e a vítima Aluízio Palhano, que aportou em São
Paulo possivelmente
dois meses depois. Carlos Lamarca, Inês Etienne Romeu e
outros dirigentes da
organização residiam no Rio de Janeiro e em outros Estados.




14 Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada, São Paulo, Companhia das Letras,
2002, p.. 337.
15 Fls. 592 dos autos e Marco Aurélio Borba, Cabo Anselmo: a
luta armada ferida por dentro, São
Paulo, Global, p. 40.
16 Carlos
Alberto Brilhante Ustra, Rompendo o Silêncio: OBAN DOI/CODI 29 Set 70-23 jan 74,

Brasília, Editerra, 1987, p. 145.
17 Percival de Souza, Eu, Cabo Anselmo,
São Paulo, Globo, 1999, pp. 141-142. Segundo
Anselmo, em São Paulo suas
atividades se restringiram a aguardar a comunicação dos dirigentes
da VPR.
Seu contato principal era com Edson Quaresma, que logo no primeiro encontro

comunicou a morte de Francisco Boêmio, outro militante da organização.
Depois, Anselmo afirma
que alugou um quarto numa pensão, e que passava os
dias isolado.





7





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




De acordo com registros históricos, a VPR na data de início dos fatos não

chegava a somar cinquenta quadros18.




Segundo as declarações prestadas por José Anselmo dos
Santos à época,
localizadas no arquivo do DOPS/SP:




“Em junho ou julho de 1970, vieram José Maria e Quaresma, [que]
deviam
preparar as condições para receber-nos. (...) Corria o mês
de novembro,
quando se deu a morte de Toledo, da ALN, e pelos
documentos publicados
soubemos que Palhano estava chegando.
Efetivamente Quaresma recebeu-o e
fez-me contatar com ele em
fins de novembro (...)”19




O relato de José Anselmo dos Santos foi posteriormente
completado em
depoimento por ele prestado ao jornalista Percival de Souza:




“[Após a morte de Fujimori e Quaresma], ficamos, eu e o Aloísio
Palhano,
sem contato com a organização. (...) Sem contato, com
pouco dinheiro para
sobreviver, viajamos ao Rio de Janeiro, onde




o Aloísio tinha uma irmã. Ficamos hospedados no apartamento
dela, em
Ipanema, e a partir daí saímos de novo em busca de
contatos, usando antigos
relacionamentos confiáveis. (...) De volta
do Rio, eu e o Aloísio passamos a
contatar também o pessoal da
organização de Marighella. (...)20
18
Gaspari, A Ditadura Escancarada, op. cit., p. 338.
19 Citado em Nilmário
Miranda e Carlos Tibúrcio, Dos Filhos deste Solo, São Paulo, Perseu
Abramo,
2008, p. 343-344. No mesmo sentido é o depoimento de José Anselmo dos Santos ao

jornalista Octávio Ribeiro: “Depois do encontro com Lamarca é que chegou o
Aluísio Palhano. Nós
perdemos o contato com a VPR, e fomos de São Paulo para
o Rio de Janeiro, onde o Palhano
teria condições de reatar os contatos.”
(Octávio Ribeiro, Por que eu traí: confissões de Cabo
Anselmo, São Paulo,
Global, 1984, p. 62).
20 Percival de Souza, Eu, Cabo Anselmo, op. cit., p.
163.




8





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




A dissidente da mesma organização, Inês Etienne Romeu,
em relatório
apresentado ao Conselho Federal da OAB em 18 de setembro de
1971, descreve
os seguintes eventos que imediatamente antecederam o
sequestro da vítima
Aluízio Palhano:




“Fui presa no dia 05 de maio de 1971, em São Paulo, na Avenida
Santo
Amaro (...), às 09 horas da manhã, por agentes
comandados pelo Delegado
Sérgio Paranhos Fleury. Estava em
companhia de um velho camponês, de
codinome “Primo”, com
quem tinha encontro marcado desde abril. Assistiu
impassível à
minha prisão, sem ser molestado.
Levada para o DEOPS,
iniciou-se o interrogatório. O camponês,
que era da região de Imperatriz, já
havia denunciado um
encontro marcado entre ele e José Raimundo da Costa, no
qual
compareceria também Palhano, ex-líder dos bancários do Rio
de
Janeiro, para o dia seguinte. Confirmei a informação e disse
que desde o dia
10 de março deste ano estava desligada do
movimento e me preparava para
deixar o país. Em seguida, fui
levada à sala de torturas, onde me colocaram
no ‘pau de arara’ e
me espancaram barbaramente. Foram aplicados choques

elétricos na cabeça, pés e mãos. Queriam conhecer o meu
endereço na
Guanabara, mas consegui, apesar de tudo, ocultá-lo,
para proteger uma pessoa
que lá se encontrava.”21




Levada em seguida ao famigerado centro ilegal de torturas
conhecido como
“Casa de Petrópolis”, Inês Etienne Romeu prossegue afirmando




o seguinte:
21 Fls. 165-v dos autos.




9





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




“Chegando ao local, uma casa de fino acabamento, fui colocada
numa cama
de campanha, cuja roupa estava marcada com as
iniciais do C.I.E. (Centro de
Informação do Exército), onde o
interrogatório continuou, sob a direção de
um dos elementos que
me torturara em São Paulo. Mostrou-me uma fotografia de
José
Roberto Rezende, querendo saber ser eu o conhecia e dizendo-
me que
ele já estava preso. Disse também que Palhano, exlíder
dos bancários já
referido, fora preso no mesmo dia seis
de maio, em companhia do camponês
[“Primo”] que me
entregara.”22




Desse modo e por esses motivos, no dia 06 de maio de
1971, agentes
integrantes da estrutura de repressão política lograram
localizar e
sequestrar a vítima Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e em seguida

conduzi-la às dependências do Destacamento de Operações Internas (DOICODI),

situado nesta Subseção Judiciária, na esquina das ruas Tutoia e Tomás

Carvalhal, no bairro do Ibirapuera, e chefiado, à época, pelo denunciado
CARLOS
ALBERTO BRILHANTE USTRA.




Ainda segundo o relatório de Inês Etienne Romeu, a vítima
Aluízio foi
levada, no dia 13 de maio de 1971, à mesma “Casa de Petrópolis”,
onde
permaneceu até o dia seguinte.




Segundo a testemunha:




“Aluízio Palhano, ex-líder dos bancários do Rio de Janeiro, preso
no dia
seis de maio de 1971, foi conduzido para aquela casa
[em Petrópolis] no dia
13 do mesmo mês, onde ficou até o dia




22 Fls. 166-v e 167 dos autos.




10





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




seguinte. Não o vi pessoalmente mas Mariano Joaquim da Silva
contou-me
que presenciou sua chegada, dizendo-me que seu
estado físico era deplorável.
Ouvi, contudo, sua voz várias
vezes, quando interrogado. Perguntei a Dr.
Pepe sobre ele que
me respondeu: ‘ele sumiu’.”23




O testemunho de Inês Etienne Romeu é completado pelos
depoimentos das
testemunhas Altino Dantas Júnior e Lenira Machado, que se
encontravam
sequestradas no DOI-CODI de São Paulo desde o dia 13 de maio
de 1971.




Assim afirmou a testemunha Lenira Machado:




“Foi presa com Altino no dia 13 de maio daquele ano... No dia
seguinte à
prisão, Altino e a declarante foram levados ao DOICODI.
Lá falaram para a
declarante: ‘- Você conhece a
Declaração dos Direitos Humanos? Esqueça!’.
Foi barbaramente
torturada, com choques, pau de arara, cadeira do dragão e

telefone. (...)
Já conhecia Aluízio Palhano pois (...) era do movimento
estudantil
e Palhano, sindicalista. Declara ter visto Aluízio preso no
DOICODI
em uma ocasião. (...) Tem a impressão de que esse
episódio
aconteceu cerca de dez dias depois de sua prisão.”24




A testemunha Altino Dantas Júnior confirmou, em
depoimento oficial, que:





23 Fls. 173 dos autos.
24 Fls. 515-517 dos autos




11





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




“Foi preso (...) em 13 de maio de 1971. (...) Alguns dias depois [de
sua
prisão], pela fresta de sua cela, viu quando Aluízio entrou
nas dependências
do DOI-CODI conduzido por agentes
policiais e sabe dizer que era ele pois o
conhecia
anteriormente. Quando viu Aluízio pela segunda vez, alguns
dias
mais tarde, Aluízio já estava muito machucado e lhe
contou que fora levado
para Petrópolis, onde também foi
torturado. Aluízio lhe disse que o haviam
levado para
Petrópolis para ser interrogado e depois o trouxeram de volta

para o DOI-CODI de São Paulo. O declarante ouviu Aluízio ser
torturado
porque sua cela forte era ao lado da sala de
torturas. Logo depois o capitão
Ítalo Rolim, que também integrava
uma das equipes de tortura, permitiu que o
declarante e Aluízio se
ajudassem mutuamente a se banhar (...), pois ambos
estavam
muito machucados. (...) Foi nessa ocasião que Aluízio lhe contou

que havia sido levado para Petrópolis e depois trazido de
volta. Por
fim, a terceira vez que viu Aluízio ocorreu alguns
dias mais tarde.”25




Está devidamente demonstrado nos autos, como se vê, a
materialidade do
fato criminoso consistente na privação ilegal da liberdade
da vítima Aluízio
Palhano Pedreira Ferreira, mediante sequestro, e sua
manutenção clandestina,
ao menos a partir do dia 06 de maio de 1971 (à
exceção de dois dias, entre
13 e 15 de maio do mesmo ano, quando foi
transferido temporariamente para
uma casa, em Petrópolis) nas dependências
do DOI-CODI-SP, onde foi vista
pelas testemunhas Altino e Lenira.




A privação da liberdade da vítima nas dependências do
DOI-CODI-SP é
ilegal, pois nem mesmo na ordem vigente na data de início




25 Fls. 257-258 dos autos.




12





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




da conduta delitiva agentes de Estado estavam autorizados a atentar contra

a integridade física dos presos e muito menos a sequestrar pessoas e

depois fazê-las “desaparecer”.




Com efeito, o art. 153, § 12, da Emenda Constitucional n.o
01 de 1969,
estabelece claramente que “a prisão ou detenção de qualquer pessoa
será
imediatamente comunicada ao juiz competente, que relaxará, se não for

legal.” Mesmo o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, apesar de
ter
suspendido a garantia do habeas corpus para os crimes contra a segurança

nacional, não excluiu o dever de comunicação da prisão, nem autorizou a

manutenção de suspeitos, por tempo indeterminado, em estabelecimentos

oficiais, sob a responsabilidade de agentes públicos. Portanto, ainda que a

pretexto de combater supostos terroristas, não estavam os agentes públicos

envolvidos autorizados a sequestrar a vítima, mantê-la secretamente em

estabelecimento oficial e depois dar-lhe um paradeiro conhecido somente
pelos
próprios autores do delito.




A ilegalidade dos sequestros efetivados pelo DOI-CODI-SP
e outros órgãos
similares está assim descrita na representação de presos
políticos
encaminhada pelo Presidente do Conselho Federal da OAB, em 1975,
ao
Ministro-Chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva:




“A prisão de nenhum de nós se revestiu das mínimas formalidades
legais. A
determinação de que ninguém será preso senão em
flagrante delito ou por
ordem escrita de autoridade competente
(art. 153, § 12, da Constituição em
vigor e art. 221 do Código de
Processo Penal Militar) é letra morta da qual
não fazem uso os
chamados órgãos de segurança. Todos nós fomos seqüestrados,

muitos em plena via pública, por bandos de homens armados,




13





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




sem nenhum mandado judicial, e que não poucas vezes
desferiram tiros à
queima roupa, causando-nos ferimentos e
ferindo transeuntes (...). Outras
vezes nossas casas foram
invadidas, seja de dia ou em altas horas da noite,
as portas
arrombadas, bens roubados, e sofremos espancamentos em
nossos
próprios lares na presença da esposa, de filhos, pais ou




vizinhos; algemados, e muitas vezes amarrados, fomos
conduzidos sob capuz
para lugar ignorado. (...) Por outro lado,
nenhum de nós teve a prisão
comunicada a Juiz competente,




conforme prescreve norma constitucional (art. 153, § 12, da
Constituição
em vigor e art. 222 do CPM). (...) Presos ilegalmente,
(...) estivemos
sujeitos a prolongados períodos de
incomunicabilidade. Esta varia não de
acordo com o que diz a
própria lei de exceção, mas conforme o arbítrio dos
órgãos
repressivos. Dez dias é o prazo da lei (art. 59, § 1o, da LSN) que

nunca é respeitado. Nem mesmo a prevista prorrogação de dez
dias é
solicitada legalmente. A regra foi permanecermos de um a
três meses sem
assistência de qualquer espécie, sem direito à
visita de familiares e muito
menos de advogado. Alguns de nós
chegamos a permanecer até um ano ou mais
nos órgãos de
repressão, transferidos de um organismo para outro, às vezes

localizados em Estados diferentes, com destino ignorado pelo
próprio
preso. (...) Nesse período, nossos familiares ficam a bater
de porta em
porta, do CODI-DOI para o DOPS, para o QG do
Exército, sempre a receberem a
resposta de que não existe
nenhum preso com o nome reclamado. Quando se
recorre a
advogado, é comum que este vá ao Juiz e receba também aí

respostas evasivas. Se o Juiz pede informações aos órgãos
repressivos,
estas são prestadas quando lhes é conveniente, 20,
30 dias, ou mais, após a
prisão. Tem sido usado o recurso do
habeas corpus, não para garantir a
liberdade do cidadão




14





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




seqüestrado (já vimos que, para estes casos, sua vigência foi
suspensa
pelo AI-5), mas para tentar a localização do preso ou
quebrar sua
incomunicabilidade e, em última instancia, tentar
preservar sua vida. Os
órgãos de repressão costumam negar
informações ao próprio Superior Tribunal
Militar quando julgam
necessário continuar mantendo o preso
clandestinamente.”26




Plenamente demonstrada, dessa forma, a materialidade do
crime de privação
ilegal da liberdade, mediante sequestro, da vítima Aluízio
Palhano Pedreira
Ferreira.




26 Fls. 610 dos autos.




15





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




1.1. Incidência da qualificadora do § 2º do art. 148 do Código Penal.
Na
data de início da conduta delitiva, o DOI-CODI-SP era
sabidamente um dos
maiores27 e piores centros de repressão política do regime
ditatorial do
Brasil. Funcionava ininterruptamente, sete dias por semana, como
unidade
policial autárquica, concebida de forma a preencher todas as
necessidades da
ação repressiva sem depender de outros serviços públicos28.




Segundo a compilação feita pelo projeto “Brasil: Nunca
Mais”, o local
registrou o maior número de prisões ilegais29 e o maior número de

comunicações formais de tortura30 formuladas à Justiça Militar no período.
Mais
especificamente, entre 1970 e 1974, os processos da Justiça Militar
registram 542
comunicações de torturas ocorridas nas dependências comandadas
pelo
denunciado USTRA, e onde o denunciado DIRCEU GRAVINA também estava

lotado. A grande maioria (382 registros) envolvia espancamentos e uso de

instrumentos especialmente desenhados para provocar graves lesões corporais.





A estrutura do DOI-CODI-SP à época em que os
denunciados lá operavam está
reproduzida no organograma abaixo, constante do
livro de autoria do
denunciado USTRA31:




27 Segundo o denunciado CARLOS USTRA, “de todos os DOI ativados, o de São
Paulo era o de
maior efetivo, com cerca de 250 homens.” (Rompendo o
Silêncio: op. cit., p. 127). Entre 1970 e
1974, período em que o denunciado
comandou a unidade, o DOI-SP chegou a abrigar cerca de
dois mil presos
políticos, segundo o “Relatório Periódico de Informações do DOI de São Paulo”,
de
junho de 1975. Entre setembro de 1970 e junho de 75 o DOI paulista teve
2335 presos (Folha de




S. Paulo, 15 de outubro de 2000). As informações estão registradas em
Gaspari, A Ditadura
Escancarada, op. cit., p. 187.
28 Gaspari, A
Ditadura Escancarada, op. cit., p. 180.
29 Arquidiocese de São Paulo,
Projeto Brasil Nunca Mais, tomo IV, p. 30. O relatório registra 745
casos de
prisão ilegal pelo DOI-CODI-SP.
30 Arquidiocese de São Paulo, Projeto Brasil
Nunca Mais, op. cit., tomo V, volume 1, quadro 120,
p. 76.
31 Ustra,
Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 140.
16





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo





Uma vez detido, o suspeito era levado a uma das salas de

interrogatório do destacamento, onde era inquirido por uma das três equipes
que
operavam no local.




Segundo o denunciado USTRA:




“[Q]uando um terrorista era preso, a fase crucial da prisão tanto
para
ele como para nós era a do interrogatório. As prisões eram
efetuadas,
normalmente, pelas Turmas de Busca e Apreensão,
sendo o preso conduzido para
o DOI, a fim de ser interrogado.
Quando a prisão era planejada, a Turma de
Interrogatório




17





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




Preliminar já o aguardava com a documentação referente a ele,
preparada
pela Subseção de Análise. Sabíamos pela sua ficha:
seus codinomes,
organização a qual pertencia, ações armadas
em que tomara parte, localização
do seu ‘aparelho’, seus contatos
e outros dados. Quando de uma prisão
inopinada, o interrogador
necessitava obter alguns dados essenciais, tais
como: a
localização do ‘aparelho’, o próximo ‘ponto’, o nome verdadeiro e





o codinome do preso.”32
Antes de iniciarmos o interrogatório – prossegue
USTRA –
procurávamos dialogar com ele, analisando a sua situação, mostrando
os dados
de que dispúnhamos a seu respeito e o aconselhávamos a dizer tudo o
que sabia,
para que pudesse sair o mais rápido possível da
incomunicabilidade.”33




O relato apresentado pelo denunciado USTRA, todavia, não
informa o que
acontecia caso o suspeito detido se recusasse a colaborar. Não
obstante, o
farto material probatório nos autos atesta que o que se passava era a

submissão do suspeito às mais aberrantes formas de maus tratos, praticadas
de
forma rotineira por três equipes de interrogatório que se revezavam, em
turnos
ininterruptos. Está também comprovado que ocasionalmente homicídios
eram
cometidos pelos interrogadores, durante intermináveis sessões que
incluíam
espancamentos, enforcamentos, afogamentos e choques elétricos.“





A forma usual de interrogatório de um suspeito de subversão
está assim
descrita em uma representação de presos políticos encaminhada pelo
então
Presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. Caio Mário da Silva Pereira,




32 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 159.
33 Idem, ibidem.




18





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




ao Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República, em novembro de

197534.




“Chegando ao órgão repressivo, na maioria das vezes já
encapuzado ou com
os olhos vendados, o preso se depara com
um ambiente de pancadarias.
Arrastado à ‘sala de interrogatório’,
tem início a ‘busca de informações’,
que se prolonga por vários
dias, semanas ou meses. A ‘sala de
interrogatório’ é revestida
com material isolante, forma de tentar impedir
que os gritos dos
presos torturados se propaguem aos ouvidos da vizinhança.
Na
sala, espalhados pelo chão, encontram-se cavaletes, cordas, fios

elétricos, ripas de madeira, mangueiras de borracha, etc., enfim,
todos
os instrumentos usados na tortura.”




No caso específico, são coesos os elementos
indicativos de que a vítima
sofreu intensos e cruéis maus-tratos provocados
pelo denunciado DIRCEU
GRAVINA, sob o comando e aquiescência do
denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE
USTRA.




A imputação está fundada nas declarações prestadas por
Lenira Machado e
Altino Dantas Júnior. Segundo a testemunha Lenira, “Aluízio
estava muito
machucado e saía da sala de tortura, enquanto a declarante
estava sendo
conduzida para ser torturada.”35




A testemunha Altino Dantas Júnior, por sua vez, afirmou:




34 Representação encaminhada pelo então Presidente do Conselho Federal da
OAB, Caio Mário
da Silva Pereira, ao Ministro Chefe da Casa Civil, Golbery
do Couto e Silva, datada de 26.11.75
(fls. 595-624 dos autos). No ofício, o
professor Caio Mário reafirma sua convicção de que “a ação
mantenedora da
segurança do Estado deve guardar um limite (...) intransponível: o do respeito

aos direitos da pessoa humana, que a civilização ocidental levou milênios a
proclamar, e que é de
origem divina.” Também ressalta que o Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, de
que o Presidente da OAB é membro
nato, não se reúne há dois anos.”




19





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




“O declarante ouviu Aluízio ser torturado porque sua cela
forte era ao
lado da sala de torturas. Logo depois o capitão Ítalo
Rolim, que também
integrava uma das equipes de tortura, permitiu
que o declarante e Aluízio se
ajudassem mutuamente a se
banhar[...], pois ambos estavam muito machucados.
(...) Por fim, a
terceira vez que viu Aluízio ocorreu alguns dias mais
tarde.
Nesse dia, ouviu Aluízio ser barbaramente torturado na sala
ao
lado, por Dirceu Gravina e outros integrantes daquela
equipe, e depois ouviu
Aluizio ser jogado já quase inerte no
pátio da delegacia a pontapés. Aluízio
já não conseguia mais
falar.”36




O grave sofrimento físico e mental imposto à vítima foi
provocado
mediante o emprego de métodos concebidos com a finalidade de
causar lesões
físicas e humilhação moral intensas. Os elementos constantes dos
autos
atestam que tais métodos eram normalmente usados pelas equipes de

interrogatório do DOI-CODI-SP, dentre elas a integrada pelo denunciado
DIRCEU
GRAVINA. Os métodos específicos empregados no Destacamento incluíam,
além
dos espancamentos, o uso de “pau de arara”37, “cadeira do dragão”38,





35 Fls. 515-517 dos autos.
36 Fls. 257-258 dos autos.
37 Segundo a
representação de presos políticos encaminhada pela OAB ao Ministro Golbery do

Couto e Silva, o “‘pau de arara”, “também conhecido por ‘cambão’... consiste
em amarrar punhos e
pés do torturado já despido, e sentado no chão,
forçando-o a dobrar os joelhos e a envolvê-los
com os braços; em seguida,
passar uma barra de ferro de lado a lado – perpendicularmente ao
eixo
longitudinal do corpo – por um estreito vão formado entre os joelhos fletidos e
as dobras do
cotovelo. A barra é suspensa e apoiada em dois cavaletes (..).
A posição provoca fortes e
crescentes dores em todo o corpo, especialmente
nos braços, pernas, costas e pescoço, ao que
se soma o estrangulamento da
circulação sanguínea nos membros superiores e inferiores. A
aplicação do
‘pau de arara’ é acompanhada sistematicamente de choques elétricos, afogamento,

queimadura com cigarros ou charutos e pancadas generalizadas, principalmente
nas partes do
corpo mais sensíveis, como órgãos genitais, etc. Esse tipo de
tortura é responsável por
deformações na espinha, nos joelhos, nas pernas,
nas mãos e nos pés, além de outros problemas
ósseos, musculares,
neurológicos, etc. Durante o período em que se é vítima dessa tortura, fica-se

impedido de andar e com as mãos e pés inchados, sintomas que permanecem
geralmente por




20





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




afogamentos39, choques elétricos40 e “telefone”41. Vale registrar que esses





métodos eram largamente utilizados pelos órgãos da repressão política, como





prova o teor da entrevista do tenente Marcelo Paixão de Araújo, lotado no 12º





Regimento de Infantaria de Belo Horizonte, entre 1968 e 1971, autor confesso
de




atos de maus-tratos/tortura:




longo tempo (sendo isso às vezes o fator determinante no prolongamento da
incomunicabilidadedo preso, para que desapareçam os mais perceptíveis vestígios
de violência de que foi vítima). É
bom frisar, desde já, que a aplicação
demorada do ‘pau de arara’ tem sido causa de muitas
mortes, particularmente
quando se trata de cardíacos” (fls. 599-600).
38 Segundo a mesma
representação: a “cadeira do dragão” é semelhante a uma ‘cadeira elétrica’.

Constitui-se por uma poltrona de madeira, revestida com folha de zinco. O
torturado é sentado nu,
tendo seus pulsos amarrados aos braços da cadeira, e
as pernas forçadas para baixo e presas por
uma trava. Ao ser ligada a
corrente elétrica, os choques atingem todo o corpo, principalmente
nádegas e
testículos; as pernas se ferem batendo na trava que as prende. Além disso, há
sevícias
complementares: ‘capacete elétrico’ (balde de metal enfiado na
cabeça e onde se aplicam
descargas elétricas); jogar água no corpo para
aumentar a intensidade do choque; obrigar a comer
sal, que além de agravar o
choque, provoca intensa sede e faz arder a língua já cortada pelos
dentes;
tudo acompanhado de pancadas generalizadas.” (fls. 600 dos autos)
39 Também
segundo a mesma representação, “‘afogamento” é “um método de tortura cuja

aplicação varia de um órgão repressivo para outro. Uma das formas mais
comuns consiste em
derramar-se água, ou uma mistura de água com querosene ou
amoníaco ou outro liquido qualquer
pelo nariz da vítima já pendurada de
cabeça para baixo (como, por exemplo, no ‘pau de arara’’).
Outra forma
consiste em vedar as narinas e introduzir uma mangueira na boca, por onde é

despejada a água. Outras formas, ainda, são: mergulhar-se a cabeça do preso
em um tanque,
tambor ou balde de água, forçando-lhe a nuca para baixo
(...)”. (fls. 600 dos autos)
40 Segundo a mesma representação, o choque
consiste na “aplicação de descargas elétricas em
várias partes do corpo do
torturado, preferencialmente nas partes mais sensíveis, como, por
exemplo,
no pênis e no ânus, amarrando-se um pólo no primeiro e introduzindo-se o outro
no
segundo; ou amarrando-se um pólo nos testículos e outro no ouvido; ou,
ainda, nos dedos dos pés
e mãos, na língua, etc. (quando se trata de presas
políticas, os pólos costumam ser introduzidos
na vagina e no ânus.). Para
conseguir as descargas, os torturadores utilizam-se de vários
aparelhos:
magneto (conhecido por ‘maquininha’ na OBAN e ‘maricota’ no DOPS-RS); telefone
de
campanha (em quartéis); aparelho de televisão (conhecido por ‘Brigitte
Bardot’ no DEOPS-SP);
‘pianola’, aparelho que, dispondo de várias teclas,
permite a variação da voltagem da corrente
elétrica (no PIC-Brasília e no
DEOPS-SP); e ainda choque direto de tomada em corrente de 110 e
até 220
volts. O choque queima as partes sensíveis do corpo e leva o torturado a
convulsões. E é
muito comum a vítima, recebendo as descargas, morder a
língua, ferindo-a profundamente.
Consta de compêndios médicos que o
eletrochoque aplicado na cabeça provoca microhemorragias
no cérebro,
destruindo substância cerebral e diminuindo o patrimônio neurônico do

cérebro. Com isso, no mínimo provoca grandes distúrbios na memória e
sensível diminuição da
capacidade de pensar, e as vezes amnésia afetiva. A
aplicação intensa de choque já foi causa da
morte de muitos presos
políticos, particularmente quando portadores de afecções cardíacas.” (fls.

600 dos autos)
41 O “telefone” consiste “na aplicação de pancada com as
mãos em concha nos dois ouvidos ao
mesmo tempo. Esse método de tortura é
responsável pelo rompimento de tímpanos de vários




21





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




“A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala, tirar a
roupa
dele e começar a gritar para ele entregar o ponto (lugar
marcado para
encontros) e os militantes do grupo. Era o primeiro
estágio. Se ele
resistisse, tinha um segundo estágio, que era,
vamos dizer assim, mais
porrada. Um dava tapa na cara. Outro,
soco na boca do estômago. Um terceiro,
soco no rim. Tudo para
ver se ele falava. Se não falava, tinha dois
caminhos. Dependia
muito de quem aplicava a tortura. Eu gostava muito de
aplicar a
palmatória. É muito doloroso, mas faz o sujeito falar. (…) Você

manda o sujeito abrir a mão. O pior é que, de tão desmoralizado,
ele
abre. Aí se aplicam dez, quinze bolos na mão dele com força.
A mão fica
roxa. Ele fala. A etapa seguinte era o famoso telefone
das Forças Armadas.
(...) É uma corrente de baixa amperagem e
alta voltagem. (...) Eu gostava
muito de ligar nas duas pontas dos
dedos. Pode ligar numa mão e na orelha,
mas sempre do mesmo
lado do corpo. O sujeito fica arrasado. O que não se
pode fazer é
deixar a corrente passar pelo coração. Aí mata. (...) O último

estágio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque. Isso era
para o
queixo-duro, o cara que não abria nas etapas anteriores.
Mas pau-de-arara é
um negócio meio complicado. No Rio e em
São Paulo gostavam mais de usar o
pau-de-arara do que em
Minas Gerais. (...). O pau-de-arara não é vantagem.
(...) [É]
necessário tomar conta do indivíduo porque ele pode passar mal.

Também tinha o afogamento. Você mete o preso dentro da água e
tira.
Quando ele vai respirar, coloca dentro de novo, e vai por aí
afora. É como
um caldo, como se faz na piscina. Era eficiente.
Mas eu não gostava. Achava
que o risco era muito alto.”42




presos políticos, provocando em alguns casos surdos permanentes; em outros,
labirintite, etc.” (fls.
600 dos autos)
42 Entrevista de Marcelo Paixão
de Araújo a Alexandre Oltramari, Revista Veja, 09 de dezembro de
1998, pp.
42-53.





22





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




A natureza permanente da privação da liberdade importa em
grave
sofrimento moral não apenas à própria vítima, como também a todos os
seus
familiares e amigos, que desde 1971 buscam, sem sucesso, que o Estado
lhes
informe o paradeiro do sequestrado.




Devidamente demonstrada nos autos a ocorrência das
circunstâncias
indicadas no § 2º do art. 148 do Código Penal, impõe-se o
reconhecimento do
crime de sequestro em sua forma qualificada.




1.2. Classificação penal dos fatos como crime de sequestro
As provas
constantes dos autos comprovam de forma cabal
a privação ilegal da liberdade
de Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, mas não a sua
morte. A mera
possibilidade de que a vítima tenha sido executada ou, em razão
do tempo
decorrido, esteja morta por outros motivos, não afasta a tipificação dos

fatos como crime de sequestro qualificado, como exaustivamente discutido na

quota que acompanha esta denúncia.




Isto porque o paradeiro da vítima é, até a presente data,
ignorado, e seu
corpo nunca foi localizado. Nessas circunstâncias, o
reconhecimento da
eventual morte presumida dependeria, nos termos do
parágrafo único do art.
7º do Código Civil, de sentença judicial que fixasse a data
provável do
falecimento “depois de esgotadas as buscas e averiguações”, o que
até hoje
não ocorreu. Sem este ato, não é juridicamente possível afirmar que a
vítima
está morta ou quando tal evento teria supostamente acontecido.




23





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




Este foi exatamente o entendimento adotado pelo Supremo




Tribunal Federal no julgamento recente das Extradições 97443 e 115044 ,




requeridas pelo Estado argentino, tendo a Corte, em ambos os casos, deferido
o




pedido para determinar a devolução de agentes acusados de sequestro de




dissidentes políticos no país vizinho.




Na Extradição 1150, o Ministro Ricardo Lewandowski




asseverou que “embora tenham passado mais de trinta e oito anos do fato




imputado ao extraditando [sequestro e desaparecimento forçado de presos




políticos naquele Estado], as vítimas até hoje não apareceram, nem tampouco
os




respectivos corpos, razão pela qual não se pode cogitar, por ora, de
homicídio”.




No mesmo julgamento, o Ministro Cezar Peluso foi ainda




mais específico, ao asseverar que, em casos de “desaparecimento” de pessoas





sequestradas por agentes estatais, somente uma sentença na qual esteja fixada
a




data provável do óbito é apta a fazer cessar a permanência do crime de
sequestro




pois, sem ela, “o homicídio não passa de mera especulação, incapaz de




desencadear a fluência do prazo prescricional”:




43 STF – Pleno – Extradição 974 – rel. Min. Ricardo Lewandowski – j. 06.08.09
– DJE 04.12.09.
44 Cuja ementa é a seguinte: “Extradição Instrutória. Prisão
preventiva decretada pela Justiça
Argentina. Tratado específico. Requisitos
atendidos. Extraditando investigado pelos crimes de
homicídio qualificado
pela traição (‘homicídio agravado pela aleivosia e por el número de

participes’) e sequestro qualificado (‘desaparición forzada de personas’).
Dupla tipicidade atendida.
Extinção da punibilidade dos crimes de homicídio
pela prescrição. Procedência. Crime
permanente de sequestro qualificado.
Inexistência de prescrição. Alegações de ausência de
documentação. Crime
militar ou político. Tribunal de Exceção e eventual indulto: improcedência.

Extradição parcialmente deferida. (…). 4. Requisito da dupla tipicidade,
previsto no art. 77, inc.
II, da Lei n. 6.815/1980 satisfeito: fato
delituoso imputado ao Extraditando correspondente,
no Brasil, ao crime de
sequestro qualificado, previsto no art. 148, § 1º, inc. III, do Código

Penal. (...) 6. Crime de sequestro qualificado: de natureza permanente,
prazo prescricional
começa a fluir a partir da cessação da permanência e não
da data do início do sequestro.
Precedentes.” (STF – Pleno -Extradição 1.150
– rel. Ministra Carmen Lúcia – j. 19.05.11 – DJE
17.06.11).




24





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




“[P]ara que exsurja considerável presunção legal de morte,
não basta o
mero juízo de extrema probabilidade da morte de
quem estava em perigo de
vida (art. 7o, inc. I, do Código Civil),
havendo mister a existência de
sentença que, depois de
esgotadas as buscas e averiguações, produzidas em

procedimento de justificação judicial, fixe a data provável do

falecimento” (§ único). (...) Em outras palavras, essa norma não
incide
na espécie, simplesmente porque se lhe não reuniram os
elementos de seu
suporte fático (fattispecie concreta), donde a
idéia de homicídios não
passar, ainda no plano jurídico, de mera
especulação, incapaz de desencadear
fluência do prazo
prescricional.
E incapaz de o desencadear ainda por
outro motivo de não menor
peso. É que, à falta de sentença que, como predica
o art. 7o, (§
único, do Código Civil, deve fixar a data provável do
falecimento,
bem como na carência absoluta de qualquer outro dado ou prova

a respeito, não se saberia quando entraram os prazos de
prescrição da
pretensão punitiva de cada uma das mortes
imaginadas ou de todas, que
poderiam dar-se, como sói
acontecer, em datas diversas, salva cerebrina
hipótese de
execução coletiva! E, tirando o que nasce de fabulações, de modo

algum se poderia sustentar, com razoável pretensão de
consistência,
hajam falecido todas as pessoas que, segundo a
denúncia, teriam sido
seqüestradas, e, muito menos, assentarlhes
as datas prováveis de cada
óbito”.




Assim, até a edição de sentença judicial que, após
esgotadas as buscas e
averiguações, seja capaz de precisar a data do eventual
falecimento da
vítima, remanesce Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, para fins
penais,
privado ilegalmente de sua liberdade, sob o poder e responsabilidade dos




25





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




dois denunciados, uma vez que era esta a situação em que se encontrava quando

foi visto pela última vez.




Não se desconhece, obviamente, o conteúdo da Lei nº
9.140/95, cujo texto
reconhece a vítima Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e outros
135
dissidentes políticos como mortos.




Ocorre, todavia, que a norma em questão foi editada com o
simples
objetivo de favorecer os familiares dos desaparecidos políticos,

possibilitando-lhes o recebimento de reparações pecuniárias e também a
prática
de atos de natureza civil, notadamente nas áreas de família e
sucessões. Não
tinha em sua origem, desse modo, nenhuma pretensão de
eliminar os bens
jurídicos liberdade e integridade física da vítima,
tutelados pelo art. 148 do Código
Penal. Seria, aliás, realmente impensável
que o Estado pudesse decretar a morte
de uma pessoa por intermédio de uma
lei.




Tanto a lei não tem o condão de definir com exatidão a data
e as
circunstâncias da morte da vítima que o parágrafo único de seu artigo 3o

estabelece que “[e]m caso de dúvida, será admitida justificação judicial”, o
que
demonstra, de forma inequívoca, o alcance restrito da Lei 9.140/95.




Some-se a isso o fato de que não há nenhuma certeza
objetiva a respeito
da morte provocada ou natural da vítima. O que há de concreto
é tão somente
a afirmação do denunciado DIRCEU GRAVINA, ouvida pela
testemunha Altino
Dantas Júnior, de que Aluízio Palhano foi morto sob tortura.




Prova material só há efetivamente em relação ao sequestro
e aos maus
tratos a que a vítima foi submetida pelos denunciados. Enquanto não
houver
absoluta certeza da morte, mediante identificação de seus restos mortais




26





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




ou por outro meio idôneo e hábil a determinar as circunstâncias desses
eventos,
descabe presumir tal fato, que originaria provável processo penal
por homicídio,
em concurso, ou não, com o sequestro, seguido da ocultação do
cadáver da
vítima.




Em síntese, para fins penais, em razão da ausência de
sentença judicial
(ou mesmo de corpo de delito direto ou indireto) que, após
esgotadas as
buscas e averiguações, fixe a data do eventual falecimento da
vítima, não há
como se rechaçar a conclusão de que continua Aluízio Palhano
Pedreira
Ferreira privado ilegalmente de sua liberdade, sob o poder e

responsabilidade dos dois denunciados, situação em que se encontrava quando

visto pela última vez (fato reconhecido pelo próprio Estado brasileiro, no
art. 1º, da
Lei 9.140/95, corroborado de resto pelos elementos colacionados
aos autos).




Por fim, sendo o sequestro um delito de natureza
permanente, e possuindo
os dois denunciados pleno conhecimento do paradeiro
atual da vítima, não há
que se falar em incidência das causas de exclusão da
punibilidade
consistentes em prescrição e anistia, uma vez que a conduta
criminosa ainda
permanece em pleno curso.




27





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




2. Da autoria delitiva.
Imputa-se a CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e

DIRCEU GRAVINA a autoria do crime de sequestro qualificado de Aluízio

Palhano Pedreira Ferreira em razão das seguintes evidências constantes dos

autos:




2.1. Denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA
CARLOS ALBERTO BRILHANTE
USTRA era o comandante
operacional de todas as ações de repressão
desenvolvidas pelo principal órgão
de repressão política do início da década
de 1970, o Destacamento de Operações
Internas do Centro de Operações de
Defesa Interna – DOI-CODI-SP. Estava,
segundo suas palavras, responsável por
uma “guerra sem uniformes, travada nas
ruas, onde o inimigo se misturava com
a população.”45




O Destacamento comandado pelo denunciado foi criado em
1970 precisamente
com o intuito de centralizar, em um só órgão, toda a atividade
de repressão
política a subversivos. Segundo o denunciado:




“Era muito mais lógico que tudo ficasse centralizado sob um só
comando,
em um órgão que dispusesse de dados a respeito de
cada organização
subversiva, de sua maneira de agir, de nomes e
fotografias de seus mais
importantes militantes.”46




A participação do denunciado nos fatos que redundaram no
sequestro da
vítima iniciou-se com sua designação, em 28 de setembro de 1970,




45 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 71.
46 Ustra, Rompendo o
Silêncio, op. cit., p. 73.




28





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




para assumir o Comando do DOI/CODI/SP47. Tinha sob sua responsabilidade “um

efetivo de 250 homens”, sendo quarenta do Exército e o restante composto por

membros das Policias Civil e Militar dos Estados48.




O denunciado promoveu a reforma do prédio49 onde a vítima
foi vista pela
última vez, e efetuou, segundo suas próprias palavras, “uma
completa
reformulação quanto ao pessoal, à estrutura organizacional, à
segurança, aos
meios de comunicação, ao armamento, às viaturas e às
instalações”50. Seu
objetivo era “procurar os terroristas onde quer que eles
estivessem”51,
porém não necessariamente instaurar um procedimento inquisitivo
contra eles,
uma vez que era prática corrente no DOI/CODI/SP a manutenção
clandestina de
suspeitos em suas dependências, sem nenhuma comunicação
formal a quem quer
que fosse, circunstância que, por si só, já afasta qualquer
traço de
legalidade na conduta imputada ao denunciado USTRA.




Segundo o denunciado, a partir da reestruturação dos
órgãos de repressão
política, promovida a partir de 1970:




“As prisões dos terroristas foram acontecendo em um ritmo
crescente.
Enfim, começávamos a dar uma resposta à altura às
ações terroristas da
Guerrilha Revolucionária. Os presos, ao
serem interrogados, iam
‘entregando’, isto é, iam contando tudo a
respeito de suas organizações.
Assim ficávamos conhecendo o
nome correto dos seus militantes, quais as
ações que eles tinham
tomado parte, a localização dos ‘aparelhos’, isto é,
do local onde
os terroristas residiam na clandestinidade, e onde guardavam





47 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 130.
48 Ustra, Rompendo o
Silêncio, op. cit., p. 127.
49 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 139.

50 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 131.
51 Ustra, Rompendo o
Silêncio, op. cit., p. 139.




29





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




armamentos, munições, explosivos, etc.... Enfim, a cada
interrogatório de
um militante preso o nosso arquivo era ampliado
com preciosas informações.
Isso, evidentemente, estava
colocando em risco a vida das Organizações
Terroristas. Era,
portanto, necessário retirar o quanto antes, os seus
companheiros
que na prisão estavam ‘abrindo’, isto é, contando tudo.”52




Os métodos empregados pelas três equipes de
interrogatório subordinadas
ao denunciado USTRA estão suficientemente
descritos no tópico anterior.




Quanto aos fatos objeto da presente denúncia, imputa-se
precisamente a
CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA a autoria e o domínio
de fato penalmente
típico consistente na privação ilegal da liberdade da
vítima Aluízio Palhano
Pedreira Ferreira, mediante sequestro, em caráter
permanente, desde o dia 06
de maio de 1971 (à exceção de dois dias, entre
13 e 15 de maio do mesmo ano)
até a presente data, inicialmente nas
dependências do DOI-CODI-SP, onde o
denunciado era comandante
operacional até 23 de janeiro de 1974, e depois em
local ignorado.




Imputa-se ao denunciado CARLOS USTRA, ainda, a
autoria intelectual,
mediante instigação, e a omissão, na condição de
garante, nos maus-tratos
provocados pelo denunciado DIRCEU GRAVINA,
que ocasionaram gravíssimo
sofrimento físico e moral na vítima,
circunstância qualificadora do delito
do art. 148 do Código Penal.




52 Ustra, Rompendo o Silêncio, op. cit., p. 73.




30





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




A autoria delitiva imputada ao denunciado CARLOS
ALBERTO BRILHANTE USTRA
está demonstrada nos autos pelos seguintes
elementos de convicção:




a) declaração de Altino Dantas Júnior constante a fls. 255,
na qual se
lê: “O comandante Ustra não participava diretamente das sessões de
tortura.
Ele entrava durante as sessões, quando o declarante estava pendurado
ou
levando choques, e dizia: ‘ele está mentindo, façam ele falar’.”;




b) declaração da mesma testemunha, a fls. 257, segundo a
qual, na
terceira vez que viu a vítima no DOI-CODI-SP, ouviu o denunciado
USTRA
mandar o codenunciado DIRCEU GRAVINA retirar o corpo inerte da
vítima
Aluízio Palhano do pátio: “Não quero esse negócio aqui.”;




c) declaração da testemunha Lenira Machado, a fls. 446 dos
autos, segundo
a qual: “Não se recorda de ter sido torturada por USTRA, mas ele
comparecia
à sala de torturas e via tudo o que acontecia. USTRA, antes da
sessão de
torturas, vinha conversar com o preso, perguntando por que não
colaborava.”;





d) declaração da testemunha Lenira Machado, a fls. 516,
segundo a qual:
“O Dr. Tibiriçá (CARLOS USTRA) não participava diretamente
das sessões de
tortura. Ele entrava na sala de torturas com um papel na mão,
contendo as
perguntas que deveriam ser feitas para o interrogando. USTRA então

perguntava para o interrogando: ‘não quer falar antes que comecem a
trabalhar?”;




e) declaração de Laurindo Martins Junqueira Filho, a fls. na
qual consta:
“USTRA era o Comandante da unidade e assistiu minha tortura,




31





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




assistiu a tortura do meu companheiro que estava comigo. (...) Ele era o

comandante da unidade da tortura e orientava essa tortura pessoalmente.”





f) declaração da testemunha Maria Amélia de Almeida Teles,
a fls. 557,
segundo a qual: “foi quando viu pela primeira vez, nos degraus de cima
da
delegacia, o coronel CARLOS USTRA, que estava lá dando ordens. (...) Via-se

que ele era o homem que mandava ali. A testemunha indagou a USTRA como ele

deixava acontecer aquelas coisas lá. USTRA, então, bateu com toda a força na

testemunha, e a jogou no pátio, dizendo para seus subordinados: ‘Pega essa

terrorista aí.”;




g) declaração da testemunha Ivan Akselrud de Seixas, a fls.
562, segundo
a qual: “O comandante [do DOI-CODI-SP], na época, era o Dr.
Tibiriçá, que
depois se soube chamar CARLOS ALBERTO USTRA”;




h) declaração da mesma testemunha, a fls. 563, segundo a
qual: “Lembra
ainda que, nessa ocasião, houve uma discussão entre dois agentes
que queriam
torturar o declarante e seu pai. USTRA apareceu, perguntou qual o
motivo da
discussão, e determinou que o torturado fosse o pai do declarante”;




i) declaração da mesma testemunha, a fls. 564, segundo a
qual: “Logo
depois viu o comandante USTRA dirigir a limpeza do local onde [o
preso
político Luiz Eduardo] Merlino foi torturado. USTRA dizia: ‘limpa ali que tem

sangue.”;




j) declaração da testemunha Elzira Vilela, a fls. 577, segundo
a qual
“foram levados ao DOI-CODI, que à época era comandado pelo major
CARLOS
USTRA”;




32





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




k) declaração da testemunha Paulo de Tarso Vanucchi, a fls.
476-477,
segundo a qual “o major USTRA era o comandante que determinava
tudo o que
podia, o que devia ser feito lá e o que não tinha”;




l) declaração da mesma testemunha, a fls. 480-482,
segundo a qual: “em
junho de 72, eu retornei pela sexta vez ao DOI-CODI, e fui
submetido a uma
sessão de tortura comandada pessoalmente por ele [USTRA],
não mais para
confissão, e sim porque nós estávamos em greve de fome,
exigindo um
tratamento compatível com a dignidade humana e a dignidade dos
presos
políticos. (...) Esta sessão foi comandada pessoalmente por USTRA, em
junho
de 72”;




m) declaração da testemunha José Damião de Lima
Trindade, a fls., 569,
segundo a qual “recorda-se que o comandante do DOICODI,
à época, era
conhecido pelo nome de Major Tibiriçá, tendo posteriormente
tomado
conhecimento de que se tratava do coronel CARLOS ALBERTO
BRILHANTE USTRA.





Está, dessa forma, devidamente demonstrado nos autos que




o denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, na qualidade de
comandante
do DOI-CODI-SP na época do início da execução da conduta, é o
mentor
intelectual e mantem pleno domínio do fato criminoso objeto da presente

imputação.
33





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




2.2. Denunciado DIRCEU GRAVINA.
O denunciado DIRCEU GRAVINA (vulgo “J.C.”
ou “Jesus
Cristo”) integrava juntamente com outros indivíduos ainda não
totalmente
identificados, uma das equipes de interrogatórios do DOI-CODI-SP
nos anos de
1971 e 1972.




Ao menos desde 197553 o Estado tinha conhecimento de
representações de
presos políticos apontando “J.C” como notório torturador
daquele
destacamento.




Quanto aos fatos objeto da presente denúncia, imputa-se
precisamente ao
denunciado a coautoria na conduta penalmente típica
consistente na privação
ilegal da liberdade da vítima Aluízio Palhano
Pedreira Ferreira, mediante
sequestro, em caráter permanente, desde o dia
06 de maio de 1971 até a
presente data, inicialmente nas dependências do
DOI-CODI-SP, e depois em
local ignorado.




Imputa-se ainda ao denunciado DIRCEU GRAVINA a
autoria, em ao menos uma
ocasião, dos maus-tratos que ocasionaram
gravíssimo sofrimento físico e
moral na vítima, circunstância qualificadora
do delito do art. 148 do Código
Penal.




A autoria delitiva imputada ao denunciado GRAVINA está
demonstrada nos
autos pelos seguintes elementos de convicção:




53 Os dois denunciados são mencionados na representação formulada por presos
políticos e
encaminhada ao Ministro Chefe da Casa Civil, pela OAB, nos
seguintes termos: “1 – Major da
Infantaria do Exército Carlos Alberto
Brilhante Ustra – “Dr. Tibiriçá” – comandante do CODI/DOI
(OBAN), no período
de 1970/1974. Atualmente é tenente-coronel na 9a RM, Campo Grande (...).




34





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




a) termo de declarações de Altino Dantas Jr., a fls. 255-256
dos autos,
no qual se lê: “DIRCEU GRAVINA, policial do DEIC, era o pior
torturador. O
sistema de tortura no DOI-CODI era feito em três turnos e por três
equipes
diferentes: A, B, e C. Eram 6 ou 7 agentes para cada equipe.”;




b) termo de declarações da mesma testemunha, a fls. 258,
no qual se lê:
“a terceira vez que viu Aluízio ocorreu alguns dias mais tarde.
Nesse dia,
ouviu Aluízio ser barbaramente torturado na sala do lado, por DIRCEU
GRAVINA
e outros integrantes daquela equipe, e depois ouviu Aluízio ser jogado

quase inerte no pátio da delegacia a pontapés. Aluízio já não conseguia falar”;





c) termo de declarações da mesma testemunha a fls. 258
dos autos, no qual
se lê: “No último dia em que viu Aluízio, ouviu GRAVINA dizer:
‘acabamos de
matar o seu amigo, agora é a sua vez. Em seguida o declarante foi
levado
para a sala de tortura e lá foi novamente torturado”;




d) termo de declarações de Lenira Machado, a fls. 517 dos
autos, na qual
se lê: “[A declarante] tem a impressão de que foi a equipe de
GRAVINA quem o
torturou [a vítima Aluízio Palhano]. Isso porque sempre que
havia sessão de
pau de arara era a equipe de GRAVINA que estava envolvida”;




e) documento encaminhado por Altino Dantas Júnior ao
Ministro do Superior
Tribunal Militar General Rodrigo Otávio Jordão Ramos, em 1o
de agosto de
1978, na qual a testemunha noticia ter presenciado o sequestro e
maus tratos
sofridos pela vítima Aluízio Palhano. No documento, lê-se: “Alguns
minutos
após [a sessão de sevícias sobre a vítima], fui conduzido a essa mesma




88 – Dirceu, “Jesus Cristo”, “JC” – da Equipe A do interrogatório do CODI/DOI
(OBAN) no período
de 1971/1972. Anteriormente foi fotógrafo e auxiliar de
interrogatório do DOPS/SP, em 1970.”




35





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




sala de torturas, que estava suja de sangue mais do que de costume. Perante

vários torturadores, particularmente excitados naquele dia, ouvi de um
deles,
conhecido pelo codinome de “JC” (cujo verdadeiro nome é DIRCEU
GRAVINA), a
seguinte afirmação: ‘Acabamos de matar o seu amigo, agora é a
sua vez’. Ato
contínuo começaram a me torturar, por puro sadismo ou para
descarregar sua
excitação criminosa, pois nenhuma pergunta me era feita.
(...)”54;




f) termo de declarações de Lenira Machado, a fls. 516 dos
autos, no qual
se lê: “Foi barbaramente torturada, com choques, pau de arara,
cadeira do
dragão, e telefone. Em uma dessas ocasiões, o agente JC, que depois
veio a
saber tratar-se de DIRCEU GRAVINA, estava torturando a declarante com

choques quando a declarante conseguiu soltar as suas mãos e o abraçou.

DIRCEU levou um choque, bateu o rosto e foi obrigado a ir ao hospital.
Quando
voltou, mandou pendurarem a Declarante no pau de arara a uma altura
de 1,80
metros e depois a soltaram. A declarante caiu com violência no chão
e bateu a
coluna, sofrendo uma paralisia de natureza permanente.”;




g) declaração da testemunha Maria Amélia de Almeida
Telles, a fls. 558
dos autos, na qual consta: “Lembra-se que foi torturada pelas
seguintes
pessoas: Aparecido Laerte Calandra, Pedro Gracieri, DIRCEU
GRAVINA (JC),
‘Gaeta’ ou ‘Mangabeira’, ‘Jacó’, ‘Albernaz’ e ‘Mário’;




h) declaração da testemunha José Damião de Lima
Trindade, a fls. 569 dos
autos, segundo a qual “não sabe dizer o nome completo
dos agentes que o
torturaram, mas recorda-se que naquela época trabalhavam
naquele órgão
agentes cujos apelidos eram: JC ou ‘Jesus Cristo’ (que na época
era
estudante do Mackenzie, usava cabelos compridos e durante as sessões de

tortura gritava muito) (...)”;




54 Fls. 230 dos autos.




36





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




Está, desse modo, devidamente demonstrado nos autos que o
denunciado
DIRCEU GRAVINA é coautor da conduta objeto da presente
imputação, tendo
diretamente participado dos maus-tratos cometidos contra a
vítima
sequestrada, incorrendo desta forma, também nas penas do art. 148, § 2o,
do
Código Penal brasileiro.




3. Pedido.
Por tais fundamentos de fato e de direito, estando plenamente

demonstrada a autoria e materialidade do sequestro qualificado da vítima
Aluízio
Palhano Pedreira Ferreira, o Ministério Público Federal DENUNCIA
CARLOS
ALBERTO BRILHANTE USTRA e DIRCEU GRAVINA como incursos nas
penas
do art. 148, § 2º, c.c. o art. 29, ambos do Código Penal brasileiro, razão

pela qual requer seja instaurada a competente ação penal e citados os

denunciados, nos termos do Código de Processo Penal, até final condenação,
na
forma da Lei.




Desde logo requer o Ministério Público Federal o
reconhecimento, em
relação aos dois denunciados, das circunstâncias
agravantes indicadas no
art. 61, inciso II, alíneas “d” (“emprego de tortura e
outros meios
insidiosos e cruéis”); “f” (abuso de autoridade); “g” (abuso de
poder e
violação de dever inerente a cargo e função, consistente na
manutenção
clandestina da vítima em prédio público federal); e “i” (ofendido
estava sob
a imediata proteção da autoridade) do Código Penal
(correspondentes ao art.
44, I, “e”, “g”, “h” e “j” da antiga Parte Geral do Código
Penal).




37





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




Em relação ao denunciado USTRA, requer o Ministério
Público Federal,
ainda, o reconhecimento da circunstância agravante
indicada no art. 62,
inciso I, do Código Penal, uma vez que ele promoveu e
organizou a cooperação
do denunciado GRAVINA no crime, além de dirigir
suas atividades
(correspondente ao art. 45, I, da antiga Parte Geral do Código
Penal).




Requer, outrossim, a oitiva das testemunhas abaixo arroladas,
para
prestar depoimento sob as penas da lei.




São Paulo, 23 de abril de 2012.




THAMEA DANELON DE MELO SERGIO GARDENGHI SUIAMA
Procuradora da República
Procurador da República




EUGENIA AUGUSTA GONZAGA IVAN CLÁUDIO MARX
Procuradora da República
Procurador da República




38





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da
República em São Paulo




ANDREY BORGES DE MENDONÇA TIAGO MODESTO RABELO
Procurador da República
Procurador da República




ANDRÉ CASAGRANDE RAUPP INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES
Procurador da República
Procuradora da República




39

DENÚNCIA DO MPF CONTRA USTRA E GRAVINA (1) - QUESTÕES JURÍDICAS PRELIMINARES




Denúncia do Ministério Público Federal contra os torturadores Carlos Alberto Brilhante Ustra e Dirceu Gravina. Esta peça discute as questões jurídicas preliminares, como a caracterização de crime permanente e  a relação entre a decisão do STF sobre a Lei de Anistia e a decisão da Corte Interamericana




MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



__ª Vara Criminal Federal da Subseção Judiciária de São Paulo

Autos n.
1.34.001.001785/2009-31

Denúncia n.o 31.107/2012



MM. Juiz:



1. O Ministério Público Federal oferece, em separado, denúncia em face de


CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e DIRCEU GRAVINA, imputando-lhes

o crime
tipificado no art. 148, §2º, c.c. o art. 29, ambos do Código Penal, praticado


contra a vítima Aluízio Palhano Pedreira Ferreira.

2. PRELIMINARMENTE,
suscita o Autor as seguintes questões de direito.



MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República em São Paulo




2.1. Natureza permanente e atual do crime de sequestro da vítima.

A
denúncia imputa a CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e

a DIRCEU GRAVINA a
autoria do sequestro qualificado de Aluízio Palhano

Pedreira Ferreira, crime
cuja execução, iniciada em 06 de maio de 1971, ainda

está em consumação,
segundo restou provado nos autos.



Como é sabido, o crime de sequestro, tipificado no art. 148 do

Código
Penal, é delito de natureza permanente1, uma vez que sua consumação

se
protrai no tempo, pelo período de duração da privação ilegal da liberdade da


vítima.



No caso dos autos, as provas amealhadas comprovam de forma

cabal a
privação ilegal da liberdade de Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, a

partir
de 06 de maio de 1971, em estabelecimento público federal localizado nesta


Subseção Judiciária, sob o domínio, dentre outras pessoas ainda não


identificadas, dos dois denunciados.



Por outro lado, as provas dos autos não confirmam a morte da

vítima. A
mera possibilidade de que Aluízio Palhano tenha sido executado ou, em

razão
do tempo decorrido, esteja morto por outros motivos, é imprestável para


afastar a tipificação dos fatos como crime de sequestro qualificado, pois, a
teor do

art. 158 do Código de Processo Penal, “quando a infração deixar
vestígios, será

indispensável o exame de corpo de delito, direto ou
indireto”; e a teor do art. 7o do



1 Como salienta Aloysio de Carvalho Filho, nos crimes permanentes, “o estado
violador da lei se

prolonga sem intervalos, numa duração, digamos assim, sem
colapsos e sem limites, e a qualquer

momento o crime está sendo cometido,
porque esse ininterrupto estado antijurídico é que é,

exatamente, o crime.”
(Comentários ao Código Penal, v. IV, Rio de Janeiro, Forense, 1944, p.

315).






MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Código Civil brasileiro, a declaração de morte presumida somente poderá ser


obtida “depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença


[judicial de morte] fixar a data provável do falecimento”. Sem estes
elementos,

não é juridicamente possível afirmar que a vítima está morta ou
quando tal evento

teria supostamente acontecido.



É exatamente este o entendimento adotado pelo Supremo

Tribunal Federal no
julgamento das Extradições 9742 e 11503, requeridas pelo

Estado argentino,
tendo o tribunal, em ambos os casos, deferido o pedido para

determinar a
devolução de agentes acusados de sequestro de dissidentes

políticos no país
vizinho, igualmente iniciados durante a década de 1970.



Na Extradição 1150, o Ministro Ricardo Lewandowski asseverou

que “embora
tenham passado mais de trinta e oito anos do fato imputado ao

extraditando
[sequestro e desaparecimento forçado de presos políticos naquele

Estado], as
vítimas até hoje não apareceram, nem tampouco os respectivos

corpos, razão
pela qual não se pode cogitar, por ora, de homicídio”.



No mesmo julgamento, o Ministro Cezar Peluso foi ainda mais

específico,
ao asseverar que, em casos de “desaparecimento” de pessoas



2 STF – Pleno – Extradição 974 – rel. Min. Ricardo Lewandowski – j. 06.08.09
– DJE 04.12.09.

3 Cuja ementa é a seguinte: “Extradição Instrutória. Prisão
preventiva decretada pela Justiça

Argentina. Tratado específico. Requisitos
atendidos. Extraditando investigado pelos crimes de

homicídio qualificado
pela traição (‘homicídio agravado pela aleivosia e por el número de


participes’) e sequestro qualificado (‘desaparición forzada de personas’).
Dupla tipicidade atendida.

Extinção da punibilidade dos crimes de homicídio
pela prescrição. Procedência. Crime permanente

de sequestro qualificado.
Inexistência de prescrição. Alegações de ausência de documentação.

Crime
militar ou político. Tribunal de Exceção e eventual indulto: improcedência.
Extradição

parcialmente deferida. (…). 4. Requisito da dupla tipicidade,
previsto no art. 77, inc. II, da Lei n.

6.815/1980 satisfeito: fato
delituoso imputado ao Extraditando correspondente, no Brasil, ao crime

de
sequestro qualificado, previsto no art. 148, § 1º, inc. III, do Código Penal.
(...) 6. Crime de

sequestro qualificado: de natureza permanente, prazo
prescricional começa a fluir a partir da

cessação da permanência e não da
data do início do sequestro. Precedentes.” (STF – Pleno Extradição

1.150 –
rel. Ministra Carmen Lúcia – j. 19.05.11 – DJE 17.06.11).





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



sequestradas por agentes estatais, somente uma sentença na qual esteja fixada
a

data provável do óbito é apta a fazer cessar a permanência do crime de
sequestro

pois, sem ela, “o homicídio não passa de mera especulação, incapaz
de

desencadear a fluência do prazo prescricional”:



“[P]ara que exsurja considerável presunção legal de morte, não

basta o
mero juízo de extrema probabilidade da morte de quem

estava em perigo de
vida (art. 7o, inc. I, do Código Civil), havendo

mister a existência de
sentença que, depois de esgotadas as

buscas e averiguações, produzidas em
procedimento de

justificação judicial, fixe a data provável do falecimento”
(§ único).

(...) Em outras palavras, essa norma não incide na espécie,


simplesmente porque se lhe não reuniram os elementos de seu suporte


fático (fattispecie concreta), donde a idéia de homicídios não passar,


ainda no plano jurídico, de mera especulação, incapaz de desencadear


fluência do prazo prescricional.

E incapaz de o desencadear ainda por
outro motivo de não menor peso.

É que, à falta de sentença que, como predica
o art. 7o, (§ único, do

Código Civil, deve fixar a data provável do
falecimento, bem como na

carência absoluta de qualquer outro dado ou prova a
respeito, não se

saberia quando entraram os prazos de prescrição da
pretensão punitiva

de cada uma das mortes imaginadas ou de todas, que
poderiam dar-se,

como sói acontecer, em datas diversas, salva cerebrina
hipótese de

execução coletiva! E, tirando o que nasce de fabulações, de modo


algum se poderia sustentar, com razoável pretensão de consistência,


hajam falecido todas as pessoas que, segundo a denúncia, teriam sido


seqüestradas, e, muito menos, assentar-lhes as datas prováveis de

cada
óbito”.



Não é demais lembrar que o STF, nos termos do art. 77 da Lei

6.815/80,
não poderia conceder a extradição se “o fato que motivar o pedido não





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente” (inciso III) ou se
“estiver

extinta a punibilidade pela prescrição, segundo a lei brasileira ou
a do Estado

requerente.” (inciso VI).



Assim, até a edição de sentença judicial que, após esgotadas as

buscas e
averiguações, seja capaz de precisar a data do eventual falecimento da


vítima, remanesce Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, para fins penais,


privado ilegalmente de sua liberdade, sob o poder e responsabilidade dos


dois denunciados, uma vez que era esta a situação em que se encontrava


quando foi visto pela última vez.



Não se desconhece, obviamente, o conteúdo da Lei nº 9.140/95,

cujo texto
reconhece a vítima Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e outros 135


dissidentes políticos como mortos.



Ocorre, todavia, que a norma em questão foi editada com o

simples
objetivo de favorecer os familiares dos desaparecidos políticos,


possibilitando-lhes o recebimento de reparações pecuniárias e também a
prática

de atos de natureza civil, notadamente nas áreas de família e
sucessões. Não

tinha em sua origem nenhuma pretensão de eliminar os bens
jurídicos liberdade e

integridade física da vítima, tutelados pelo art. 148
do Código Penal. Seria, aliás,

realmente impensável que o Estado pudesse
decretar a morte de uma pessoa por

intermédio de uma lei.



Nem mesmo para fins civis a mencionada lei institui a presunção

absoluta
de óbito, tanto que o seu art. 3o, parágrafo único, determina que “em

caso
de dúvida, será admitida justificação judicial”, o que mostra a natureza


relativa da declaração de morte efetuada pela lei. Se mesmo para fins


sucessórios e de reparações monetárias a lei admite a dúvida a respeito do






MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



evento morte e suas circunstâncias, como é possível impedir a persecução
penal

de conduta típica, antijurídica e culpável que se encontra em plena
execução,

apenas com fundamento em uma declaração abstrata legal a
substituir a prova da

morte?



Ainda ad argumentandum, ainda que se entendesse possível

reconhecer que a
morte (presumida) teria ocorrido com o advento da lei, ou seja,

em 1995, nem
assim a prescrição poderia fluir. Isso porque a conduta objeto da

imputação
foi praticada por grupo armado do qual participavam os denunciados,

em
contexto de ataque generalizado e sistemático contra a população civil.


Aplica-se, por esse motivo, o regime de imprescritibilidade determinado pelo
art.

5o, inciso XLIV, da CF/884, já vigente por ocasião da publicação da Lei
9.140/95.

Com efeito, como descrito na denúncia, o sequestro e manutenção
ilegal de

suspeitos em centros de repressão política, por período
indeterminado; o uso

generalizado de aberrantes formas de
tortura/maus-tratos como forma de

obtenção de informações; o
“desaparecimento” e a execução sumária de

dissidentes políticos (muitos,
inclusive, que jamais pegaram em armas); e outros

fatos notórios que não são
objeto da denúncia mas que já foram inclusive

reconhecidos por sentenças
judiciais cíveis, todos estes atos fazem parte de um

sistema de repressão
política a dissidentes que operava contra o regime

constitucional
democrático anterior ao golpe de Estado promovido em 31 de

março de 1964,
contra o Presidente eleito, e contra a própria Emenda

Constitucional
outorgada de 1969. Como argumentado na denúncia, a conduta

imputada aos
denunciados constituía crime até mesmo na ótica do regime vigente


autoritário vigente na data de início da execução, e caracteriza-se, no
entender do



4 Cujo texto é: “XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação
de grupos armados, civis

ou militares, contra a ordem constitucional e o
Estado Democrático”.





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Ministério Público Federal, como parte de um ataque sistemático e
generalizado

de grupos armados contra o sistema democrático vigente antes de
19645.



Ademais, consoante norma expressa contida no art. 158 do

Código Penal,
“quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de

corpo de
delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”



Em referência à suposta morte da vítima, o único elemento de

prova obtido
foi a referência, pela testemunha Altino Dantas Júnior, de ter ouvido



o denunciado DIRCEU GRAVINA lhe dizer que Aluízio Palhano tinha sido morto


sob tortura. Porém, tendo em vista o contexto em que a afirmação foi feita,
não se

pode desconsiderar a possibilidade de que o denunciado GRAVINA a
tenha

pronunciado com fins meramente intimidatórios, não traduzindo
necessariamente

a verdade dos fatos.

Prova material há efetivamente em
relação ao sequestro e aos

maus tratos a que a vítima foi submetida pelos
denunciados. Enquanto não

houver absoluta certeza do óbito, mediante
identificação dos restos mortais da

vítima ou outro meio hábil a determinar
as circunstâncias do evento, descabe

presumi-lo. Caso se comprove o óbito
durante a instrução processual, será

eventualmente o caso de aplicação do
instituto da mutatio libelli, para fins de

readequação ao tipo do homicídio,
em concurso ou não com o sequestro, e

seguido da ocultação do cadáver.



5 1 A respeito, cabe referir a decisão do juiz federal Ali Mazloum (da 7ª
Vara Federal Criminal

Federal de São Paulo, Proc. 2009.61.81.013046-8) em
que não aceitou pedido de arquivamento a

respeito de crime permanente
(ocultação de cadáver), ocorrido na década de 70, em razão de seu

caráter
permanente (o que afastaria a aplicação da anistia e da prescrição). Inclusive,
afirmou o

juiz que, durante o curso da consumação desse crime, surgiu uma
nova norma que previu sua

imprescritibilidade. Aqui o juiz faz referência
justamente ao art. 5º, inc. XLIV da CF/88, referindo

que o crime investigado
se amoldava perfeitamente à norma constitucional, resultando-lhe

aplicável a
imprescritibilidade já que ao momento do surgimento da nova Constituição não
havia

cessado a permanência do crime.





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Em síntese, para fins penais, em razão da ausência de sentença

judicial
(ou mesmo de corpo de delito direto ou indireto) que, após esgotadas as


buscas e averiguações, fixe a data do eventual falecimento da vítima, não há


como se rechaçar a conclusão de que continua Aluízio Palhano Pedreira


Ferreira privado ilegalmente de sua liberdade, sob o poder e
responsabilidade

dos dois denunciados, situação em que se encontrava quando
foi visto pelas

testemunhas ouvidas nos autos.



Ora, uma vez que a peça inicial imputa aos dois denunciados o

cometimento
de crime permanente ainda em execução, verifica-se, a teor do art.

111, inc.
III, do Código Penal, que a contagem do prazo prescricional da

pretensão
punitiva estatal ainda não se iniciou.



Pelas mesmas razões – natureza permanente e atual do crime

objeto da
imputação –, conclui-se que a Lei de Anistia editada em 1979 não

beneficia
os ora denunciados. Isto porque o art. 1º da Lei 6.683/79 limitou a

extensão
de seus efeitos aos fatos ocorridos entre 02 de setembro de 1961 e 15

de
agosto de 1979. Sendo assim, os delitos permanentes não exauridos antes de


1979 estão fora do âmbito normativo da Lei de Anistia.



Uma vez que o crime permanente imputado ao denunciado

permaneceu em
execução após 1979, está ele excluído do benefício legal, já que

extrapolou
os limites temporais estabelecidos pela própria lex mitior.



A ratio ora invocada, aliás, é a mesma adotada pelo E. Supremo

Tribunal
Federal, na Súmula 711: "A Lei penal mais grave aplica-se ao crime


continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação
da

continuidade ou da permanência”.





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Não está o Autor, portanto, questionando a constitucionalidade da

Lei
6.683/79 -matéria já decidida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento


da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 -mas sim, tão


somente, postulando, em conformidade à jurisprudência do c. STF, a
incidência

do art. 111, inciso III, do Código Penal e da Súmula 711 do STF
ao presente caso.



2.2. Efeitos jurídicos, para o presente caso, da sentença da Corte


Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund vs. Brasil.

Ad
argumentandum, ainda que se entenda, por qualquer motivo,

que o fato
imputado aos denunciados já se encontre exaurido, sustenta o

Ministério
Público Federal que a pretensão punitiva estatal não está extinta. Não

se
pode ignorar o efeito vinculante da sentença da Corte Interamericana de


Direitos Humanos -órgão jurisdicional do sistema interamericano -no caso


Gomes Lund (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, proferida em 24 de novembro
de

2010. Especificamente, no ponto resolutivo n.o 3 da sentença judicial, o
tribunal

em questão declarou, com efeitos erga omnes, que “as disposições da
Lei de

Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves
violações

de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana,


carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um


obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a


identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou


semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de



direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no

Brasil”.


Transcrevemos, a propósito, a decisão que rejeitou o



arquivamento indireto promovido pelo Procurador original do presente feito:






MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



No que se refere aos casos especificamente tratados na sentença,

todos
eles relacionados à chamada “Guerrilha do Araguaia”, não há

qualquer dúvida
quanto à necessidade do cumprimento das

determinações lá contidas. Afinal, o
Brasil é Estado Parte da Convenção

Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
de San José da Costa Rica)

desde 25 de setembro de 1991, tendo sido a
Convenção incorporada ao

ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto no
678, de 6 de novembro

de 1992, impondo-se, assim, o reconhecimento de sua
vigência,

inclusive com status superior ao da legislação infraconstitucional
(art.

5o, parágrafo 3o da Constituição da República, incluído pela Emenda


Constitucional no 45, de 2004 e RE 466.343-SP12). E, nos expressos


termos do artigo 68 da Convenção:

“1. Os Estados-Partes na Convenção
comprometem- se a cumprir a

decisão da Corte em todo caso em que forem
partes.

(...).

Os presentes autos não se referem, especificamente, é
verdade, a um

dos casos objeto da sentença da Corte, ora referida.
Consigne-se,

entretanto, que as análises, conclusões e determinações da
Corte

Interamericana de Direitos Humanos adotadas na sentença de 24 de


novembro de 2010, relativa ao Caso da Guerrilha do Araguaia, são


perfeitamente aplicáveis in casu. É que lá, como aqui, tratava-se de


desaparecimentos forçados ocorridos no período da ditadura militar,


ainda não esclarecidos e cujos responsáveis ainda não foram


identificados e/ou punidos, não se concebendo que sejam

desconsideradas
aquelas colocações.

Saliente-se, pois, que, ao submeter o caso à jurisdição
da Corte, a

Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmou se tratar de




“uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência


interamericana sobre as leis de anistia com relação aos

desaparecimentos
forçados e à execução extrajudicial e a consequente





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



obrigação dos Estados de dar a conhecer a verdade à sociedade e


investigar, processar e punir graves violações de direitos humanos”. A


Comissão também enfatizou o valor histórico do caso e a possibilidade

de
o Tribunal afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia e das leis

sobre
sigilo de documentos com a Convenção Americana” (parágrafo 1

da sentença).


Dentro desse contexto, ao final de todo o processado, a Corte concluiu


que, “entre os anos 1972 e 1974, na região conhecida como Araguaia,


agentes estatais foram responsáveis pelo desaparecimento forçado de

62
pessoas identificadas como supostas vítimas do presente caso.

Transcorridos
mais de 38 anos, contados do início dos

desaparecimentos forçados, somente
foram identificados os restos

mortais de duas delas. O Estado continua sem
definir o paradeiro das

60 vítimas desaparecidas restantes, na medida em
que, até a presente

data, não ofereceu uma resposta determinante sobre seus
destinos”.



Salientou, então, que “A esse respeito, o Tribunal reitera que o


desaparecimento forçado tem caráter permanente e persiste

enquanto não
se conheça o paradeiro da vítima ou se encontrem

seus restos, de modo que se
determine com certeza sua

identidade” (parágrafo 121 da sentença).

Vale
transcrever o entendimento da Corte sobre o desaparecimento

forçado de
pessoas – de que se trata, também nos casos destes autos



– contido no parágrafo 122:

122. Do mesmo modo, a Corte reitera que o
desaparecimento forçado

de pessoas constitui uma violação múltipla que se
inicia com uma

privação de liberdade contrária ao artigo 7 da Convenção


Americana. Como estabeleceu o Tribunal, a sujeição de pessoas

detidas a
órgãos oficiais de repressão, a agentes estatais ou a

particulares que atuem
com sua aquiescência ou tolerância, que

impunemente pratiquem a tortura ou
assassinato, representa, por

si mesmo, uma infração ao dever de prevenção de
violações dos



MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


Procuradoria da República em São Paulo



direitos à integridade pessoal e à vida, estabelecidos nos artigos 5

e 4
da Convenção Americana, ainda na hipótese em que os atos de

tortura ou de
privação da vida destas pessoas não possam ser

demonstrados no caso
concreto. Por outro lado, desde seu primeiro

caso contencioso, a Corte
também afirmou que a prática de

desaparecimento implicou, com frequência, na
execução dos

detidos, em segredo e sem fórmula de julgamento, seguida da


ocultação do cadáver, com o objetivo de apagar toda pista material

do
crime e de procurar a impunidade dos que o cometeram, o que

significa uma
brutal violação do direito à vida, reconhecido no

artigo 4 da Convenção.
Esse fato, unido à falta de investigação do

ocorrido, representa uma
infração de um dever jurídico a cargo do

Estado, estabelecido no artigo 1.1
da Convenção, em relação ao artigo



4.1 do mesmo instrumento, qual seja, o de garantir a toda pessoa

sujeita
a sua jurisdição a inviolabilidade da vida e o direito a não ser

dela
privado arbitrariamente. Finalmente, a Corte concluiu que o

desaparecimento
forçado também implica a vulneração do direito

ao reconhecimento da
personalidade jurídica, estabelecido no

artigo 3 da Convenção Americana, uma
vez que o desaparecimento

busca não somente uma das mais graves formas de
subtração de

uma pessoa de todo o âmbito do ordenamento jurídico, mas


também negar sua existência e deixá-la em uma espécie de limbo

ou
situação de indeterminação jurídica perante a sociedade e o

Estado”.

Por
isso, a Corte Interamericana concluiu que “o Estado é responsável

pelo
desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao


reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal


e à liberdade pessoal, estabelecidos” na Convenção Americana sobre


Direitos Humanos, em relação às pessoas que foram especificadas


(parágrafo 125 da sentença).

(...)





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Tendo, pois, a Corte concluído que houve práticas atentatórias aos


direitos previstos no Pacto de San José da Costa Rica, passou a


discorrer sobre as obrigações do Brasil, decorrentes dessa situação,


cabendo transcrever aqui, por sua inteira pertinência, aquelas referidas


na letra C, do Capítulo VIII da sentença:



“C. Obrigação de investigar e, se for o caso, punir graves violações

de
direitos humanos no Direito Internacional



137. Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a importância

do
dever estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos.

A
obrigação de investigar e, se for o caso, julgar e punir, adquire

particular
importância ante a gravidade dos crimes cometidos e a

natureza dos direitos
ofendidos, especialmente em vista de que a

proibição do desaparecimento
forçado de pessoas e o correspondente

dever de investigar e punir aos
responsáveis há muito alcançaram o

caráter de jus cogens.

(...)

140.
Além disso, a obrigação, conforme o Direito Internacional, de

processar e,
caso se determine sua responsabilidade penal, punir os

autores de violações
de direitos humanos, decorre da obrigação de

garantia, consagrada no artigo
1.1 da Convenção Americana. Essa

obrigação implica o dever dos Estados Parte
de organizar todo o

aparato governamental e, em geral, todas as estruturas
por meio

das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal


que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno

exercício
dos direitos humanos. Como consequência dessa

obrigação, os Estados devem
prevenir, investigar e punir toda

violação dos direitos humanos reconhecidos
pela Convenção e

procurar, ademais, o restabelecimento, caso seja possível,
do

direito violado e, se for o caso, a reparação dos danos provocados


pela violação dos direitos humanos. Se o aparato estatal age de

modo que
essa violação fique impune e não se restabelece, na



MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República em São Paulo




medida das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos,

pode-se
afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas

sujeitas a sua
jurisdição o livre e pleno exercício de seus direitos”.



Tendo sido assim demonstradas as obrigações do Estado, foram, ao

final,
estabelecidas as medidas destinadas a garantir seu cumprimento

(capítulo XI
da sentença, denominado “Reparações”). Desse capítulo,

cumpre transcrever
especialmente os parágrafos 256 e 257:



“256. No Capítulo VIII da presente Sentença, a Corte declarou a

violação
dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, em

virtude da
falta de investigação, julgamento e eventual sanção dos

responsáveis pelos
fatos do presente caso. Tomando em consideração



o anteriormente exposto, bem como sua jurisprudência, este Tribunal


dispõe que o Estado deve conduzir eficazmente a investigação

penal dos
fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los,

determinar as
correspondentes responsabilidades penais e aplicar

efetivamente as sanções e
consequências que a lei disponha. Essa

obrigação deve ser cumprida em um
prazo razoável, considerando

os critérios determinados para investigações
nesse tipo de caso,

inter alia:

(...)

b) determinar os autores
materiais e intelectuais do

desaparecimento forçado das vítimas e da
execução extrajudicial.

Ademais, por se tratar de violações graves de
direitos humanos, e

considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado
ou

permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá

aplicar a
Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como

nenhuma outra disposição
análoga, prescrição, irretroatividade da

lei penal, coisa julgada, ne bis in
idem ou qualquer excludente

similar de responsabilidade para eximir-se dessa
obrigação,



MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


Procuradoria da República em São Paulo



nos termos dos parágrafos 171 a 179 desta Sentença, (...)



257. Especificamente, o Estado deve garantir que as causas penais

que
tenham origem nos fatos do presente caso, contra supostos

responsáveis que
sejam ou tenham sido funcionários militares,

sejam examinadas na jurisdição
ordinária, e não no foro militar.

Finalmente, a Corte considera que, com
base em sua jurisprudência, o

Estado deve assegurar o pleno acesso e
capacidade de ação dos

familiares das vítimas em todas as etapas da
investigação e do

julgamento dos responsáveis, de acordo com a lei interna e
as normas

da Convenção Americana. Além disso, os resultados dos respectivos


processos deverão ser publicamente divulgados, para que a sociedade


brasileira conheça os fatos objeto do presente caso, bem como aqueles


que por eles são responsáveis.”

Importante destacar que, no curso do
processo, foi levada ao

conhecimento da Corte a decisão proferida pelo
Supremo Tribunal

Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito

Fundamental no 153, em que, ao julgar improcedente o pedido, firmou
o

entendimento de que “a lei estendeu a conexão aos crimes praticados


pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de


exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente


não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados ---e com


sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela

prática
de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.

Em sentido
oposto, porém, a Corte Interamericana decidiu que o Estado

não poderá
aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como

nenhuma outra
disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei

penal, coisa
julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de

responsabilidade
para eximir-se dessa obrigação. Declarou, ainda, no

Ponto Resolutivo no 3
que “As disposições da Lei de Anistia brasileira

que impedem a investigação
e sanção de graves violações de direitos





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de

efeitos
jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a

investigação
dos fatos do presente caso, nem para a identificação e

punição dos
responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante

impacto a respeito de
outros casos de graves violações de direitos

humanos consagrados na
Convenção Americana ocorridos no Brasil”.

E a decisão da Corte
Interamericana é clara e contundente: “O Estado

deve conduzir eficazmente a
investigação penal dos fatos do

presente caso, a fim de esclarecê-los,
determinar as

correspondentes responsabilidades penais e aplicar
efetivamente

as sanções e consequências que a lei disponha. Essa obrigação


deve ser cumprida em um prazo razoável, considerando os

critérios
determinados para investigações nesse tipo de caso”.



Não há, no cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos


Humanos qualquer ofensa à supremacia do Supremo Tribunal Federal,


enquanto órgão de cúpula do Judiciário brasileiro e nem, tampouco,


afronta à soberania brasileira, mesmo em face da decisão antes citada,


na ADPF 153.

Na percuciente análise de André de Carvalho Ramos, “não há
sombra

de subordinação de um órgão judicial nacional a outro internacional,


mesmo quando o ato tido como violador de direitos humanos é uma

decisão
judicial interna. A decisão brasileira, por exemplo, é atacada

não como ato
judicial, sujeito a impugnação e revisão, mas sim como

mero fato, que será
examinado à luz dos tratados internacionais para

posterior responsabilização
do Estado brasileiro” (Processo

Internacional de Direitos Humanos, Renovar,
RJ/SP, p. 345). Por isso, o

fato de se dar cumprimento à decisão da Corte
Interamericana – a que



o Brasil se obrigou, em compromisso internacional inclusive

regularmente
introduzido no ordenamento jurídico nacional – não traz

qualquer
possibilidade de que se interprete ser a Corte Interamericana

superior ao
Supremo Tribunal Federal.



MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL

Procuradoria da República em São Paulo



Quanto à soberania, não se há de cogitar de abalo a ela se é a própria


Constituição que favorece a criação de um Tribunal Internacional de


Direitos Humanos, e prevê, em seu art. 5o, § 2o, que “Os direitos e


garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes

do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados

internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte.



Em abordagem mais específica, pontifica o mesmo autor, na mesma

obra
citada:

“No plano estritamente formal, a sentença internacional não rescinde


nem reforma ato judicial interno, já que inexiste, como apontado,


hierarquia funcional entre os tribunais internos e internacionais. A


sentença internacional, ao ser implementada internamente, suspende a


eficácia do comando judicial interno, como decorrência implícita do


próprio ato.

Assim é que, numa abordagem bastante breve, que é que cabe,
nesta

sede, tem-se que o cumprimento da decisão de 24 de novembro de


2010, da Corte Interamericana de Direitos Humanos há de ser

promovido
pelo Brasil.

E, nos termos dos artigos 127 e 129 da Constituição da
República, não

há qualquer dúvida quanto ao fato de que o cumprimento dessa


obrigação, na parte em que transcrita, e que diz com a persecução

penal,
está dentro das atribuições do Ministério Público Federal, que,

por tudo
quanto até aqui exposto, haverá de nortear sua atuação pelas

diretrizes
traçadas na decisão.

Em voto em separado, no julgamento já invocado, o Juiz
ad hoc

Roberto de Figueiredo Caldas ressaltou que “o caso julgado envolve


debate de transcendental importância para a sociedade e para o Estado


como um todo, particularmente para o Poder Judiciário, que se deparará


com caso inédito de decisão de tribunal internacional diametralmente


oposta à jurisprudência nacional até então pacificada. (...) Portanto, em


prol da garantia da supremacia dos Direitos Humanos, especialmente





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



quando degradados por crimes de lesa-humanidade, faz-se mister

reconhecer
a importância dessa sentença internacional e incorporá-la

de imediato ao
ordenamento nacional, de modo a que se possa

investigar, processar e punir
aqueles crimes até então protegidos por

uma interpretação da Lei de Anistia
que, afinal, é geradora de

impunidade, descrença na proteção do Estado e de
uma ferida social

eternamente aberta, que precisa ser curada com a aplicação


serena mas incisiva do Direito e da Justiça”.



E concluiu:



30. Finalmente é prudente lembrar que a jurisprudência, o costume e a


doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito


interno, tais como as disposições acerca da anistia, as normas de


prescrição e outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um


Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de
lesa-

humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um


indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo

social e
nas transmissões por gerações de toda a humanidade.”

Pelas razões acima
expostas, a inclusa denúncia representa

ato processual voltado ao
cumprimento parcial da obrigação imposta ao

Estado brasileiro pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, na

sentença do caso Gomes Lund vs.
Brasil, consistente no dever de promover

a responsabilização criminal de
autores de grave violação a direitos

humanos cometida por agentes do regime
de exceção. Tem, além disso, o fim

de prevenir futura nova condenação do
Estado brasileiro pela omissão no

cumprimento das obrigações voluntariamente
assumidas junto ao sistema

regional, notadamente no que se refere ao
cumprimento das decisões

emanadas da Corte Interamericana de Direitos
Humanos (art. 68 da

Convenção Americana de DH). Esse dever, de acordo com a
jurisprudência da





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Corte em questão6, decorre da obrigação de garantia prevista no art. 1.1. da


Convenção7 .



2.3. Qualificação do fato imputado aos denunciados como “crime contra a


humanidade”.

Entende o Ministério Público Federal que a pretensão
punitiva

estatal não está extinta também porque o fato imputado aos
denunciados -o

desaparecimento forçado (sequestro) do ex-Presidente do
Sindicato dos

Bancários do Rio de Janeiro, Aluízio Palhano -já era, à época
do início da

execução, qualificado como crime contra a humanidade, razão
pela qual deve

incidir sobre ele as consequências jurídicas decorrentes da
subsunção da conduta

às normas cogentes de direito internacional,
notadamente às que tratam da

imprescritibilidade e da insuscetibilidade de
concessão de anistia a determinadas

condutas atentatórias a direitos
humanos.



A qualificação do fato imputado aos denunciados como “crime

contra a
humanidade” decorre de norma de jus cogens8 que, desde 19459, obriga



6 A respeito, CORTE IDH. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile.
Excepciones Preliminares,

Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de
septiembre de 2006. Serie C, Nº 42, par. 110.7 Artigo 1º - Obrigação de
respeitar os direitos



1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e
liberdades

nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda
pessoa que esteja sujeita a

sua jurisdição, sem discriminação alguma por
motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,

opiniões políticas ou de
qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição

econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social.

8 O costume é fonte de direito
internacional e, nos termos do art. 38 da Convenção de Viena sobre

Direito
dos Tratados, possui força normativa vinculante mesmo em relação a Estados que
não

tenham participado da formação do tratado que reproduza regra
consuetudinária.

9 A primeira formalização do crime contra a humanidade
ocorreu no artigo 6.c do Estatuto do

Tribunal de Nüremberg. Foram
qualificados como crimes dessa natureza os atos desumanos

cometidos contra a
população civil, a perseguição por motivos políticos, o homicídio, o extermínio


e a deportação, dentre outros. A definição de crimes contra a humanidade do
Estatuto do Tribunal

de Nüremberg foi ratificada na primeira sessão da
Assembleia Geral da Organização das Nações

Unidas, em 11 de dezembro de
1946, mediante a Resolução nº 95. Nessa ocasião, a ONU



MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República em São
Paulo



os Estados membros da comunidade internacional a promoverem a


responsabilização criminal dos autores de graves violações a direitos
humanos,

praticadas de modo sistemático contra parcela ou segmento da
população civil.



Segundo jurisprudência assente da Corte Interamericana de

Direitos
Humanos as graves violações a direitos humanos que configuram crimes

contra
a humanidade são caracterizadas pela prática de atos desumanos, como o


homicídio, a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias, e
os

desaparecimentos forçados, cometidos em contexto de ataque generalizado e


sistemático contra uma população civil, em tempo de guerra ou de paz.10.




No caso concreto, o indispensável é destacar que os violentos

crimes
praticados por agentes do Estado em face de dissidentes e suspeitos de


subversão, se subsumem à categoria dos delitos de lesa-humanidade, firmada


juridicamente (com caráter jus cogens) desde o fim da 2ª Guerra Mundial.




Assim, muito antes dos agentes do Estado e membros das Forças

Armadas
perpetrarem, durante a ditadura militar, o sequestro, o homicídio e a


ocultação de cadáveres, no contexto das ações de perseguição e repressão


violenta dos dissidentes políticos, tais condutas já eram reputadas pelo
direito

como crimes contra a humanidade.



Outrossim, certo é que o reconhecimento de um crime contra a

humanidade
implica na adoção de um regime jurídico imune a manobras de

impunidade. Esse
regime especial é, conforme proclamado pela Assembleia



confirmou “(...) os princípios de Direito Internacional reconhecidos pelo
Estatuto do Tribunal de

Nüremberg e as sentenças de referido Tribunal”.



Cf. Caso “Almonacid Arellano y otros Vs. Chile”. “Excepciones Preliminares,
Fondo

Reparaciones y Costas”. Sentença de 26 de setembro de 2006. Série C,
nº 154. Par. 96.

Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.doc>.






MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Geral da ONU, “um elemento importante para prevenir esses crimes e proteger
os

direitos humanos e as liberdades fundamentais, e para promover a
confiança,

estimular a cooperação entre os povos e contribuir para a paz e a
segurança

internacionais”11 .



Nessa esteira, os crimes contra a humanidade, em razão da

interpretação
consolidada pelo jus cogens, são ontologicamente imprescritíveis e


insuscetíveis de anistia. Trata-se de atributo essencial, pois a finalidade
da

qualificação de um fato como sendo atentatório à humanidade é garantir
que não

possa ficar impune.



Diga-se ainda que o Brasil reconheceu expressamente o caráter

normativo
dos princípios estabelecidos entre as nações, quando em 1914 ratificou

a
Convenção Concernente às Leis e Usos da Guerra Terrestre12 , que


consubstancia norma de caráter geral.



A imprescritibilidade, aliás, foi afirmada pela Assembleia Geral da

ONU
em diversas Resoluções editadas entre 1967 e 1973, a saber: (i) nº 2.338


(XXII), de 1967; (ii) nº 2.391 (XXIII), de 1968; (iii) nº 2.583 (XXIV), de
1969; (iv) nº



2.712 (XXV), de 1970; (v) nº 2.840 (XXVI), de 1971; e (vi) nº 3.074 (XXVIII),
de

1973.

Ademais, cabe ressaltar que a prescrição penal não constitui


garantia fundamental, haja vista que a CF/88 não estabeleceu um regime geral




11 Cf. “Cuestión del castigo de los criminales de guerra y de las personas
que hayan

cometido crímenes de lesa humanidad”. Resolução nº 2583 (XXIV),
1.834a sessão plenária de 15

de dezembro de 1969. V.

<http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/259/73/IMG/NR025973.pdf?OpenElement


>.

12 Decreto nº 10.719/14 que aprovou a Convenção Concernente às
Leis e Usos da Guerra

Terrestre.





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



para a prescrição. Assim, o instituto da prescrição, via de regra, figura no
plano



normativo ordinário13. Lado outro, o STF vem consolidando o entendimento de




que as normas internacionais que versam sobre direitos humanos ostentam



caráter supralegal.



Desse modo, considerando o quadro normativo anterior à



Reforma Penal de 1984, vale ressaltar que referida alteração legislativa não
é



hábil a derrogar normas especiais introduzidas a partir do direito
internacional,



consoante já apontou o Superior Tribunal de Justiça (REsp 58.736 -MG),



cabendo, pois, reconhecer a convivência harmônica das normas gerais de
direito



interno com as normas (princípios) especiais cogentes do direito
internacional



sobre direitos humanos. Assim, na esteira de um “direito dialógico”, todas as




fontes normativas, ao invés de se excluírem, devem se unir (dialogar) para
servir



de obstáculo às violações seja da CF/88 ou dos tratados de direitos humanos
em



que a República Federativa do Brasil é parte14, reforçando, pois, a proteção
aos



direitos humanos.



13 Veja, neste sentido, o quanto definido na Extradição 1042:

EMENTA: I.
(…) II. Citação por edital e revelia: suspensão do processo e do curso do prazo


prescricional, por tempo indeterminado - C.Pr.Penal, art. 366, com a redação
da L. 9.271/96. 1.

Conforme assentou o Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da Ext. 1042, 19.12.06, Pertence,

a Constituição Federal não
proíbe a suspensão da prescrição, por prazo indeterminado, na

hipótese do
art. 366 do C.Pr.Penal. 2. A indeterminação do prazo da suspensão não constitui,
a

rigor, hipótese de imprescritibilidade: não impede a retomada do curso da
prescrição, apenas a

condiciona a um evento futuro e incerto, situação
substancialmente diversa da imprescritibilidade.



3. Ademais, a Constituição Federal se limita, no art. 5º, XLII e XLIV, a
excluir os crimes que

enumera da incidência material das regras da
prescrição, sem proibir, em tese, que a legislação

ordinária criasse outras
hipóteses. 4. Não cabe, nem mesmo sujeitar o período de suspensão de

que
trata o art. 366 do C.Pr.Penal ao tempo da prescrição em abstrato, pois, "do
contrário, o que

se teria, nessa hipótese, seria uma causa de interrupção, e
não de suspensão." 5. RE provido,

para excluir o limite temporal imposto à
suspensão do curso da prescrição. (RE 460971,

Relator(a): Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 13/02/2007, DJ 30-032007

PP-00076 EMENT
VOL-02270-05 PP-00916 RMDPPP v. 3, n. 17, 2007, p. 108-113 LEXSTF

v. 29, n.
346, 2007, p. 515-522)

14 Luiz Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli,
In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI,

Valério de Oliveira (coord). Crimes da
Ditadura Militar - Uma análise à luz da jurisprudência atual

da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, 2011, Editora Revista dos Tribunais, p. 119






MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Por fim, cabe rememorar que na América Latina – que vivenciou a



consumação de crimes contra a humanidade em larga escala, durante os anos




setenta e oitenta, no bojo das diversas ditaduras militares – a
jurisprudência é



inequívoca em considerar que fatos assemelhados aos da presente ação penal




não são suscetíveis de anistia ou prescrição, por constituírem crime de
lesa





humanidade15.



Em síntese, não bastasse o prazo prescricional sequer ter começado a correr
(a



consumação do crime encontra-se protraída no tempo até a atualidade), o crime




imputado na denúncia é imprescritível por força da sua natureza de lesa





15 Cf. p.ex., Corte Suprema de Justiça da Nação argentina, casos Videla
(“[E]s necesario

(…) reiterar (…) que es ya doctrina pacífica de esta Cámara
la afirmación de que los crímenes

contra la humanidad no están sujetos a
plazo alguno de prescripción conforme la directa vigencia

en nuestro sistema
jurídico de las normas que el derecho de gentes ha elaborado en torno a


dichos crímenes que nuestro sistema jurídico recepta directamente a través
del art. 118

Constitución Nacional”). No Chile, no caso Vila Grimaldi/Ocho
de Valparaíso, a Corte de

Apelações de Santiago igualmente afastou a
ocorrência da prescrição: “[P]rocede agregar que la

prescripción, como se ha
dicho, ha sido establecida más que por razones dogmáticas por criterios


políticos, como una forma de alcanzar la paz social y la seguridad jurídica.
Pero, en el Derecho

Internacional Penal, se ha estimado que esta paz social
y esta seguridad jurídica son más

fácilmente alcanzables si se prescinde de
la prescripción, cuando menos respecto de los crímenes

de guerra y los
crímenes contra la humanidad.” No Peru, no julgamento do caso Montoya, o


Tribunal Constitucional alinhou-se com o conceito de “graves violações a
direitos humanos” e

estendeu sobre elas o manto da imprescritibilidade: “Es
así que, con razón justificada y suficiente,

ante los crímenes de lesa
humanidad se ha configurado un Derecho Penal más allá del tiempo y

del
espacio. En efecto, se trata de crímenes que deben encontrarse sometidos a una
estructura

persecutoria y condenatoria que guarde una línea de
proporcionalidad con la gravedad del daño

generado a una suma de bienes
jurídicos de singular importancia para la humanidad in toto. Y por

ello se
trata de crímenes imprescriptibles y sometidos al principio de jurisdicción
universal. (…) Si

bien es cierto que los crímenes de lesa humanidad son
imprescriptibles, ello no significa que sólo

esta clase de grave violación
de los derechos humanos lo sea, pues, bien entendidas las cosas,

toda grave
violación de los derechos humanos resulta imprescriptible. Esta es una
interpretación

que deriva, fundamentalmente, de la fuerza vinculante de la
Convención Americana de Derechos

Humanos, y de la interpretación que de ella
realiza la Corte IDH, las cuales son obligatorias para

todo poder público,
de conformidad con la Cuarta Disposición Final y Transitoria de la Constitución


y el artículo V del TP del CPConst.” No mesmo sentido, a Corte
Constitucional peruana, no caso

Gabriel Orlando Vera Navarrete sustentou que
“El delito de desaparición forzada ha sido desde

siempre considerado como un
delito de lesa humanidad, situación que ha venido a ser

corroborada por el
artículo 7º del Estatuto de la Corte Penal Internacional, que la define como “la


aprehensión, la detención o el secuestro de personas por un Estado o una
organización política, o

con su autorización, apoyo o aquiescencia, seguido
de la negativa a informar sobre la privación de





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



humanidade. Logo, sob qualquer ângulo, inexiste óbice ao trâmite da presente


ação penal.



3. Competência da Justiça Federal.

A competência criminal para processar
e julgar a presente ação

pertence à Justiça Federal desta Subseção
Judiciária, local do fato criminoso.



Reitera-se, nesta quota, a manifestação da Câmara de

Coordenação e
Revisão em Matéria Criminal, que rejeitou a promoção de

arquivamento
indireto promovida anteriormente em relação ao fato, e afirmou


explicitamente a posição institucional do Ministério Público Federal de que
tais

crimes devem ser julgados perante a Justiça Federal comum.



“Os crimes de que aqui se cuida são os de sequestros de dois cidadãos


que, conforme apurado em sede de inquérito civil público, estiveram


presos nas dependências do DOI-CODI do II Exército, em São Paulo,

no
período da ditadura militar.

As investigações levadas a efeito no âmbito do
inquérito civil público

conduzido pelos Procuradores da República em São
Paulo indicaram,

como antes mencionado, a autoria dos dois comandantes do
DOI-CODI

do II Exército – Carlos Alberto Ustra e Audir Maciel – e de outros


agentes públicos, civis e militares.

A condição de agentes públicos
federais dos apontados autores, no

pretenso exercício de suas funções
públicas revela, desde logo, o

interesse da União e, portanto, a competência
da Justiça Federal para o

processo e julgamento dos crimes respectivos, a
teor do disposto no

artigo 109, IV, da Constituição da República e da Súmula
no 254 do

Tribunal Federal de Recursos (“Compete à Justiça Federal processar
e



libertad o dar información sobre la suerte o el paradero de esas personas,
con la intención de





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



julgar os delitos praticados por funcionário público federal, no exercício


de suas funções e com estas relacionados.”), mantida pelo Superior


Tribunal de Justiça (cf. RHC 2.201/DF). Mencionado dispositivo


constitucional, é verdade, exclui, da competência da Justiça Federal, as


causas de competência da Justiça Militar. Nos casos em exame,


tratando-se de crimes de sequestro, que encontram previsão no artigo

225
do Código Penal Militar, poder-se-ia cogitar da competência da

Justiça
Militar. O caso, porém, demanda análise mais profunda do que a

interpretação
literal da norma. Essa análise, que demonstra a atribuição

do Ministério
Público Federal para a apuração dos delitos noticiados

nestes autos foi
feita de maneira exauriente pelos Procuradores Marlon

Weichert e Eugênia
Fávero, no documento que está copiado a fls.

573/649, intitulado “Crimes
cometidos no Brasil durante o regime militar

por agentes públicos contra a
população civil. Dever estatal de apurar e

responsabilizar”, e que
acompanhou as representações dirigidas ao

Núcleo Criminal da Procuradoria da
República.

Nos itens 2 e 3 do primeiro capítulo do texto, os Procuradores
trazem os

fundamentos da competência da Justiça Federal e da atribuição do


Ministério Público Federal, cabendo sua transcrição:



2. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

Até 1968 a repressão à dissidência
política foi realizada pelos aparatos

policiais (especialmente pelas
Delegacias da Ordem Política e Social –

DOPS, das Polícias Civis dos
Estados, e pela Polícia Federal) e

também pelas Forças Armadas.

A partir
desse ano (edição do Ato Institucional nº 5 e início das ações

mais
violentas), estreitou-se a cooperação entre governos federal e

estaduais.
Praticamente todo o trabalho passou a ser coordenado – e

em grande parte
executado – pela União Federal, através das Forças

Armadas. É a chamada fase
da repressão militar à dissidência política.

dejarlas fuera del amparo de la
ley por un período prolongado”.





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



O protótipo desse modelo de coordenação e execução militar das ações

de
repressão foi a denominada “Operação Bandeirante” (OBAN),

implementada em
São Paulo pelo Comando do II Exército. Sua função

foi agrupar o trabalho até
então realizado por órgãos do Exército, da

Marinha, da Aeronáutica, da
Polícia Federal e das polícias estaduais em

um único destacamento.


Diante do “sucesso” da OBAN na repressão, o seu modelo foi difundido


pelo regime militar a todo o País. Nasceram, então, os Destacamentos

de
Operações de Informações/Centros de Operações de Defesa Interna

(DOI-CODI),
no âmbito do Exército:

“Com dotações orçamentárias próprias e chefiados por
um alto oficial do

Exército, os DOI-CODI assumiram o primeiro posto na
repressão

política do país. No ambiente desses destacamentos militares as


prisões arbitrárias e os interrogatórios mediante tortura tornaram-se


rotina diária. Ademais, os assassinatos e os desaparecimentos forçados


de presos adquiriram constância”. (BRASIL. Secretaria Especial dos


Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos


Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial


de Direitos Humanos, 2007, p. 27)

Na sua estrutura operacional, o
DOI/CODI era comandado por oficiais

do Exército e se utilizava de membros
das Forças Armadas,

investigadores e delegados de polícia civil, policiais
militares e policiais

federais. Uma das suas funções era unificar as
atividades de

informação e repressão política.

Os DOI/CODI eram,
portanto, órgãos federais, que funcionavam sob

direção do Exército e com
servidores federais e estaduais requisitados.

Frise-se, porém, que a
violação de direitos humanos não era ato

exclusivo dos agentes do DOI/CODI:


“[O]s Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), as delegacias


regionais da Polícia Federal, o Centro de Informações de Segurança da


Aeronáutica (CISA) e o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR)





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



mantiveram ações repressivas independentes, prendendo,

torturando e
também eliminando opositores”. (BRASIL. Secretaria

Especial dos Direitos
Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e

Desaparecidos Políticos. Direito à
Mémória e à Verdade. Brasília:

Secretaria Especial de Direitos Humanos,
2007, p. 23.)

Em alguns Estados, inclusive, o protagonismo da repressão
sequer

chegou a ser assumido formalmente pelo DOI/CODI (v.g., Rio Grande


do Sul).

De qualquer forma, os atos praticados por agentes das Forças
Armadas



– próprios ou requisitados de outros órgãos públicos – no âmbito das


atividades e funções do DOI/CODI ou de outros órgãos militares

revestem
a natureza de atos de servidores públicos federais.

Em decorrência, é da
competência da Justiça Federal processá-los e

julgá-los, por força do
disposto no artigo 109, inciso IV, da Constituição,

conforme entendimento
sumulado pela jurisprudência (Súmula no 254

do Tribunal Federal de Recursos
(“Compete à Justiça Federal processar

e julgar os delitos praticados por
funcionário público federal, no

exercício de suas funções e com estas
relacionados.”), mantida pelo

Superior Tribunal de Justiça – CC 1.679/RJ e
RHC 2.201/DF).

É possível concluir, também, que a partir da constituição dos
DOI/CODI

(1970) a atuação dos DOPS (polícias civis estaduais) passou, em
regra,

a ser subordinada ao Exército brasileiro. Isso porque toda a


coordenação da atividade de repressão foi assumida por este ramo das


Forças Armadas, tendo os DOPS servido, desde então, a formalizar as


prisões que dariam ensejo a processo penal militar. Conforme se


depreende dos relatos constantes do livro “Direito à Memória e à


Verdade”, os suspeitos detidos pelos DOI/CODI – quando não mortos,


desaparecidos ou soltos sem qualquer formalização – eram

encaminhados à
polícia civil (DOPS) para o início do processo formal de

imputação penal. Na
Polícia Civil procedia-se então à “regularização”

formal da prisão efetuada
e do depoimento tomado, sob tortura, nos



MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República em São Paulo



DOI/CODI. Nos DOPS, os presos muitas vezes eram submetidos a

novos
interrogatórios e torturas. Em determinadas ocasiões, retornavam

aos
DOI/CODI.

Percebe-se, pois, a existência de uma unidade de desígnios entre a


atuação dos agentes federais (DOI/CODI, polícia federal, órgãos da


Marinha e Aeronáutica) e da polícia civil e militar, a indicar que o


comando geral da repressão era da União. Nesses casos, a ação dos

órgãos
estaduais assumia também contornos de exercício de função

federal.



3. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR

Os crimes praticados pelos agentes da
repressão à dissidência política

durante o regime ditatorial militar não
podem ser processados e

julgados pela Justiça Militar.

Em se tratando de
crime de homicídio, são a Constituição brasileira e o

Código Penal Militar
que definem a competência do Tribunal do Júri.

Com efeito, aplicam-se nessa
hipótese as regras do artigo 125, § 4º, da

Constituição Federal, e do artigo
9º, parágrafo único, do Código Penal

Militar (Decreto-lei no 1001/69), que
afetam o julgamento dos crimes

dolosos contra a vida, praticados contra
civil, ao Tribunal do Júri.

Os demais crimes também fogem à competência da
Justiça Militar, seja

por não encontrarem previsão expressa no Código Penal
Militar (é o

caso dos crimes de ocultação de cadáver), mas principalmente
por se

referirem à prática de crimes cuja natureza afasta a possibilidade de


apreciação pela justiça castrense (crimes contra a humanidade).

A
Justiça Militar não preenche os requisitos necessários para processar

e
julgar crimes graves de violação a direitos humanos praticados por

militares
contra civis. É o que revela a jurisprudência reiterada da Corte


Interamericana de Direitos Humanos - CIDH (à qual o Brasil – inclusive


seus órgãos do sistema de justiça – é vinculado).

Confiram-se os
seguintes precedentes: caso 19 COMERCIANTES



MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República em São Paulo



(2004, parágrafos 164 a 177), caso ALMONACID ARELLANOS (2006,

parágrafos
130 a 133), caso CANTORAL BENAVIDES (2000,

parágrafos 111 a 115), caso
DURANTE Y UGARTE (2000, parágrafos

115 a 118) e caso LAS PALMERAS (2001,
parágrafo 51 a 54). (Cf.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Casos
disponíveis em:

<http://www.corteidh.or.cr/>.Acesso em
08 set. 2008.)

Com efeito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(precedentes

citados) e a Corte Européia de Direitos Humanos – CEDH (caso
PABLA

KY VS. FINLAND) são firmes em apontar que a definição da


competência da Justiça Militar deve ser restritiva. Sua competência para


julgar crimes em tempos de paz deve ser aceita somente quando


caracterizada ampla e efetiva independência de seus juízes, mediante


total desvinculação das Forças Armadas.

Vale, nesse particular, destacar
a apreciação que a CIDH fez no caso

LAS PALMERAS:

“51. A este respeito,
o Tribunal já estabeleceu que em um Estado

democrático de direito a
jurisdição penal militar tem de possuir um

alcance restritivo e excepcional
e estar direcionada à proteção de

interesses jurídicos especiais, vinculados
às funções que a lei designa

às forças militares. Por isto, apenas deve
julgar a militares pela prática

de delitos ou faltas, que pela sua própria
natureza atentem contra bens

jurídicos próprios da ordem militar.



52. Por sua vez, esta Corte entende pertinente recordar que a jurisdição


militar ‘se estabelece em diversas legislações com o fim de manter a


ordem e a disciplina dentro das forças armadas. Inclusive, esta


jurisdição funcional reserva sua aplicação aos militares que tenham


incorrido na prática do delito ou falta no exercício de suas funções e sob


certas circunstâncias. Pelo que quando a justiça militar assume


competência sobre um assunto que deveria ser conhecido pela justiça


comum, o direito ao juiz natural resta afetado e, a fortiori, o devido


processo, o qual, por sua vez, encontra-se intimamente ligado ao




MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria
da República em São Paulo



próprio direito de acesso à justiça.’



53. Consoante já referido, o juiz encarregado do conhecimento de uma


causa deve ser competente, independente e imparcial. No caso sub

judice,
as próprias forças armadas, responsáveis pelo combate aos

grupos
insurgentes, são as encarregadas de julgar os seus pares pela

execução de
civis, conforme reconheceu o próprio Estado.

Consequentemente, a
investigação e sanção dos responsáveis devia ter

recaído, desde o princípio,
na justiça comum, independentemente dos

supostos autores terem sido
policiais em serviço. (...)”

No Brasil, a Justiça Militar – dada a sua
composição e organização –

não goza de autonomia em relação às Forças
Armadas. Portanto, não

pode ser reconhecida como isenta para processar atos
graves que

foram praticados por militares contra civis, por ordens das mais
altas

autoridades da instituição.

Com efeito, o artigo 123 da Lei
Fundamental dispõe que o Superior

Tribunal Militar é composto por 15
Ministros, sendo 3 oficiais-generais

da Aeronáutica, 4 oficiais- generais do
Exército e 3 oficiais-generais da

Marinha.

Assim, no total, 10 Ministros
são vinculados às Forças Armadas, o que

representa dois terços da composição
da Corte.

Note-se que os ministros militares do Superior Tribunal Militar
não se

desvinculam das Forças Armadas. Eles continuam sendo membros da


ativa, conforme o estabelecido no artigo 3o, § 2o, da Lei no 8.457/92, a


qual organiza a Justiça Militar federal: “[o]s Ministros militares


permanecem na ativa, em quadros especiais da Marinha, Exército e


Aeronáutica”. Ademais, nos casos de substituição oficial, ou para

compor
quórum, são convocados “oficiais da Marinha, Exército ou

Aeronáutica, do
mais alto posto” (Lei no 8.457/92, art. 62, II, e

Regimento Interno do STM,
art. 26).

É inelutável, portanto, que a Corte não preenche os requisitos da


imparcialidade e da independência para apreciar crimes que envolvem




MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria
da República em São Paulo



ordens oriundas de oficiais que ocuparam os mais altos postos da


instituição, investidos inclusive nas funções de Presidente da República


e Ministro do Exército. Assim, os atuais oficiais integrantes do Superior


Tribunal Militar estariam julgando atos que envolvem pares, alguns de


hierarquia superior, tendo em vista que em alguns momentos esses

cargos
do Poder Executivo foram exercidos por Marechais.

Frise-se, ademais, que os
ministros militares do STM não precisam

sequer de formação ou conhecimento
jurídico. Ao contrário do requisito

imposto pela Constituição para a escolha
dos três ministros oriundos da

advocacia, os juízes militares não demandam
“notório saber jurídico e

conduta ilibada”. Assim, além da justiça castrense
não ser independente

em relação à corporação militar, ela não é apta a
realizar julgamentos

fundamentados no Direito, diante da inexigibilidade de
formação técnica

de dois terços dos integrantes do Superior Tribunal
Militar.

Logo, além dos crimes dolosos contra a vida e aqueles que não


encontram previsão no Código Penal Militar, devem ser julgados pela


Justiça Comum todos os demais crimes contra a humanidade

praticados por
militares, ou por civis sob comando militar. A

competência da Justiça
Militar não é admissível para o julgamento

desses graves delitos contra os
direitos humanos.”

A competência para o processo e julgamento dos sequestros
noticiados

nestes autos, ocorridos no período da ditadura militar, com
graves

violações a direitos humanos, praticados por agentes a serviço do


Estado brasileiro, alocados em diversos órgãos federais, como

mencionado
na manifestação supra transcrita é, portanto, da Justiça

Federal.

No
mais, a documentação inserta nestes autos, particularmente a inicial

da ação
civil pública e os documentos a ela anexados, bem como as

referências
bibliográficas nela contidas (Direito à Memória e à Verdade;

Brasil Nunca
Mais) não deixam qualquer dúvida de que o que se

enfrenta, aqui, são
gravíssimas violações a direitos humanos.





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



E, nos termos do inciso V-A do artigo 109 da Constituição da República,


inserido pela Emenda Constitucional de 2004, as causas relativas a


direitos humanos são de competência da Justiça Federal, comportando,


inclusive, o pedido, pelo Procurador Geral da República, de

deslocamento
de competência para o Superior Tribunal de Justiça.



Não bastassem tais considerações, e, aliás, a corroborá-las, o fato é


que, em recente decisão proferida no Caso Gomes Lund e outros


(“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos


Humanos manifestou-se, em caso de todo semelhante aos objeto do


presente, vale dizer, em casos de crimes praticados por agentes da


ditadura militar, no sentido de que a persecução penal deve se dar no


âmbito da Justiça Federal, afastando-se a competência da Justiça


Militar. Confira-se:

“257. Especificamente, o Estado deve garantir que
as causas

penais que tenham origem nos fatos do presente caso, contra


supostos responsáveis que sejam ou tenham sido funcionários

militares,
sejam examinadas na jurisdição ordinária, e não no foro

militar. Finalmente,
a Corte considera que, com base em sua

jurisprudência, o Estado deve
assegurar o pleno acesso e capacidade

de ação dos familiares das vítimas em
todas as etapas da investigação

e do julgamento dos responsáveis, de acordo
com a lei interna e as

normas da Convenção Americana. Além disso, os
resultados dos

respectivos processos deverão ser publicamente divulgados,
para que a

sociedade brasileira conheça os fatos objeto do presente caso,
bem

como aqueles que por eles são responsáveis.

De acordo com sua
jurisprudência, o Tribunal denomina jurisdição

ordinária ou comum à
jurisdição penal não militar. Cf. Caso Railla

Pacheco, supra nota 24, par.
332; Caso Fernández Ortega e outros,

supra nota 53, par. 229, e Caso Rosendo
Cantú e outra, supra nota 45,

par. 212. Cf. Caso do Caracazo versus
Venezuela. Reparações e





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Custas. Sentença de 29 de agosto de 2002. Série C n 95, par. 118;

Caso
Chitay Nech e outros, supra nota 25, par. 237, e Caso Ibsen

Cárdenas e Ibsen
Peña, supra nota 24, par. 238 fatos objeto do

presente caso, bem como
aqueles que por eles são responsáveis”.

Como se vê, também por força do
entendimento adotado no âmbito da

Corte Interamericana de Direitos Humanos,
impõe-se a conclusão de

que a atribuição para a persecução penal relativa
aos casos objeto do

presente feito é do Ministério Público Federal.

Mais
não é preciso dizer para se concluir que não era, mesmo, o caso

de se
declinar da atribuição para o Ministério Público Militar, não, pelo

menos,
sem antes enfrentar os judiciosos argumentos supra transcritos.



A atribuição para prosseguir nas investigações sobre os

desaparecimentos
forçados de Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e

Luiz Almeida Araújo é do
Ministério Público Federal.



Cumpre, no mais, repisar que o patente excesso doloso inerente à

conduta
do denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA extrapolou

claramente suas
atribuições legais militares, consubstanciando graves violações

de direitos
humanos que exorbitam, pois, da jurisdição penal militar, excepcional e


restrita, pelo que cabe à Justiça Federal, assim, julgar os crimes objeto da


presente16 .



Dessa forma, dúvidas não subsistem de que a competência para



o crime ora referido é da Justiça Federal.

4. Requerimento complementar.


16 Voto nº 1935/2011 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF.
procedimento nº

1.00.000.007053/2010-86, doc. Anexo às fs. 1833-1847, vol.
VIII.





MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da
República em São Paulo



Requer o Autor a vinda aos autos das folhas de antecedentes

criminais e
certidões correspondentes, em nome dos denunciados;



Em tempo, ressalva o Ministério Público Federal que, por ora,

deixa de
denunciar outros coautores deste e de outros crimes cometidos

nas mesmas
circunstâncias, não importando o oferecimento desta denúncia

em arquivamento
indireto quanto a outros crimes e agentes.



São Paulo, 24 de abril de 2012.



EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA SERGIO GARDENGHI SUIAMA

Procuradora da República
Procurador da República





ANDREY BORGES DE MENDONÇA IVAN CLÁUDIO MARX

Procurador da República
Procurador da República



TIAGO MODESTO RABELO INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES

Procurador da República
Procuradora da República