Marcio Sotelo Felippe: A vendedora de ovos e os perdigotos
Hegel contava a história da vendedora de ovos. A moça bonita foi
reclamar que os ovos que comprara estavam podres. A vendedora, uma
velha senhora, responde: “quem você pensa que é para reclamar comigo?
Teu pai é um inútil, tua mãe uma vadia que fugiu com um francês e
ninguém sabe de onde vem o teu dinheiro”.
Hegel queria mostrar como um conflito pode ser tratado de modo
enviesado e a argumentação sobre o fato concreto, que é o que importa,
obscurecida. Os ovos estavam podres, ainda que a moça fosse mesmo
prostituta, o pai um inútil e a mãe adúltera. No entanto, dito isto, a
questão do apodrecimento dos ovos desaparece.
Quando Reinaldo Azevedo polemiza com alguém usa a estratégia da
velhinha dos ovos. Basta passar os olhos pelos seus posts. Alguém que
lhe criticou solta perdigotos. O pai de Vladimir Safatle é
latifundiário improdutivo. Ao polemizar com a brilhante psicanalista
Maria Rita Kehl, procura atingi-la profissionalmente.
Em seu post de ontem, respondeu às críticas que lhe fiz por distorcer
a nota da Associação Juízes para a Democracia (AJD) sobre os recentes
acontecimentos da USP. A nota dizia a coisa mais óbvia da democracia: a
lei ordinária deve estar de acordo com a Constituição e respeitar os
direitos fundamentais. Usava uma linguagem diferente para dizer essa
coisa elementar. Como a expressão usada pela AJD era inusual, (cimo da
Constituição) prestou-se à manipulação do colunista. E eu sou
apresentado como “poderoso” por conta de um cargo que deixei de exercer
há 11 anos. Sutil. Se um “poderoso” o ataca, ele, que insulta, passa a
ser a vítima.
No dia anterior, um amigo me dizia que haveria resposta dele.
Respondi na hora: se responder, Reinaldo Azevedo vai usar a estratégia
da velhinha dos ovos. Não deu outra. Ninguém lhe disse que eu solto
perdigotos. Então, escarafunchou a minha vida pessoal e achou o mote:
minha mulher é juíza e é da AJD. A mensagem é clara: estou defendendo
minha mulher. Tudo o mais fica em segundo plano. Se eu digo que ele usa
expedientes macarthistas, que expõe, consciente e irresponsavelmente,
os dirigentes da AJD ao nominá-los um a um, ele, incorporando a
velhinha dos ovos, fala da minha mulher. Como falou dos perdigotos e do
pai de Safatle.
Agora vejamos o seu post de 9 de dezembro, após tudo que relatei: “blogueiros
a soldo do oficialismo, que pagam as contas com o nosso dinheiro,
criaram o mito de que ofendo as pessoas. Já aconteceu, sim, aqui e ali,
coisa rara, mas em questões pessoais — e nunca sem ter sido atacado
antes. Mas deixei isso de lado. Quando se trata de um tema público,
nunca! Nada de ofensas!
Vejam bem: se se trata de um tema público, ele nunca ofendeu…
Vou explicar como funciona a coisa. Quando elege alguém como inimigo
político, Reinaldo Azevedo introduz de algum modo um aspecto pessoal
negativo. Nesse momento seus leitores ficam envolvidos numa atmosfera
complicada. O clima que se estabelece é do tipo “vou lhe contar um
segredinho terrível sobre fulano. Sabe, ele solta perdigotos; sabe, o
pai dele é um latifundiário complicado”. Os argumentos que aparecem no
resto do texto pouco importam. O trabalho sujo está feito. O adversário
está desqualificado. A ideia é humilhar, operar com as baixas emoções,
com o ressentimento, com o ódio. Se o leitor não gostava de
esquerdistas por razões políticas, agora não gosta de esquerdistas
porque eles são pessoas ruins, desprezíveis, repugnantes.
O leitor há de perceber onde isso pode chegar. A História está
repleta de exemplos. Quando, em vez de ideias, as pessoas são
desqualificadas, o clima para coisas ruins vai sendo criado. O
primeiro passo é esse: apresentar o adversário político como alguém que
não merece respeito como pessoa. A grande vítima dessa estratégia é o
processo democrático. Na democracia, ideias são discutidas. Não o pai,
os perdigotos ou a mulher.