"A regulamentação atual dos direitos humanos não se baseia na posição
soberana dos Estados, mas na pessoa enquanto titular, por sua tal condição, dos
direitos essenciais que não podem ser desconhecidos com base no exercício do
poder constituinte, nem originário, nem derivado" (Corte Suprema do Uruguai)
A decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu a invalidade da chamada Lei da
Anistia quando estendida aos responsáveis pelos crimes praticados por
agentes da repressão no período da ditadura militar.
O Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
no. 153, declarou que era válida, apesar de anistiar crimes contra a
Humanidade.
Tem-se uma antinomia - conflito de normas. A sociedade deve saber qual a
solução do conflito.
No Direito Internacional dos Direitos
Humanos normas são vinculantes de duas maneiras: por força da convencionalidade
ou porque são imperativas. Ambas estão em questão no caso da Lei de Anistia
brasileira e ambas oferecem a mesma solução para o conflito de decisões. Além
de abordar esses dois aspectos, vamos nos deter na superação do Positivismo
jurídico, na imprescritibilidade dos crimes contra a Humanidade e nos pontos
fulcrais da decisão da Corte Interamericana.
1. Convencionalidade
Após a decisão da Corte Interamericana, o
ministro César Peluso declarou ao jornal O
Estado de São Paulo: “a eficácia [da decisão da Corte] se dá no campo da convencionalidade. Não
revoga, não anula e não cassa a decisão do Supremo”.
Dita pelo presidente da mais alta corte de justiça do país, proporcionou
um reforço para os que defendem a não punição dos crimes contra a
Humanidade cometidos no período do regime militar. Abriu como que
uma zona de alívio para eles, dando-lhes um aparente conforto na
segurança e técnica jurídicas e no Estado de Direito.
Nós outros, que defendemos a
apuração, estaríamos agora repousando à
margem do Direito, esmagados pela
suposta racionalidade jurídica de quem é nada mais nada menos do que
presidente do STF. Permaneceríamos então repetindo argumentos
esvaziados, retóricos, insistindo em controvérsias históricas superadas
e apelos vãos, em divergência meramente política (ou movida pela “vingança”)
com os que defendem a “reconciliação nacional” ou a versão do “grande acordo”
de 1979 que teria respaldado a Lei da Anistia. O Ministro transmitiu ao
país a ideia de que o procedimento jurídico encerrou-se e o regime
democrático-constitucional deu a última palavra.
Falso. A afirmação do Ministro é simplesmente errada. Ao
recorrer daquele modo à expressão
convencionalidade o ministro cometeu
um truque semântico: confundiu o sentido técnico-jurídico com o sentido genérico da palavra. Neste último
caso, a expressão denota uma ideia de quase arbítrio frente a um dispositivo ou
regra qualquer, sem força vinculante. Mas convencionalidade no plano do
Direito Internacional tem um sentido técnico preciso: é
o modo de criação de normas jurídicas
vinculantes.
[1]
O fenômeno normativo no plano do Direito Internacional torna-se vinculante por
acordo entre os Estados. O fundamento dessa vinculação é o vetusto princípio
pacta sunt servanda. O pactuado
deve ser cumprido sob pena de ilicitude.
Estamos longe, portanto, daquela atmosfera de mero arbítrio que a frase do
Ministro tenta invocar.
2. Normas
Imperativas ou Cogentes
O
Direito Internacional não se esgota em normas convencionais. Houve uma
construção histórica de
normas imperativas (independentes
de convencionalidade) de Direito Internacional. A doutrina já havia estabelecido
esse conceito para o Direito Internacional mesmo antes da II Guerra, mas então
controvertidamente.
[2] Agora está declarado na
Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados, do qual o Brasil é parte desde 2009. Normas imperativas significa
dizer que são
cogentes. A cogência é um conceito da Teoria Geral do Direito, que
distingue entre
jus cogens e
jus dispositivum.
O jus dispositivum refere-se a
norma cuja efetividade está condicionada
à vontade dos sujeitos da relação jurídica. Direitos patrimoniais, em regra,
são regulados por direito dispositivo. Se uma multa contratual entre sujeitos
privados está fixada em 10%, mas o credor resolve que recebe 5%, ou resolve que
recebe nada, sua vontade é soberana e a norma somente opera pela sua vontade.
Mas o jus cogens, direito cogente, prescinde da vontade
das partes para sua aplicação. Assim, o Código Civil proíbe
negociar herança de pessoa viva, mesmo com o consentimento da
pessoa. Esta é uma norma cogente, como também qualquer uma, por
exemplo, que verse sobre tributos. A vontade do agente estatal e do
contribuinte são indiferentes.
Além do fenômeno da
convencionalidade sustentado pelo
princípio pacta sunt servanda, há normas
de Direito Internacional que têm a característica da cogência.
Após Nuremberg se reconhece que normas
do Direito Internacional dos Direitos Humanos são cogentes. Derivadas
dos costumes e de outras fontes formais do Direito, independem, para sua
eficácia, da vontade dos sujeitos envolvidos numa relação jurídica. A
racionalidade disto é clara. Trata-se de um imperativo moral transformado em axioma
jurídico: como poderia a proteção da vida e dos direitos básicos da
pessoa humana depender de um ato de vontade, em qualquer plano do fenômeno
jurídico?
3. Superação
do Positivismo Jurídico
Em Nuremberg dirigentes de um
Estado soberano foram julgados por uma corte internacional. Para
isto contribuíram não só normas convencionais
[3], mas também o costume internacional e os
princípios gerais de Direito como fontes de normas vinculantes, cogentes, de
proteção
da Humanidade.
Nuremberg foi, por isso, o ponto de ruptura com o positivismo jurídico.
A ideia de que somente
normas positivadas por meio de determinados procedimentos formais constituem o
Direito independentemente de juízo de valor deve ser considerada hoje uma
etapa primitiva do desenvolvimento do fenômeno jurídico. Isto porque a dignidade humana deixou de ser um postulado
filosófico para tornar-se axioma jurídico. Está na raiz dos instrumentos internacionais
de defesa dos Direitos Humanos que se seguiram à barbárie nazista: a
Declaração de Universal de 1948, o Pacto de Direitos Civis e Políticos, a
Declaração de Direitos Econômicos e Sociais, a Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade, de 1968,
Convenção contra a Tortura, etc. No aspecto penal, os
Princípios de Nuremberg, aprovados pela ONU em 1950, consolidaram como crimes
de Direito Internacional crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra
a humanidade, afirmando, de modo expresso, que a lei interna não isenta de responsabilidade o perpetrador.
Claro. Sem isso tudo seria inútil. Dentro dos estreitos limites
impostos pelo Positivismo jurídico e seu corolário, a soberania dos Estados
entendida como absoluta, não se poderia
conceber uma norma imperativa, cogente, de defesa da Humanidade.
4. Imprescritibilidade
Permitir que o decurso do tempo tornasse impuníveis crimes contra a Humanidade
significaria relativizar a ideia de Humanidade. Certamente que a prescrição no
Direito comum é um conceito iluminista, necessário e civilizado. Mas a
imprescritibilidade dos crimes contra a Humanidade incorpora esse ideal
iluminista. As declarações de direitos na Revolução Francesa tinham como sujeitos
de direitos os indivíduos. Nos momentos históricos seguintes surgem outros
sujeitos de direitos, não mais indivíduos, mas coletivos – trabalhadores,
minorias, excluídos, etc. E num terceiro momento surge, com o Direito
Internacional dos Direitos Humanos a própria humanidade como
sujeito de direito.
A imprescritibilidade é necessária porque
nos crimes contra a humanidade há um enorme potencial de aniquilação de
seres humanos (o imenso poder de um Estado e consequente capacidade de
destruição interna e externa). Há o risco de extermínio de etnias, minorias, de
certos valores culturais, espirituais, sociais, expressões políticas,
filosóficas, etc. O que se protege é a própria sobrevivência da
humanidade em sua inteireza, complexidade e riqueza. Por isso o
poder de persecução é absoluto, transcende fronteiras, soberanias e
limitações próprias de outro estágio de civilização e de outro plano
jurídico.
5. A
Decisão da Corte Interamericana
O Brasil ratificou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos
em 1992. Reconheceu a competência da Corte Interamericana na
significativa data de 10 de dezembro de 1998 (aniversário da promulgação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU), nos seguintes termos:
“o Brasil declara que reconhece, por tempo
indeterminado, como obrigatória e de
pleno direito, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com o artigo 62, sob reserva
de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração” (grifei).
Veja-se que no plano da convencionalidade o conceito clássico de soberania
estatal nem se modifica. O reconhecimento de uma corte internacional se
dá como ato de soberania e o acatamento das decisões que dela emanam é
consequência lógica dessa soberania. Vale dizer, de sua vontade.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu, em face da
convencionalidade, à Corte uma
demanda contra o Brasil conforme petição apresentada pelo Centro pela
Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e Human Rights Watch/Américas. A
denúncia consistiu na responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do
Partido Comunista do Brasil e camponeses da região do Araguaia em decorrência
de operações do Exército brasileiro. Ressaltou a Comissão, em síntese,
que o Brasil, por força da Lei 6.683/79 (“Lei de Anistia”), não
realizou investigação penal com a finalidade de julgar e punir os responsáveis
pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas; que as medidas legislativas e
administrativas adotadas restringiram indevidamente o direito de acesso à
informação pelos familiares; que o desaparecimento das vítimas, a impunidade
dos responsáveis e a falta de acesso à Justiça, à verdade e à informação
afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e
da pessoa executada.
O reconhecimento da competência da Corte Interamericana pelo Brasil se deu com
a ressalva dos fatos anteriores a 1998.
O caso Araguaia ficou
a salvo da ressalva.
A Corte delimitou sua competência aos casos
dos desaparecidos porque o desaparecimento forçado é crime continuado, e
portanto seus efeitos persistem após 1998. Por isso ficou
excluída da decisão o caso de Maria Lúcia Petit da Silva, cujos restos
mortais foram localizados após 1998.
Mas deu-se por competente também
para os fatos e omissões ocorridos a partir de 10 de dezembro de 1998, como a
ausência de investigação e outras omissões.
Isto é de fundamental importância neste momento. Nos termos da decisão da
Corte, temos:
“...o caráter contínuo e permanente do
desaparecimento forçado de pessoas foi reconhecido de maneira reiterada pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos, no qual o ato de desaparecimento e
sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente
falta de informação sobre seu destino, e permanecem até quando não se conheça o
paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos. A
Corte, portanto, é competente para analisar os alegados desaparecimentos
forçados das supostas vítimas a partir do reconhecimento de sua competência
contenciosa efetuado pelo Brasil”.
A Corte afirmou que não há controvérsia fática porque o Estado brasileiro
reconheceu sua responsabilidade e relatou as medidas de reparação
destinadas às vítimas da ditadura militar (Lei 9.140/95). A divergência
foi apenas jurídica. Desse modo concluiu provado que, entre os anos de
1972 e 1974, na região do Araguaia, agentes do Estado foram responsáveis pelo desaparecimento
forçado de 62 pessoas:
“Transcorridos
mais de 38 anos, contados do início dos desaparecimentos forçados, somente
foram identificados os restos mortais de duas delas. O Estado continua sem
definir o paradeiro das 60 vítimas desaparecidas restantes, na medida em que,
até a presente data, não ofereceu uma resposta determinante sobre seus
destinos”. Em conclusão,
assinalou que “o Estado é
responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos
direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade
pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos, respectivamente, nos artigos 3,
4, 5 e 7, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo das
seguintes pessoas (...)”.
Estabelecidos os fatos e reconhecida a responsabilidade do Estado brasileiro, o
obstáculo à investigação e eventual punição dos responsáveis é a Lei de
Anistia. A Corte declarou que ela não
é válida. Não pode produzir efeitos jurídicos:
“Este
Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações
Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos
humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia,
relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e
as obrigações internacionais dos Estados (...) no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, do qual Brasil faz parte por decisão soberana, são
reiterados os pronunciamentos sobre a incompatibilidade das leis de anistia com
as obrigações convencionais dos Estados, quando se trata de graves violações
dos direitos humanos. Além das mencionadas decisões deste Tribunal, a Comissão
Interamericana concluiu, no presente caso e em outros relativos à Argentina,
Chile, El Salvador, Haiti, Peru e Uruguai, sua contrariedade com o Direito
Internacional.
Lembrou decisão do Tribunal Penal
Internacional para a ex-Iugoslávia:
“carece de sentido, por um lado, manter a
proscrição das violações graves dos direitos humanos e, por outro, aprovar
medidas estatais que autorizem ou perdoem, ou leis de anistia que absolvam seus
perpetradores”.
Na análise ainda da lei de anistia
brasileira ressaltou a Corte:
“a forma na qual foi interpretada e aplicada
a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (...) afetou o dever internacional do
Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao
impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um
juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o
direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento,
precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e
punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o art 1.1 da Convenção.
Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos
e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por
violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o
Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no
art. 2 da Convenção Americana”.
Em sentido absolutamente contrário ao afirmado pelo Ministro Cesar Peluso
(lembremos o que ele disse: a decisão da Corte “se dá no campo da convencionalidade, não altera a decisão do STF”,
etc), a Corte foi peremptória: é obrigação das autoridades judiciais
efetuar o controle de convencionalidade como obrigação assumida pelo Estado
brasileiro na ordem internacional. Isto deve fazer o Ministro lembrar-se de que
a ordem jurídica internacional não é uma uma espécie de adorno:
“O Tribunal estima oportuno recordar que as
obrigações de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas
corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade
internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e
nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais e
internacionais de boa fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e
conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados
de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir
obrigações internacionais. As obrigações internacionais dos Estados-Partes
vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das
disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano do seu
direito interno.
Patente, portanto, que o presidente do
Supremo Tribunal Federal desinformou a sociedade brasileira. O Estado
brasileiro tem obrigações internacionais assumidas no exercício de sua
soberania. Os três Poderes da República devem cumpri-las. Aliás, quem
pleiteia um assento definitivo no Conselho de Segurança da ONU não pode ignorar
as decisões de órgãos internacionais de que participa, sob pena de
desmoralização.
Embora a Corte tenha delimitado sua competência aos efeitos jurídicos
pós-1998 respeitando a ressalva do Brasil, em voto
apartado o juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas enfatizou aspectos
relacionados com o caráter vinculante das normas de Direito Internacional dos
Direitos Humanos – o jus cogens
referido acima. O Brasil deve dar cumprimento às normas cogentes
protetivas da humanidade para além da convencionalidade,
estendendo os efeitos da decisão da Corte aos atos praticados pela ditadura
militar no período 1964-1985. Assassinatos, torturas, violações,
desaparecimentos forçados, ferem normas do jus cogens do Direito Internacional dos Direitos Humanos e
isto impõe que o Estado brasileiro
assuma integralmente sua responsabilidade e proceda à investigação e a
persecução penal em todos os casos de crimes contra a humanidade
praticados pela ditadura militar. As proibições cogentes no campo
dos direitos humanos superpõem-se a qualquer norma de direito interno.
Prevalecem mesmo diante do poder constituinte originário. Na decisão, a
Corte Interamericana citou julgado da Corte Suprema do Uruguai a esse respeito:
“a regulamentação atual dos direitos humanos
não se baseia na posição soberana dos Estados, mas na pessoa enquanto titular,
por sua tal condição, dos direitos essenciais que não podem ser desconhecidos
com base no exercício do poder constituinte, nem originário, nem derivado”.
O juiz Caldas fez constar em seu voto separado afirmação coincidente.
Lembrou que é irrelevante a não ratificação pelo Brasil da Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade porque ela não é
criadora do Direito, mas meramente consolidadora. Desde Nuremberg reconheceu-se
a existência de um costume internacional cujos primórdios remontam ao preâmbulo
da Convenção de Haia de 1907. Assim, prossegue o juiz Caldas, o jus cogens “transcende o Direito dos
Tratados e abarca o Direito Internacional em geral, inclusive o Direito
Internacional dos Direitos Humanos”. Em sua conclusão, afirma:
“É
prudente lembrar que a jurisprudência, o costume e a doutrina internacionais
consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposições
acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excudentes de punibilidade,
deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os
crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um
indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas
transmissões por gerações de toda a humanidade. É preciso ultrapassar o
positivismo exacerbado”.
Na consciência jurídica
contemporânea a Humanidade é o
sujeito de direito. O juiz deve, se demandado em um momento
especial, julgar acima do poder constituinte originário.
Isto há de deixar pálidos juristas não acostumados a raciocinar fora dos
limites do Positivismo jurídico.
A segurança jurídica - o lapidar mote do Positivismo jurídico - reside,
na verdade, em certos valores e princípios assentados na defesa da pessoa
humana. Segurança jurídica para proteger torturadores? Admitir - como se
fez em Nuremberg - que em casos de barbárie devem ser preservados valores
universais em detrimento da técnica cega e irracional terá a vantagem de
delimitar claramente em que circunstâncias a forma positiva clássica do Estado
contemporâneo prevalece e em que circunstâncias não. Estabelecer os
limites de um conceito não o enfraquece. Metodologicamente, o fortalece. Quando
dizemos "isto pode" e "isto não pode", com clareza e acerca
de juízos racionais que permitem um acordo entre sujeitos democráticos, teremos
o Direito a serviço da sociedade e não a sociedade a serviço de uma técnica
jurídica entendida acriticamente como um valor em si mesmo. Ou entendemos que
estes conceitos estão consolidados ou continuaremos reféns daquelas trevas que
nos infelicitaram durante 21 anos. Eles
serão a base do Direito no 3o. milênio, uma etapa superior de moralidade e
civilização.
Portanto, todos os conceitos em jogo convergem
para a mesma solução daquela antinomia:
prevalece o decidido pela Corte Interamericana. No plano da convencionalidade,
o Brasil se obrigou, e essa obrigação não é um adorno, como deu a entender o
senhor ministro. Gera efeitos. Há normas
imperativas, cogentes, que devem ser aplicadas independentemente da convencionalidade
e alcançam os crimes cometidos durante toda a ditadura militar. O Positivismo
jurídico e seu corolário de soberania absoluta estão completamente superados.
As normas imperativas que condenam os crimes contra a Humanidade são imprescritíveis.
Contra a resistência de setores desinformados, de má-fé ou com interesses
obscuros a resguardar deve ser oposta esta consciência jurídica universal e a
segura trilha de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. Trata-se
de saber que sociedade estamos construindo. Uma em que é possível admitir que o
Estado, em um momento, aniquile, brutalize, torture, faça desaparecer pessoas e
imponha a uma parte de seus cidadãos sofrimento indizível até o
final de seus dias, e em outro momento ignore tudo por razões
políticas; ou uma sociedade em que cada brasileiro tenha a proteção absoluta de
membro da humanidade. Muitos de nós fizemos a escolha moral, que
é amparada pelo Direito, e não vamos renunciar ao bom combate.
Outros, que calam indiferentes, que façam a escolha que não os envergonhe
perante as gerações futuras. Porque punir a tortura é direito e dever da Humanidade.
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Notas
1. Nas
palavras de Francisco Rezek: "A produção de efeitos de direito é
essencial ao tratado, que não pode ser visto senão na sua dupla qualidade de ato
jurídico e de norma. O acordo formal entre Estados é o ato jurídico
que produz a norma, e que, justamente por produzi-la, desencadeia efeitos de
direitos, gera obrigações e prerrogativas, caracteriza enfim, na plenitude de
seus dois elementos, o tratado internacional" (Direito Internacional
Público, 11a ed., p. 18, Editora Saraiva)
2. Rezek,
ob.cit., p. 115/116
3. Cf.
Telford Taylor, The Anatomy of the
Nuremberg Trials, Alfred A. Knopf, Inc