terça-feira, 27 de março de 2012

O GENOCÍDIO ARMÊNIO




 

Artigo publicado na Folha de São Paulo, edição de 26 de março,  sobre o genocídio armênio. A Turquia teima em não reconhecer o genocídio, contra evidências históricas esmagadoras.



O texto é de Simão Kerimian
















O primeiro genocídio do século 20





A impunidade turca no genocídio armênio ajudou Hitler a justificar o
Holocausto: "Quem lembra dos armênios?", disse ele; a Turquia segue sem
reconhecer seu crime








Ao aproximarmos do mês de abril, a lembrança nos remete ao fatídico 24
de abril de 1915, consagrado como o dia de luto nacional para o povo
armênio e seus descendentes. Essa é uma data tarjada com o sangue de 1,5
milhão de armênios chacinados pelos turcos-otomanos de então.
É preciso rememorar a perda irreparável dos mártires armênios, que
representou essa hecatombe inenarrável da tragédia do genocídio de 1915,
o primeiro do século 20.


Os armênios foram forçados a abandonar seus lares diante da violência
desumana e bárbara, executava com requintes de crueldade inimagináveis
pela mente humana por ordens do governo turco-otomano.


O povo armênio, cujas raízes se estendem pelo mundo, disperso pela
emigração a que fora obrigado, acabou em uma diáspora sem rumo e sem
destino, ancorando nos portos dos países dispostos a acolhê-lo.


Esse genocídio, ainda impune, serviu de incentivo para que Hitler, de
triste memória, ao invadir a Polônia, "justificasse" o holocausto judeu.
"Quem se lembra dos massacres dos armênios?", disse ele, em uma clara
referência à impunidade dos genocidas turcos.


A atual Turquia, que deveria se redimir do crime praticado por seus
antepassados, tenta falsear a verdade histórica fartamente comprovada. A
Turquia é devedora do reconhecimento desse crime como reparação moral
perante o mundo civilizado.


Entre os que testemunharam esse genocídio, estão abalizados diplomatas
estrangeiros como o americano Henry Morgenthau, então na Turquia: "O
turco julgava ter o direito de experimentar o fio de sua espada no
pescoço de qualquer cristão. Os fatos ultrapassam as crueldade mais
diabólicas nunca imaginadas na história do mundo".


Morgenthau escreveu ainda que "as autoridades turcas deram uma sentença
de morte para uma raça inteira. Eles entenderam isso bem e, em suas
conversas comigo, não fizeram nenhuma tentativa particular de esconder o
fato".


Visconde James Bryce, da Câmara dos Lordes do Reino Unido, também
escreveu sobre o assunto. "Não se registra outro fato na história, desde
os tempos de Tamerlão, de crimes tão horrendos". Arnold Toynbee,
proeminente historiador britânico, e Winston Churchill, foram outros que
escreveram sobre o genocídio.


Para Churchill, "não há dúvidas de que este crime foi planejado e
executado por razões políticas. A oportunidade apresentou-se para
eliminar do solo turco uma raça cristã".


No Brasil, entre 70 mil e 100 mil armênios e seus descendentes,
concentrados mais no Estado de São Paulo, aguardam o reconhecimento do
genocídio pelo Brasil, a exemplo de Uruguai, Argentina, Rússia, França,
Suécia, Vaticano, Itália, Alemanha, Venezuela, Chile e vários outros
países.


A União Europeia inclusive condiciona a entrada da Turquia como membro ao reconhecimento do genocídio por ela.


Na França, o Parlamento aprovou uma lei criminalizando a negação do
genocídio armênio, que foi recentemente considerada inconstitucional
pela Justiça do país.


Esse tema foi abordado neste jornal pelo professor Luiz Carlos
Bresser-Pereira ("A boa consciência da França", em 30 de janeiro),
expressando a sua infeliz opinião equivocada, que ofendeu a memória
armênia ao fazer ilações irreais a favor do negacionismo.


Ele deve uma retratação perante a opinião pública do país e, em especial, perante a comunidade armênia.



SIMÃO KERIMIAN, 69, advogado e jornalista, representa o Conselho Nacional Armênio no Brasil

domingo, 18 de março de 2012

PUNIR A TORTURA É DIREITO E DEVER DA HUMANIDADE





                         


                              
                                                                             
                              




                                  














                            
                                                                             
                              


                                    




                          
"A regulamentação atual dos direitos humanos não se baseia na posição
soberana dos Estados, mas na pessoa enquanto titular, por sua tal condição, dos
direitos essenciais que não podem ser desconhecidos com base no exercício do
poder constituinte, nem originário, nem derivado"
   (Corte Suprema do Uruguai)
                                             




                                 


  
  decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu a invalidade da chamada Lei da
Anistia quando estendida aos responsáveis pelos crimes  praticados por
agentes da repressão no período da ditadura militar.




  
O Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
no. 153,  declarou que era válida, apesar de anistiar crimes contra a
Humanidade.




 
Tem-se uma antinomia - conflito de normas. A sociedade deve saber qual a
solução do conflito.




  No Direito Internacional dos Direitos
Humanos normas são vinculantes de duas maneiras: por força da convencionalidade
ou porque são imperativas. Ambas estão em questão no caso da Lei de Anistia
brasileira e ambas oferecem a mesma solução para o conflito de decisões. Além
de abordar esses dois aspectos, vamos nos deter na superação do Positivismo
jurídico, na imprescritibilidade dos crimes contra a Humanidade e nos pontos
fulcrais da decisão da Corte Interamericana.







1.      Convencionalidade





Após a decisão da Corte Interamericana, o
ministro César Peluso declarou ao jornal O
Estado de São Paulo:
 “a eficácia [da decisão da Corte] se dá no campo da convencionalidade. Não
revoga, não anula e não cassa a decisão do Supremo”
.




  
Dita pelo presidente da mais alta corte de justiça do país, proporcionou
um  reforço para os que defendem a não punição dos crimes contra a
Humanidade cometidos no período do regime militar.   Abriu como que
uma zona de alívio para eles, dando-lhes um  aparente conforto na 
segurança e  técnica jurídicas e no Estado de Direito.




       Nós outros, que  defendemos a
apuração, estaríamos agora repousando  à
margem  do Direito, esmagados pela
suposta racionalidade jurídica de quem é nada mais nada menos do que 
presidente do STF.   Permaneceríamos então repetindo argumentos
esvaziados, retóricos,  insistindo em controvérsias históricas superadas
e  apelos vãos, em divergência meramente política (ou movida pela “vingança”) 
com os que defendem a “reconciliação nacional” ou a versão do “grande acordo”
de 1979 que teria respaldado a Lei da Anistia. O Ministro  transmitiu ao
país a ideia de que o procedimento jurídico encerrou-se e o regime
democrático-constitucional deu a última palavra.




   
Falso. A afirmação do Ministro é simplesmente errada.   Ao
recorrer daquele modo  à expressão
convencionalidade o  ministro  cometeu
um truque semântico: confundiu o sentido técnico-jurídico com o  sentido genérico da palavra. Neste último
caso, a expressão denota uma ideia de quase arbítrio frente a um dispositivo ou
regra qualquer,  sem força vinculante. Mas convencionalidade no plano do
Direito Internacional tem um sentido técnico  preciso: é o modo de criação de normas jurídicas
vinculantes
.[1]




   
O fenômeno normativo no plano do Direito Internacional torna-se vinculante por
acordo entre os Estados. O fundamento dessa vinculação é o vetusto princípio
 pacta sunt servanda. O pactuado
deve ser cumprido sob pena de  ilicitude.
Estamos longe, portanto, daquela atmosfera de mero arbítrio que a frase do
Ministro tenta invocar.





2.      Normas
Imperativas ou Cogentes





    O
Direito Internacional não se esgota em normas convencionais. Houve uma
construção histórica de   normas imperativas (independentes
de convencionalidade) de Direito Internacional. A doutrina já havia estabelecido
esse conceito para o Direito Internacional mesmo antes da II Guerra, mas então
controvertidamente.[2] Agora está declarado na Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados
, do qual o Brasil é parte desde 2009. Normas imperativas significa
dizer que são cogentes. A cogência é um conceito da Teoria Geral do Direito,   que
distingue entre jus cogens e jus dispositivum.




 
  O jus dispositivum refere-se a
 norma cuja efetividade está condicionada
à vontade dos sujeitos da relação jurídica. Direitos patrimoniais, em regra,
são regulados por direito dispositivo. Se uma multa contratual entre sujeitos
privados está fixada em 10%, mas o credor resolve que recebe 5%, ou resolve que
recebe nada, sua vontade é soberana e a norma somente opera pela sua vontade.
Mas o jus cogens,  direito cogente,   prescinde da vontade
das partes para sua aplicação. Assim, o  Código Civil proíbe
 negociar herança de pessoa viva, mesmo com o consentimento  da
pessoa. Esta é uma norma  cogente, como também qualquer uma, por
exemplo,  que verse sobre tributos. A vontade do agente estatal e do
contribuinte são indiferentes.




   
Além do fenômeno da
convencionalidade  sustentado pelo
princípio  pacta sunt servanda, há normas
de Direito Internacional que têm a característica da cogência.




     Após Nuremberg  se reconhece que normas
do Direito Internacional dos Direitos Humanos são cogentes
. Derivadas
dos costumes e de outras fontes formais do Direito, independem, para sua
eficácia, da vontade dos  sujeitos envolvidos numa relação jurídica. A
racionalidade disto é clara. Trata-se de  um imperativo moral transformado em axioma
jurídico: como poderia a proteção da vida e dos direitos básicos da
pessoa humana depender de um ato de vontade, em qualquer plano do fenômeno
jurídico?
 







3.      Superação
do Positivismo Jurídico 





       Em Nuremberg dirigentes de  um
Estado soberano foram  julgados por uma corte internacional.  Para
isto contribuíram  não só normas convencionais[3], mas também o costume internacional e os
princípios gerais de Direito como fontes de normas vinculantes, cogentes,   de  proteção
da Humanidade
.




        Nuremberg foi, por isso,  o ponto de ruptura com o positivismo jurídico.
A ideia  de que somente 
normas positivadas por meio de determinados procedimentos formais constituem o
Direito independentemente de juízo de valor deve ser considerada hoje  uma
etapa primitiva do desenvolvimento do fenômeno jurídico. Isto porque a  dignidade humana deixou de ser um postulado
filosófico para tornar-se axioma jurídico. Está  na raiz  dos instrumentos internacionais
de defesa dos Direitos Humanos que se seguiram à barbárie nazista:  a
Declaração de Universal de 1948, o Pacto de Direitos Civis e Políticos,  a
Declaração de Direitos Econômicos e Sociais, a Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade, de 1968,
Convenção contra a Tortura, etc.    No aspecto penal,  os
Princípios de Nuremberg, aprovados pela ONU em 1950, consolidaram como crimes
de Direito Internacional crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra
a humanidade, afirmando, de modo expresso, que  a lei interna não isenta de responsabilidade o perpetrador.
Claro.  Sem isso  tudo seria inútil. Dentro dos estreitos limites
impostos pelo Positivismo jurídico e seu corolário, a soberania dos Estados
entendida como absoluta,  não se poderia
conceber uma norma imperativa, cogente, de defesa da Humanidade.







4.      Imprescritibilidade





  
Permitir que o decurso do tempo tornasse impuníveis crimes contra a Humanidade
significaria relativizar a ideia de Humanidade. Certamente que a prescrição no
Direito comum é  um conceito iluminista, necessário e civilizado. Mas a
imprescritibilidade dos crimes contra a Humanidade incorpora esse ideal
iluminista. As declarações de direitos na Revolução Francesa  tinham como sujeitos
de direitos  os indivíduos. Nos momentos históricos seguintes surgem outros
sujeitos de direitos, não mais indivíduos, mas coletivos – trabalhadores,
minorias, excluídos, etc. E num terceiro momento surge, com o Direito
Internacional dos Direitos Humanos a  própria humanidade como
sujeito de direito


  
A imprescritibilidade  é necessária porque
nos crimes contra a humanidade há  um enorme potencial de aniquilação de
seres humanos (o imenso poder de um Estado e consequente  capacidade de
destruição interna e externa). Há o risco de extermínio de etnias, minorias, de
certos valores culturais, espirituais, sociais, expressões políticas,
filosóficas, etc. O que se protege é a própria sobrevivência da
humanidade em sua inteireza,  complexidade e riqueza
. Por isso o
poder de persecução é  absoluto, transcende fronteiras, soberanias e
limitações próprias de outro  estágio de civilização e de outro plano
jurídico.





5.      A
Decisão da Corte Interamericana





O Brasil  ratificou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos
em 1992. Reconheceu  a competência da Corte Interamericana na
significativa data de 10 de dezembro de 1998 (aniversário da promulgação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU), nos seguintes termos: 




“o Brasil declara que reconhece, por tempo
indeterminado, como obrigatória e de
pleno direito
, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com o artigo 62, sob reserva
de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração”
(grifei). 




Veja-se que no plano da convencionalidade o conceito clássico de soberania
estatal nem se modifica. O reconhecimento de uma corte internacional se
dá como  ato de soberania e o acatamento das decisões que dela emanam é
consequência lógica dessa soberania. Vale dizer, de sua vontade. 
      
        


   
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu, em face da
convencionalidade,  à Corte uma
demanda contra o Brasil conforme petição apresentada pelo Centro pela
Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e Human Rights Watch/Américas. A
denúncia consistiu  na responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do
Partido Comunista do Brasil e camponeses da região do Araguaia em decorrência
de operações do Exército brasileiro. Ressaltou a Comissão, em síntese,
 que o Brasil, por força da Lei 6.683/79 (“Lei de Anistia”),  não
realizou investigação penal com a finalidade de julgar e punir os responsáveis
pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas;  que as medidas legislativas e
administrativas adotadas  restringiram indevidamente o direito de acesso à
informação pelos familiares; que o desaparecimento das vítimas, a impunidade
dos responsáveis e a falta de acesso à Justiça, à verdade e à informação
afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e
da pessoa executada.


  
O reconhecimento da competência da Corte Interamericana pelo Brasil se deu com
a ressalva dos fatos anteriores a 1998.  O caso Araguaia ficou 
a salvo da ressalva
. A Corte delimitou sua competência aos casos
dos desaparecidos porque o desaparecimento forçado é crime continuado, e
portanto  seus efeitos persistem após 1998.
  Por isso ficou
excluída da decisão o caso de Maria Lúcia Petit da Silva,  cujos restos
mortais foram localizados após 1998. Mas deu-se por competente também
para os fatos e omissões ocorridos a partir de 10 de dezembro de 1998, como a
ausência  de investigação e outras omissões.


  
Isto é de fundamental importância neste momento. Nos termos da decisão da
Corte, temos: 







...o caráter contínuo e permanente do
desaparecimento forçado de pessoas foi reconhecido de maneira reiterada pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos, no qual o ato de desaparecimento e
sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente
falta de informação sobre seu destino, e permanecem até quando não se conheça o
paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos. A
Corte, portanto, é competente para analisar os alegados desaparecimentos
forçados das supostas vítimas a partir do reconhecimento de sua competência
contenciosa efetuado pelo Brasil”
.  




 


  
A Corte afirmou que não há controvérsia fática porque o Estado brasileiro
reconheceu sua responsabilidade  e relatou as medidas de reparação
destinadas às vítimas da ditadura militar (Lei 9.140/95).  A divergência
foi apenas jurídica. Desse modo  concluiu provado que, entre os anos de
1972 e 1974, na região do Araguaia, agentes do Estado foram responsáveis pelo desaparecimento
forçado de 62 pessoas:




“Transcorridos
mais de 38 anos, contados do início dos desaparecimentos forçados, somente
foram identificados os restos mortais de duas delas. O Estado continua sem
definir o paradeiro das 60 vítimas desaparecidas restantes, na medida em que,
até a presente data, não ofereceu uma resposta determinante sobre seus
destinos”
. Em conclusão,
assinalou  que “o Estado é
responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos
direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade
pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos, respectivamente, nos artigos 3,
4, 5 e 7, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo das
seguintes pessoas (...)”
.







  
Estabelecidos os fatos e reconhecida a responsabilidade do Estado brasileiro, o
obstáculo à investigação e eventual punição dos responsáveis é a Lei de
Anistia. A Corte declarou que ela não
é válida
. Não pode  produzir efeitos jurídicos:







“Este
Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações
Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos
humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia,
relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e
as obrigações internacionais dos Estados (...) no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, do qual  Brasil faz parte por decisão soberana, são
reiterados os pronunciamentos sobre a incompatibilidade das leis de anistia com
as obrigações convencionais dos Estados, quando se trata de graves violações
dos direitos humanos. Além das mencionadas decisões deste Tribunal, a Comissão
Interamericana concluiu, no presente caso e em outros relativos à Argentina,
Chile, El Salvador, Haiti, Peru e Uruguai, sua contrariedade com o Direito
Internacional
.  





Lembrou decisão do Tribunal Penal
Internacional para a ex-Iugoslávia:





carece de sentido, por um lado, manter a
proscrição das violações graves dos direitos humanos e, por outro, aprovar
medidas estatais que autorizem ou perdoem, ou leis de anistia que absolvam seus
perpetradores”
.          




           Na análise ainda da lei de anistia
brasileira ressaltou a Corte:



 “a forma na qual foi interpretada e aplicada
a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (...) afetou o dever internacional do
Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao
impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um
juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o
direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento,
precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e
punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o art 1.1 da Convenção.
Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos
e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por
violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o
Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no
art. 2 da Convenção Americana”.



  


  
Em sentido absolutamente contrário ao afirmado pelo Ministro Cesar Peluso
(lembremos o que ele disse: a decisão da Corte “se dá no campo da convencionalidade, não altera a decisão do STF”,
etc),  a Corte foi peremptória: é obrigação das autoridades judiciais
efetuar o controle de convencionalidade como obrigação assumida pelo Estado
brasileiro na ordem internacional. Isto deve fazer o Ministro lembrar-se de que
a ordem jurídica internacional não é uma uma espécie de adorno:




“O Tribunal estima oportuno recordar que as
obrigações de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas
corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade
internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e
nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais e
internacionais de boa fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e
conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados
de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir
obrigações internacionais. As obrigações internacionais dos Estados-Partes
vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das
disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano do seu
direito interno.




   Patente, portanto, que o presidente do
Supremo Tribunal Federal desinformou a sociedade brasileira. O Estado
brasileiro tem obrigações internacionais assumidas no exercício de sua
soberania. Os três Poderes da República devem cumpri-las.  Aliás, quem
pleiteia um assento definitivo no Conselho de Segurança da ONU não pode ignorar
as decisões de órgãos internacionais de que  participa, sob pena de
desmoralização.


Embora a Corte tenha delimitado sua competência aos efeitos jurídicos
 pós-1998 respeitando   a  ressalva do Brasil, em voto
apartado o juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas enfatizou aspectos
relacionados com o caráter vinculante das normas de Direito Internacional dos
Direitos Humanos – o jus cogens
referido acima.   O Brasil deve dar cumprimento às normas cogentes
protetivas da humanidade  para além da convencionalidade, 
estendendo os efeitos da decisão da Corte aos atos praticados pela ditadura
militar no período 1964-1985. Assassinatos, torturas, violações,
desaparecimentos forçados, ferem normas do  jus cogens do Direito Internacional dos Direitos Humanos e
isto  impõe que o Estado brasileiro
assuma integralmente sua responsabilidade e proceda à investigação e a
persecução penal em todos os casos de crimes contra a humanidade
praticados pela ditadura militar
. As proibições cogentes no campo
dos direitos humanos  superpõem-se a qualquer norma de direito interno.
Prevalecem mesmo diante do poder constituinte originário. Na decisão,  a
Corte Interamericana citou julgado da Corte Suprema do Uruguai a esse respeito:




 “a regulamentação atual dos direitos humanos
não se baseia na posição soberana dos Estados, mas na pessoa enquanto titular,
por sua tal condição, dos direitos essenciais que não podem ser desconhecidos
com base no exercício do poder constituinte, nem originário, nem derivado”.




  
O juiz Caldas fez constar em seu voto separado  afirmação coincidente.
Lembrou que é irrelevante a não ratificação pelo Brasil da Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade porque ela não é
criadora do Direito, mas meramente consolidadora. Desde Nuremberg reconheceu-se
a existência de um costume internacional cujos primórdios remontam ao preâmbulo
da Convenção de Haia de 1907.  Assim, prossegue o juiz Caldas, o jus cogens “transcende o Direito dos
Tratados e abarca o Direito Internacional em geral, inclusive o Direito
Internacional dos Direitos Humanos”. Em sua conclusão, afirma:




 “É
prudente lembrar que a jurisprudência, o costume e a doutrina internacionais
consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposições
acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excudentes de punibilidade,
deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os
crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um
indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas
transmissões por gerações de toda a humanidade. É preciso ultrapassar o
positivismo exacerbado”.





       Na consciência jurídica 
contemporânea  a Humanidade  é o
sujeito de direito. O juiz deve, se demandado em um momento
especial,    julgar acima do poder constituinte originário.
Isto há de deixar pálidos juristas não acostumados a raciocinar fora dos
limites do Positivismo jurídico.


   
A segurança jurídica - o lapidar mote do Positivismo jurídico -  reside,
na verdade,  em certos valores e princípios assentados na defesa da pessoa
humana. Segurança jurídica para proteger torturadores?  Admitir - como se
fez em Nuremberg - que em casos de barbárie devem ser preservados valores
universais em detrimento da técnica cega e irracional terá a vantagem de
delimitar claramente em que circunstâncias a forma positiva clássica do Estado
contemporâneo prevalece e em que circunstâncias não. Estabelecer os
limites de um conceito não o enfraquece. Metodologicamente, o fortalece. Quando
dizemos "isto pode" e "isto não pode", com clareza e acerca
de juízos racionais que permitem um acordo entre sujeitos democráticos, teremos
o Direito a serviço da sociedade e não a sociedade a serviço de uma técnica
jurídica entendida acriticamente como um valor em si mesmo. Ou entendemos que
estes conceitos estão consolidados ou continuaremos reféns daquelas trevas que
nos infelicitaram durante  21 anos. Eles
serão a base do Direito no 3o. milênio,  uma etapa superior de moralidade  e
civilização.




       Portanto, todos os conceitos em jogo convergem
para a mesma solução daquela  antinomia:
prevalece o decidido pela Corte Interamericana. No plano da convencionalidade,
o Brasil se obrigou, e essa obrigação não é um adorno, como deu a entender o
senhor ministro.  Gera efeitos. Há normas
imperativas, cogentes, que devem ser  aplicadas independentemente da convencionalidade
e alcançam os crimes cometidos durante toda a ditadura militar. O Positivismo
jurídico e seu corolário de soberania absoluta estão completamente superados.
As normas imperativas que condenam os crimes contra a Humanidade  são imprescritíveis.




   
Contra a resistência de setores desinformados, de má-fé ou com interesses
obscuros a resguardar deve ser oposta esta consciência jurídica universal e a
segura trilha de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. Trata-se
de saber que sociedade estamos construindo. Uma em que é possível admitir que o
Estado, em um momento, aniquile, brutalize, torture, faça desaparecer pessoas e
 imponha a uma parte de seus cidadãos  sofrimento indizível até o
final de seus dias, e em   outro momento ignore tudo por razões
políticas; ou uma sociedade em que cada brasileiro tenha a proteção absoluta de
membro da humanidade
.  Muitos de nós fizemos a escolha moral, que
é amparada pelo Direito,  e não vamos  renunciar ao bom combate.
Outros, que calam indiferentes, que  façam a escolha que não os envergonhe
perante as gerações futuras. Porque punir a tortura é direito e dever  da Humanidade.







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Notas





1. Nas
palavras de Francisco Rezek:  "A produção de efeitos de direito é
essencial ao tratado, que não pode ser visto senão na sua dupla qualidade de ato
jurídico
e de norma. O acordo formal entre Estados é o ato jurídico
que produz a norma, e que, justamente por produzi-la, desencadeia efeitos de
direitos, gera obrigações e prerrogativas, caracteriza enfim, na plenitude de
seus dois elementos, o tratado internacional" (Direito Internacional
Público
, 11a ed., p. 18, Editora Saraiva)


2.  Rezek,
ob.cit., p. 115/116


3.  Cf.
Telford Taylor, The Anatomy of the
Nuremberg Trials, Alfred A. Knopf, Inc











































terça-feira, 13 de março de 2012

MANIFESTO DOS JUÍZES PELA COMISSÃO DA VERDADE






Nós, juízas e juízes brasileiros, exigimos que o país quite a enorme dívida
que
possui com o seu povo e com a comunidade internacional, no que diz
respeito à verdade e justiça dos fatos praticados pela ditadura militar,
que teve início com o golpe de 1964.

A Comissão da Verdade,
criada por lei, é mecanismo que deve contribuir para melhorar o acesso à
informação e dar visibilidade às estruturas da repressão, reconstruindo
o contexto histórico das graves violações humanas cometidas pela
ditadura militar e promover o esclarecimento dos casos de tortura,
mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres.

Estamos
certos, como decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
que “as atividades e informações que, eventualmente, recolha (a Comissão
de Verdade), não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a
verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades“.

Manifestações
que buscam cobrir as violações cometidas sob o manto da ignorância são
um golpe para os direitos humanos e afrontam o patamar da dignidade
humana estabelecido na Constituição Federal e normativa internacional.
Todos e todas têm o direito de saber o que ocorreu em nosso país, tarefa
que compete à Comissão da Verdade, a ser composta por pessoas
comprometidas com a democracia, institucionalidade constitucional e
direitos humanos.

Aguardamos que a Comissão da Verdade seja
constituída o quanto antes, devidamente fortalecida e com condições
reais para efetivação do seu mister.


Jorge Luiz Souto Maior - SP
João Ricardo dos Santos Costa - RS
Kenarik Boujikian Felippe – SP
Alessandro da Silva- SC
Marcelo Semer- SP
André Augusto Salvador Bezerra - SP
Gerivaldo Neiva – BA
Roberto Luiz Corcioli Filho – SP
Aluísio Moreira Bueno - SP
Carlos Frederico Braga da Silva - MG
Angela Maria Konrath - SC
Fernanda Menna Pinto Peres - SP
Adriano Gustavo Veiga Seduvim - PA
Rubens Roberto Rebello Casara – RJ
Mauro Caum Gonçalves - RS
Roberto Arriada Lorea - RS
Alexandre Morais da Rosa - SC
João Batista Damasceno - RJ
Marcos Augusto Ramos Peixoto – RJ
Lygia Maria de Godoy Batata Cavalcanti - RN
Luís Carlos Valois Coelho - AM
Dora Martins - SP
José Henrique Rodrigues Torres - SP
Andréa Maciel Pachá - RJ
Maria Coeli Nobre da Silva – PB
Ruy Brito - BA
Paulo Augusto Oliveira Irion - RS
Amini Haddad - MT
Geraldo Prado - RJ
Michel Pinheiro - CE
Alberto Alonso Muñoz - SP
Julio José Araujo Junior - RJ
Fernando Mendonça - MA
André Luiz Machado - PE
Grijalbo Fernandes Coutinho - DF
Fábio Prates da Fonseca - SP
Marlúcia de Araújo Bezerra - CE
Maria das Graças Almeida de Quental - CE
Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho - BA
Weliton M. dos Santos - MG
Célia Regina Ody Bernardes - MT
Oscar Krost - SC
Adriana Ramos de Mello - RJ
José Roberto Furquim Cabella - SP
Maria Cecília Alves Pinto - MG
Sergio Renato Domingos - SC
Mário Soares Caymmi Gomes - BA
Fábio Henrique Rodrigues de Moraes Fiorenza - MT
Jeferson Schneider - MT
Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia – RS
Lucas Vanucci Lins - MG
Douglas de Melo Martins - MA
Alberto Silva Franco - SP
Fernanda Souza P. de Lima Carvalho - SP
Cristiana de Faria Cordeiro - RJ
Umberto Guaspari Sudbrack - RS
Erico Araújo Bastos - BA
Edson Souza – BA
Amilton Bueno de Carvalho - RS
José Augusto Segundo Neto - PE
Salem Jorge Cury - SP
Rita de Cássia M. M. F. Nunes - BA
José Viana Ulisses Filho - PE
Milton Lamenha de Siqueira - TO
Maria da Graça Marques Gurgel - AL
Luiz Alberto de Vargas – RS
João Marcos Buch – SC
Ivani Martins Ferreira Giuliani - SP
Maria Cecilia Fernandes Alvares Leite - SP
Saint-Clair Lima e Silva – SP
Magda Barros Biavaschi – RS
Bernardo Nunes da Costa Neto - PE
Beatriz de Lima Pereira – SP
Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho - BA
Edvaldo José Palmeira - PE
Denival Francisco da Silva - GO
Maria Madalena Telesca - RS
Reginaldo Melhado - PR
Ana Claudia Petruccelli de Lima- PE
Albérico Viana Bezerra - PB
Carlos Eduardo Oliveira Dias - SP
Ana Paula Alvarenga Martins - SP
Theodomiro Romeiro dos Santos – PE
José Tadeu Picolo Zanoni – SP
Maria Sueli Neves Espicalquis – SP
Sandra Miguel Abou Assali Bertelli -SP
Luís Christiano Enger Aires - RS
Carmen Izabel Centena Gonzalez - RS
Rute dos Santos Rossato – RS
Reno Viana - BA
Orlando Amâncio Taveira - SP
André Luis de Moraes Pinto - RS
Norivaldo de Oliveira - SP
Eugênio Couto Terra - RS
Denise Oliveira Cezar – RS
Helder Luís Henrique Taguchi – PR
Sérgio Mazina Martins - SP
Eugênio Facchini Neto - RS
Gilberto Schäfer - RS
Rodrigo de Azevedo Bortoli - RS
André Luis de Moraes Pinto – RS
Paulo da Cunha Boal - PR
Laura Benda - SP
Joana Ribeiro Zimmer - SC
Bráulio Gabriel Gusmão - PR
Graça Carvalho de Souza - MA
Andrea Saint Pastous Nocchi - RS
Fernando de Castro Faria - SC
Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior - SP
Angélica de Maria Mello de Almeida - SP
Andréia Terre do Amaral - RS
Fabiana Fiori Hallal - RS
Maria Lucia Boutros Buchain Zoch Rodrigues - RS.
Laura Borba Maciel Fleck - RS
Luís Fernando Camargo de Barros Vidal - RS
Régis Rodrigues Bonvicino – SP
Luis Manuel Fonseca Pires – SP
Carlos Vico Mañas - SP
Mylene Gloria Pinto Vassal - RJ

quarta-feira, 7 de março de 2012

UM TEXTO DE LEONARDO BOFF (OU "OUSAR SABER")




  


 


    Este texto de Leonardo Boff (de 2010) é uma boa leitura considerando os acontecimentos dos primeiros dias de 2012. Suscita algumas reflexões. A terrível associação entre "cumprir ordens" e crimes contra a Humanidade, ou qualquer forma de perversidade, assombra nosso tempo. Ao escrever sobre o sentido do Iluminismo, Kant disse que a ideia era "sapere aude":  ter a ousadia de saber. O indivíduo que sacraliza uma regra, uma ordem, uma norma positiva sem submetê-la a um juízo crítico aliena sua humanidade. Torna-se coisa. Peça de uma engrenagem. Escravo de alguém.  Ao negar a própria humanidade - porque não pensa - nega a humanidade do outro. Tudo está ligado no humano. Exercer a plenitude da própria  condição humana, não renunciando à faculdade de raciocinar, faz ver a plenitude da condição humana do outro.



Segue o texto (http://leonardoboff.com/site/lboff.htm)









Recordamos neste ano os 65 anos do Holocausto de judeus perpretado pelo
nazismo de Hitler e de Himmler. É terrificante a inumanidade mostrada
nos campos de extermínio, especialmente, em Auschwitz na Polônia. A
questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos que se perguntaram:
como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas seja de
Hans Jonas do lado judeu, seja de J.B.Metz e de J. Moltmann do lado
cristão, são insuficientes. A questão é ainda mais radical: Com pensar o
ser humano depois de Auschwitz?


   




É certo  que o inumando pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade
cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente e sem
qualquer escrúpulo de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a
raça ariana-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na
terceira categoria e outras, feitas escravas ou simplesmente
exterminadas. Nas palavras de seu formulador, Himmler, em 4 de outubro
de 1943: "Essa é uma página de fama de nossa história que se escreveu e
que jamais se escreverá". O nacionalsocialismo de Hitler tinha a clara
consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se
transformou para ele em  virtude e glória. Aqui se revelam traços do
Apocalipse e do Anti-Cristo.






O livro mais perturbador que li em toda minha vida e que não acabo nunca
de digerir se chama: "Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de
Rudolf Höss"(1958). Durante os 10 meses em que ficou preso e
interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia entre 1946-1947 e
finalmente sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever com extrema
exatidão e detalhes como enviou cerca de dois milhões de judeus às
câmaras de gás. Ai se montou uma fábrica de produção diária de milhares
de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a "banalidade da
morte" de que falava Hannah Arendt.






Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não imaginemos que unia o
extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo diabólico e
pura brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos,
consciencioso, amigo da natureza, em fim, um pequenoburgues normal. No
final, antes de morrer, escreveu: "A opinião pública pode pensar que sou
uma béstia sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de
milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração
e que ele não era mau".Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.






Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a
 humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a
total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e
o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e
radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do "Fuhrer" de exterminar os
judeus, então não se deve sequer pensar: vamos exterminá-los (der Führer befiehl, wir folgen). Confessa que nunca se questionou porque "o chefe sempre tem razão". Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.






Mas o mal também tem limites e Höss os sentiu em sua própria pele.
Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças estavam
mergulhadas em seu brinquedo. Sua mãe era empurrada para dentro da
câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. "O olhar
suplicante da mãe, pedindo misericórdia para aqueles inocentes"- comenta
Höss - nunca mais esquecerei". Fez um gesto brusco e os policiais os
jogaram na câmara de gás. Mas confessa que muitos dos executores não
aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.






Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por
sistemas totalitários e de obediência cega, seja políticos, religiosos
ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.






Este risco nos cerca pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de
desiquilibrar o sistema Terra e de liquidar, em grande parte, a vida.
Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a
compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.





Leonardo Boff


domingo, 4 de março de 2012

"HOJE, CONSENTE QUEM CALA"







   5 de maio de 1977. No largo São Francisco,  primeira manifestação de massa do Movimento Estudantil após a fase 1968. Estou aí no meio. Saímos pela Líbero Badaró e entramos no viaduto do Chá. No final do viaduto, as tropas de Erasmo Dias barraram a passeata com bombas (este é o momento captado pela foto). Sentamos no chão e lemos  o manifesto "Hoje, Consente Quem Cala".




   Naquela fase de rearticulação do Movimento Estudantil, a orientação era não expor as lideranças. Em 1968 os líderes transformavam-se instantaneamente em  estrelas nacionais.




   Travassos, José Dirceu, Jean Marc, Catarina Meloni, Vladimir Palmeira eram figuras quase cotidianas  do noticiário e até capas de revistas. Em 1977, somente a "vanguarda" do Movimento, a rigor, e mal e mal,  sabia identificar o núcleo que reorganizava os estudantes.




    Era uma medida de segurança e também  evitava personalismos.  Em vez de líderes carismáticos, apareciam as Tendências. Refazendo, ligada a militantes que haviam perdido contato com a AP e que conseguiram se reorganizar por volta de 1976, Caminhando, do PC do B, Liberdade e Luta, trotskista.




   Os comunistas do PCB praticamente inexistiam nesse momento. Sofriam as consequências da ofensiva da ditadura em 74/75, que dizimou boa parte do Comitê Central e culminou no assassinato de Herzog.




   Eu me organizei no PCB em 1978, e nossa base na Faculdade de Direito da USP  era constituída por exatamente três militantes. Tínhamos quadros na Faculdade de Medicina (a base mais forte),  ECA, Direito-PUC, FAU, e não muito mais do que isso.




   Éramos chamados de reformistas pelas outras tendências - a "reforma" - e alguém desavisado ou meio distraído diria que éramos a "Tendência Reforma". No final dos anos 90, eu e Nilton de Freitas Monteiro (amigo que a morte levou há 2 anos), dois dos três militantes da base da São Francisco, fomos ao arquivo do Estado na rua Antonia de Queiroz ver as fichas do DEOPS. Achamos as nossas.  Registros de atividades, como participação em Assembléias, coisas assim, e no item "tendência" vinha  assinalado "REFORMA". O estúpido  "rato" que passava informações à polícia, que não podia por ofício ser desavisado, achou mesmo que éramos a "Tendência Reforma"...




   Entre aqueles líderes "clandestinos" de 1977 estava a Veroca. No restrito universo que sabia das lideranças  tornou-se musa. Ninguém passava incólume pelo seu charme. Bonita, articulada, determinada e segura.




   Erasmo Dias era obcecado por ela. Na invasão da PUC em 1977, surtado, enlouquecido, berrava "cadê a Veroca, quero a Veroca!". O dispositivo infame do qual o coronel fascista fazia parte já havia assassinado o pai dela, Rubens Paiva. Erasmo queria perseguir também a filha. De onde viria essa sanha? Há quem sustente que a participação eficaz de Rubens Paiva na Comissão Parlamentar que investigou e desmascarou o IBAD-IPES, duas entidades anticomunistas que recebiam dinheiro americano, selou o seu destino. Possível que isto ainda repercutisse no ódio de Erasmo Dias por Veroca.




   Não tenho certeza se sabia na época que Veroca era filha de Rubens Paiva. Provavelmente só vim a saber depois que seu irmão Marcelo Rubens Paiva publicou Feliz Ano Velho e tornou-se escritor de renome. A Faculdade de Direito fora do campus dava a nós uma vivência diferente e   eu pertencia a outra Tendência.




   Veroca é hoje a psicóloga Vera Paiva. Na cerimônia em que a presidente Dilma assinou a lei de criação da Comissão da Verdade ela iria falar em nome dos familiares de vítimas e desaparecidos. Por razões não muito claras, não lhe permitiram discursar (de qualquer forma, no episódio ela parece ressalvar Dilma, referindo-se com emoção à postura da presidenta na cerimônia).




   O discurso não pronunciado de Vera Paiva foi publicado por seu irmão. Ela o nominou "HOJE, CONSENTE QUEM CALA", a frase que era a palavra de ordem naquela manifestação de  1977.  Vai reproduzido abaixo. Também posto o vídeo de sua entrevista antes da cerimônia.




   A frase resgatada de 1977 deve ecoar pelo país.  Calar sobre as brutalidades e a fúria assassina da ditadura militar, sobre as torturas, sobre os desaparecimentos, é consentir. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil a rever a lei de anistia e determinou a punição dos responsáveis pelas violações dos direitos humanos no período.




   O Estado brasileiro da ditadura militar praticou  crimes contra a Humanidade. Para o  Estado brasileiro de 2012 as alternativas são cumprir ou consentir.





   O discurso de Vera Paiva:






Excelentíssima Sra. Presidenta Dilma, querida ministra dos Direitos
Humanos Maria do Rosário. Demais ministros presentes. Senhores
representantes do Congresso Nacional, das Forças Armadas. Caríssimos
ex-presos políticos e familiares de desaparecidos aqui presentes, tanto
tempo nessa luta.






Agradecemos a honra, meu filho João Paiva Avelino e eu, filha e neto de
Rubens Paiva, de estarmos aqui presenciando esse momento histórico e,
dentre as centenas de famílias de mortos e desapare cidos, de milhares
de adolescentes, mulheres e homens presos e torturados durante o regime
militar, o privilégio de poder falar.






Ao enfrentar a verdade sobre esse período, ao impedir que violações
contra direitos humanos de qualquer espécie permaneçam sob sigilo,
estamos mais perto de enfrentar a herança que ainda assombra a vida
cotidiana dos brasileiros. Não falo apenas do cotidiano das famílias
marcadas pelo período de exceção. Incontáveis famílias ainda hoje, em
2011, sofrem em todo o Brasil com prisões arbitrárias, seqüestros,
humilhação e a tortura. Sem advogado de defesa, sem fiança. Não é isso
que está em todos os jornais e na televisão quase todo dia, denunciando,
por exemplo, como se deturpa a retomada da cidadania nos morros do Rio
de Janeiro? Inúmeros dados indicam que especialmente brasileiros mais
pobres e mais pretos, ou interpretados como homossexuais, ainda são
cotidianamente agredidos sem defesa nas ruas, ou são presos
arbitrariamente, sem direito ao respeito, sem garantia de seus direitos
mais básicos à não discriminação e a integridade física e moral que a
Declaração dos Direitos Humanos consagrou na ONU depois dos horrores do
nazismo em 1948.






Isso tudo continua acontecendo, Excelentíssima Presidenta. Continua
acontecendo pela ação de pessoas que desrespeitam sua obrigação
constitucional e perpetuam ações herdeiras do estado de exceção que
vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.






O respeito aos direitos humanos, o respeito democrático à diferença de
opiniões assim como a construção da paz se constrói todo dia e a cada
geração! Todos, civis e militares, devemos compromissos com sua
sustentação.






Nossa história familiar é uma entre tantas registradas em livros e
exposições. Aqui em Brasília a exposição sobre o calvário de Frei Tito
pode ser mais uma lição sobre o período que se deve investigar.






Em Março desse ano, na inauguração da exposição sobre meu pai no
Congresso Nacional, ressaltei que há exatos 40 anos o tínhamos visto
pela última vez. Rubens Paiva que foi um combativo líder estudantil na
luta “Pelo Petróleo é Nosso”, depois engenheiro construtor de Brasília,
depois deputado eleito pelo povo, cassado e exilado em 1964. Em 1971 era
um bem sucedido engenheiro, democrata preocupado com o seu país e pai
de 5 filhos. Foi preso em casa quando voltava da praia, feliz por ter
jogado vôlei e poder almoçar com sua família em um feriado. Intimado,
foi dirigindo seu carro, cujo recibo de entrega dias depois é a única
prova de que foi preso. Minha mãe, dedicada mãe de família, foi presa no
dia seguinte, com minha irmã de 15 anos. Ficaram dias no DOI-CODI, um
dos cenário de horror n aqu eles tempos. Revi minha irmã com a alma
partida e minha mãe esquálida. De quartel em quartel, gabinete em
gabinete passou anos a fio tentando encontrá-lo, ou pelo menos ter
noticias. Nenhuma noticia.






Apenas na inauguração da exposição em São Paulo, 40 anos depois, fizemos
pela primeira vez um Memorial onde juntamos família e amigos para
honrar sua memória. Descobrimos que a data em que cada um de nós decidiu
que Rubens Paiva tinha morrido variava muito, meses e anos
diferentes...Aceitar que ele tinha sido assassinado, era matá-lo mais
uma vez.






Essa cicatriz fica menos dolorida hoje, diante de mais um passo para que
nada disso se repita, para que o Brasil consolide sua democracia e um
caminho para a paz.






Excelentíssima Presidenta: temos muitas coisas em comum, além das marcas
na alma do período de exceção e de sermos mulheres, mãe, funcionária
pública. Compart ilhamos os direitos humanos como referência ética e
para as políticas públicas para o Brasil. Também com 19 anos me envolvi
com movimentos de jovens que queriam mudar o pais. Enquanto esperava
essa cerimônia começar, preparando o que ia falar, lembrava de como essa
mobilização começou. Na diretoria do recém fundado DCE-Livre da USP,
Alexandre Vanucci Leme, um dos jovens colegas da USP sacrificados pela
ditadura, ajudei a organizar a 1a mobilização nas ruas desde o AI-5,
contra prisões arbitrárias de colegas presos e pela anistia aos presos
políticos. Era maio de 1977 e até sermos parados pelas bombas do Coronel
Erasmo Dias, andávamos pacificamente pelas ruas do centro distribuindo
uma carta aberta a população cuja palavra de ordem era




HOJE, CONSENTE QUEM CALA.





Acho essa carta absolutamente adequada para expressar nosso desejo hoje,
no ato que sanciona a Comissão da Verdade . Para esclarecer de fato o
que aconteceu nos chamados anos de chumbo, quem calar consentirá, não é
mesmo?






Se a Comissão da Verdade não tiver autonomia e soberania para
investigar, e uma grande equipe que a auxilie em seu trabalho, estaremos
consentindo. Consentindo, quero ressaltar, seremos cúmplices do
sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança de
horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue
inquestionada nos fatos.






A nossa carta de 1977, publicada na primeira página do jornal o Estado
de São Paulo no dia seguinte, expressava a indignação juvenil com a
falta de democracia e justiça social, que seguem nos desafiando. O
Brasil foi o último país a encerrar o período de escravidão, os recentes
dados do IBGE confirmam que continuamos uma país rico, mas absurdamente
desigual... Hoje somos o último país a, muito timidamente mas com
esperança, começar a fazer o que outros países que viveram ditaduras no
mesmo período fizeram. Somos cobrados pela ONU, pelos organismos
internacionais e até pela Revista Economist, a avançar nesse processo.
Todos concordam que re-estabelecer a verdade e preservar a memória não é
revanchismo, que responsáveis pela barbárie sejam julgadas, com o
direito a defesa que os presos políticos nunca tiveram, é fun damental
para que os torturadores de hoje não se sintam impunes para impedir a
paz e a justiça de todo dia. Chile e Argentina já o fizeram, a África do
Sul deu um exemplo magnífico de como enfrentar a verdade e resgatar a
memória. Para que anos de chumbo não se repitam, para que cada geração a
valorize.





Termino insistindo que a
DEMOCRACIA SE CONSTRÓI E RECONSTRÓI A CADA DIA. Deve ser valorizada e reconstruída a CADA GERAÇÃO.



E que hoje, quem cala, consente, mais uma vez.



Obrigada



Vera Paiva



Universidade de São Paulo - PST & NEPAIDS




Entrevista de Vera Paiva