sábado, 25 de agosto de 2012

O Travesti, o Advogado e Cazuza



  “Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro”


(Cazuza, O Tempo Não Para)



             pj                                            


 


   O rapaz viera de Minas fazer a vida em São Paulo. Dera-se razoavelmente bem. Comprara um opala usado, mas em boas condições. Uma madrugada apareceu morto no carro. Um tiro na cabeça.


   Na mesma noite a polícia prendeu o suspeito. Um travesti teria assassinado o rapaz no programa. Latrocínio.


   O jovem advogado nomeado pelo juiz entrevistou o réu antes do interrogatório. Ele negou. Negou para o juiz. Já havia negado para a polícia. Negou tudo o tempo todo. Firme e serenamente.


   O advogado impressionou-se com a fragilidade do inquérito. Não havia prova alguma. Ocorreu que a polícia recebera informação de um alcagueta. Amarrou  circunstâncias e indícios fracos dando a tudo a aparência de racionalidade investigativa.  O informante nunca apareceu. Claro, era dedo-duro. O delegado mandou para o forum. Deu certo. Denúncia por latrocínio.


   Crime pesado com acusação precária transformavam um jovem advogado em Perry Mason. A máquina do Estado, porém, tinha sua lógica vil. Crime pesado que saía em jornal sem solução era duro de engolir. Alguém pagava.


    O defensor entendeu o jogo jogado. Era simples: acreditar no alcagueta. A polícia acreditou e gostou muito de acreditar. Resolvia tudo. O Ministério Público acreditou. Faltava o juiz acreditar. Uma aposta. Se desse certo, missão cumprida. Se não desse, o sol nasceria do mesmo jeito no dia seguinte.


    "Não vai ser bem assim", pensou o advogado. Saiu do forum indignado e foi tomar um café expresso ali na rua XI de agosto, ao lado do Palácio da Justiça. Na época o forum criminal era lá.  Sorveu o expresso curto, forte e sem açucar entre murmúrios. “Filhos da puta esses caras pensam que nunca teve a porra do Iluminismo pensam que isso é processo inquisitório pensam que vivemos na porra da Idade Média pegar um travesti de programa marginal entre os marginais tão fácil meter o miserável na cadeia 30 anos quem condena é o alcagueta da polícia não precisa mais nada e todos os ilustres bacharéis delegados promotores juízes fazendo de conta que a coisa é séria que aprenderam tudo de Beccaria na Faculdade que o processo penal é civilizado e no final das contas estão apenas carimbando a palavra de um torpe alcagueta?”


   O processo correu como o advogado previa. Nada que prestasse. Depoimento dos policiais que prenderam o réu e de uma tia da vítima que nem morava aqui e apenas cuidou do funeral. A audiência constrangeu todos. Deu pena da pobre mulher ouvindo aquela história de como seu sobrinho havia sido assassinado em um programa com um travesti.


   O juiz acreditou no alcagueta. Como o delegado e o promotor. Fundamentação um pouco mais elaborada do que a da polícia, arrumando  melhor aqueles indícios e circunstâncias, mas tudo, afinal, resumia-se ao informante das sombras. Saiu uma pena pesada.


   O indignado defensor foi ao presídio conversar com o réu antes das razões do recurso. Tinha algumas coisas a esclarecer. Absolutamente convencido da inocência do cliente, preparava uma peça arrasadora e irrespondível.


   O travesti não era mais travesti. Havia retomado a aparência masculina. Convertera-se. Era então um “bíblia”. A conversa foi breve. O réu interrompeu bruscamente o advogado:


   - Eu dei o tiro na cara do rapaz, doutor. Meus dias eram 24 por 48 horas, doutor. Ele não quis pagar. Peguei umas coisas dele e saí correndo.


   “24 por 48…tiro na cara”.  Nunca tivera a menor dúvida de que ele fora o primeiro miserável que a polícia achou para livrar-se do latrocínio. O espírito de Perry Mason largou o seu corpo e voou sobre as ruas de Santana.


   Anos depois ouviu uma canção de Cazuza que dizia “meus dias são de par em par”. Cazuza usava linguagem mais poética, “par em par”. Semelhante ao que o  réu lhe dissera,  mas em linguagem mais cartesiana: “24 por 48”.  Drogas e remédios. Ao final das 48 horas,  o que era o que, quem era quem?


   Era assim que a polícia trabalhava. Apostava. Muita gente inocente ia para cadeia, mas de vez em quando a roleta parava no lugar certo.


   O ânimo era outro, mas advogados têm prazos. Foi para o escritório e avançou para depois da hora do expediente fazendo um extenso e fundamentado recurso. Como epígrafe uma citação de Kant: “o que é incompatível com o princípio da publicidade é incompatível com o princípio da moralidade”. Tecnicamente não tinha muito a ver, e nem esperava que apreciassem a sutil tirada filosófica: quem podia dizer qual, de verdade,  o fundamento  daquela condenação? Toda a sofisticada máquina do Estado movimentada por um vil alcagueta?



                                    * * * * * *



   Trinta anos depois daquele dia em Santana o advogado jantava com um amigo.


   - Você defende gente que sabe culpada. Como você consegue?


  O advogado ergueu a taça de vinho devagar e levou à boca pensando na resposta à pergunta desagradável. “24 por 48, doutor… tiro na cara". Articulou mentalmente a resposta.


  “Consigo porque é meu dever e esse dever está apoiado em um princípio superior.


  “Se culpados são condenados sem provas, pessoas inocentes também começarão a ser condenadas sem provas. A sociedade ganha mais deixando solto o réu culpado contra quem não há provas suficientes do que mandando para a cadeia inocentes. Por isso há o princípio da presunção de inocência.


  "Sociedades democráticas não são construídas sem princípios e princípios não podem ser respeitados somente quando convém.


   “Então, meu caro, ou o Estado prova ou o Estado solta. Não pode condenar pela mera convicção subjetiva de delegados, promotores ou juízes, ou por uma aposta deles na alta probabilidade de o acusado ser mesmo culpado. Já os flagrei fazendo isso e sabia que o réu havia cometido um crime horroroso. Mas era só uma aposta do Estado. Aposta certa, mas aposta,  e irresponsável. Ouvi a confissão do réu e a esqueci quando atravessei o portão do presídio.”

   Isso tudo ele pensou. Depois balançou a cabeça num gesto de desânimo, como quem diz "deixa pra lá", e respondeu, pousando a taça na mesa:


   - Nunca tive um réu que soubesse ser culpado.


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- A história é verídica. Alguns detalhes foram modificados 



























quinta-feira, 9 de agosto de 2012

NOAM CHOMSKY: NA SOMBRA DE HIROSHIMA


 

Por Noam Chomsky, publicado por Esquerda.net

O 6 de agosto, aniversário de Hiroshima, deveria ser um dia de reflexão sombria, não só pelos terríveis acontecimentos dessa data em 1945, mas também pelo que revelaram: que os seres humanos, na sua busca dedicada de meios para aumentar a sua capacidade de destruição, finalmente tinham conseguido encontrar uma forma de aproximar-se do limite final.



Os atos em memória desse dia têm, este ano, um significado especial. Têm lugar pouco antes do 50º aniversário do momento mais perigoso na história humana, nas palavras de Arthur M. Schlesinger Jr, historiador e assessor de John F. Kennedy, ao referir-se à crise dos mísseis cubanos.

Graham Allison escreve na edição atual de “Foreign Affairs” que Kennedy ordenou ações que sabia que aumentariam o risco não só de uma guerra convencional, mas também de um confronto nuclear, com uma probabilidade que ele calculou em cerca de 50%, cálculo que Allison considera realista.

Kennedy declarou um alerta nuclear de alto nível que autorizava aviões da Otan, tripulados por pilotos turcos (ou de outro país), a descolar, voar para Moscou e deixar cair uma bomba.

Ninguém ficou mais surpreendido pela descoberta dos mísseis em Cuba que os homens encarregados de mísseis semelhantes que os Estados Unidos tinham colocado clandestinamente em Okinawa seis meses antes, seguramente apontados à China, em momentos de crescente tensão.

Kennedy levou o presidente soviético Nikita Krushov até mesmo à beira da guerra nuclear e ele assomou-se da beira e não teve estômago para isso, segundo o general David Burchinal, então alto oficial de planeamento do Pentágono. Ninguém pode contar sempre com tal prudência.

Krushov aceitou uma fórmula proposta por Kennedy, pondo fim à crise que estava à beira de se converter em guerra. O elemento mais audaz da fórmula, escreve Allison, era uma concessão secreta que prometia a retirada dos mísseis norte-americanos da Turquia no prazo de seis meses, depois da crise ter sido evitada. Tratava-se de mísseis obsoletos que estavam sendo substituídos por submarinos Polaris, muito mais letais.

Em resumo, mesmo correndo o elevado risco de uma guerra de inimaginável destruição, considerou-se necessário reforçar o princípio de que os Estados Unidos têm o direito unilateral de colocar mísseis nucleares em qualquer parte, alguns apontando à China ou às fronteiras da Rússia, que previamente não tinha colocado mísseis fora da URSS. Deram-se justificativas, certamente, mas não creio que aguentem uma análise.

Juntamente com isto estava o princípio de que Cuba não tinha o direito de possuir mísseis para a sua defesa contra o que parecia ser uma invasão iminente dos Estados Unidos. Os planos para os programas terroristas de Kennedy, Operação mangoose (mangusto), estabeleciam uma revolta aberta e o derrube do regime comunista em outubro de 1962, mês da crise dos mísseis, com o reconhecimento de que o êxito final requereria uma intervenção decisiva dos Estados Unidos.

As operações terroristas contra Cuba são habitualmente descartadas pelos comentadores como manobras insignificantes da CIA. As vítimas, como é de supor, veem as coisas de uma forma muito diferente. Pelo menos podemos ouvir as suas palavras em “Vozes do outro lado: Uma história oral do terrorismo contra Cuba”, de Keith Bolender.

Os acontecimentos de outubro de 1962 são amplamente elogiados como o melhor momento de Kennedy. Allison considera-os como um guia sobre como diminuir perigo aos conflitos, gerir as relações das grandes potências e tomar decisões acertadas acerca da política externa em geral. Em particular, aos atuais com o Irã e a China.

O desastre esteve perigosamente próximo em 1962 e não houve escassez de graves riscos desde então. Em 1973, nos últimos dias da guerra árabe-israelita, Henry Kissinger lançou um alerta nuclear de alto nível. Índia e Paquistão estiveram muito perto de um conflito atômico. Houve inumeráveis casos em que a intervenção humana abortou um ataque nuclear momentos antes do lançamento de informações falsas de sistemas automatizados. Há muito em que pensar sobre o 6 de agosto.

Allison junta-se a muitos outros ao considerar que os programas nucleares do Irã são a crise atual mais grave, um desafio ainda mais complexo para os decisores políticos dos Estados Unidos do que a crise dos mísseis cubanos, devido à ameaça de um bombardeamento israelita.

A guerra contra o Irã está já em andamento, incluindo o assassinato de cientistas e pressões econômicas que chegaram ao nível da guerra não declarada, segundo o critério de Gary Sick, especialista em Irã.

Há um grande orgulho sobre a sofisticada ciberguerra dirigida contra o Irã. O Pentágono considera a ciberguerra como ato de guerra, que autoriza o alvo a responder mediante o uso da força militar tradicional, informa o The Wall Street Journal. Com a exceção habitual: não quando os Estados Unidos ou um seu aliado é quem o leva a cabo.

A ameaça iraniana foi definida pelo general Giora Eiland, um dos maiores responsável pela planificação militar de Israel, “um dos pensadores mais engenhosos e prolíficos que [as forças militares israelitas] produziram”.

Das ameaças que define, a mais crível é que qualquer confronto nas nossas fronteiras terá lugar sob um guarda-chuva nuclear iraniano. Em consequência, Israel poderia ver-se obrigado a recorrer à força. Eiland está de acordo com o Pentágono e com os serviços de segurança dos Estados Unidos, que consideram a dissuasão como a maior ameaça que o Irã coloca.

A atual escalada da guerra contra o Irã aumenta a ameaça de uma guerra acidental em grande escala. Alguns perigos foram ilustrados no mês passado, quando um barco norte-americano, pertencente à enorme força militar estacionada no Golfo, disparou contra um pequeno navio de pesca, matando um membro da tripulação indiana e ferindo outros três. Não se necessitaria muito para iniciar outra guerra importante.

Uma forma sensata de evitar as temidas consequências é procurar a meta de estabelecer no Oriente Médio uma zona livre de armas de destruição massiva e de todos os mísseis necessários para o seu lançamento, e o objetivo de uma proibição global sobre armas químicas – que é o texto da resolução 689 de abril de 1991 do Conselho de Segurança, que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha invocaram no seu esforço para criar uma tênue cobertura para a sua invasão do Iraque, 12 anos depois.

Esta meta foi um objetivo árabe-iraniano desde 1974 e por estes dias tem um apoio global quase unânime, pelo menos formalmente. Uma conferência internacional para debater formas de levar a cabo um tal tratado pode ter lugar em dezembro.

É improvável o progresso, a menos que haja um apoio massivo no Ocidente. Ao não se compreender a importância desta oportunidade alargar-se-á uma vez mais a fúnebre sombra que obscureceu o mundo desde aquele terrível 6 de agosto.

Artigo de Noam Chomsky, publicado no jornal mexicano La Jornada. Tradução de Carlos Santos para Esquerda.net