É possível que nem todos os (im)prováveis leitores do blog conheçam a origem da piada do cara-pálida. Zorro se vê cercado por índios e diz a Tonto (que é índio), seu fiel companheiro: “estamos perdidos”. Tonto dá a célebre resposta: “nós quem, cara-pálida?”.
Lendo a coluna da Marina Silva na Folha (29 de julho) lembrei da anedota. Ela fala sobre a Noruega:
“O pavor de hoje foi antecipado em seu significado essencial: talvez horror ainda maior do que a natureza nos causa quando nos enfrenta possa advir do cavalo de Troia oculto em nós mesmos. O que tememos é algo terrível que subsiste na natureza humana, uma sabotagem contra a diversidade da cultura e da vida, que é a mais preciosa condição de sua continuidade sobre a Terra”.
A visão do mundo de Marina Silva, portanto, interpreta o horror na Noruega da seguinte forma: ela decorre da natureza humana pervertida. Ao dizer que há “algo terrível que subsiste na natureza humana”, ela nos faz semelhantes ao perpetrador norueguês e compartilhando sua natureza. Assim como a de Goebbles, Goering, Bin Laden, etc.
Marina Silva, que natureza humana, cara-pálida? Não pertenço – e nem a senhora – a esta “natureza” humana.
Sob este rótulo, a senhora acaba ocultando a verdadeira face do horror. Ele reside em causas políticas, sociais, culturais e econômicas perfeitamente identificáveis. Humanas. Que podem ser combatidas e derrotadas.
A senhora nos tira esta possibilidade ao dizer que se trata de “natureza humana”. O fascismo pode ser derrotado. Mas para isso é preciso entender a realidade social, saber por que ela se apresenta com esta face detestável, entender onde estão suas causas e, compreendendo isto, eliminá-las. Mas se são parte da “natureza” humana? Então não há muito o que fazer. Talvez erguer as mãos para o céu e agradecer por não termos sido ainda vítimas desta funesta natureza humana.
D. Marina Silva, natureza humana é uma coisa. Fascismo é outra coisa. Natureza humana é uma coisa. Crimes contra a Humanidade outra coisa. Gandhi e Martin Luther King são tipos de personalidades. Hitler é outro tipo. Todos fizeram escolhas, exerceram o livre arbítrio. Podiam fazer escolhas diferentes, e não estavam determinados por nada semelhante a uma natureza humana. Porque se estivessem a contradição lógica seria insuperável. Como conciliá-los em uma mesma natureza?
Fundamentalmente, isto significa que podemos agir para que escolhas de criminosos desse porte não tornem nossas vidas um inferno. Transformando a sociedade, suas estruturas e construindo a partir de nossas próprias forças, de nossa racionalidade e de nossa capacidade de luta.
Por que Marina Silva fala de uma natureza humana contaminada pelo mal, inexorável? Minha opinião é que ela está traduzindo nesta expressão sua visão teológica do mundo. A natureza humana, sendo contaminada, determina que a única possibilidade de salvação reside em alguma confissão religiosa que tem a “chave do reino”. Então, em vez de dizer “combatamos o fascismo”, embute, disfarçadamente, um apelo religioso.
Faço aqui um parênteses. Nada tenho contra a idéia de transcendência. Muito pelo contrário. Apenas não confundo transcendência com o poder que supostos procuradores de Deus (sem firma reconhecida) passam a deter em suas mãos quando adotam concepções teológicas que retiram do humano qualquer esperança de construção racional da sociedade e atribuem a si mesmos o caminho da salvação. Que poder que isso lhes dá...
Nos primórdios do Cristianismo, Pelágio dizia que a humanidade não estava contaminada pelo pecado original. Apenas Adão se perdera. Que Deus havia conferido a suas criaturas a possibilidade de raciocinar, exercer o livre arbítrio, e salvar-se por suas próprias obras. Que a salvação não decorria da inexplicável (para a mente humana) graça divina, mas das escolhas que o homem faria em sua experiência terrena. Evidentemente isto reduzia a pó o poder da nascente Igreja. Pelágio foi condenado, e sua doutrina é denominada desde então “heresia pelagiana”.
Isto não é uma discussão teológica. É política.
Porque estou apenas querendo dizer que Marina Silva, ex-candidata a presidente da República, tem uma visão de mundo teológica e que – ainda que ela não se dê conta – essa visão de mundo é fundamentalista. Um fundamentalismo "do bem". Mas fundamentalismo. Mesmo que "do bem", perigoso.
O fascismo não integra a natureza humana, D. Marina. Se há uma natureza humana, ela é racional o suficiente para que, consultada, nos diga que o fascismo é uma aberração, tem causas políticas e sociais identificáveis e que podemos vencê-lo. Mas se ele, como a senhora escreveu, é parte da natureza humana, nada há que possamos fazer, a não ser esperar o próximo cápítulo do horror.
Para não dizer que não falei de flores, termino dando graças a Deus que a senhora não foi eleita.