sábado, 30 de julho de 2011

Marina Silva, que natureza humana, cara-pálida?



   É possível que nem todos os (im)prováveis leitores do blog conheçam a origem da piada do cara-pálida. Zorro se vê cercado por índios e diz a Tonto (que é índio), seu fiel companheiro: “estamos perdidos”. Tonto dá a célebre resposta: “nós quem, cara-pálida?”.




   Lendo a coluna da Marina Silva na Folha (29 de julho) lembrei da anedota. Ela fala sobre a Noruega:




“O pavor de hoje foi antecipado em seu significado essencial: talvez horror ainda maior do que a natureza nos causa quando nos enfrenta possa advir do cavalo de Troia oculto em nós mesmos. O que tememos é algo terrível que subsiste na natureza humana, uma sabotagem contra a diversidade da cultura e da vida, que é a mais preciosa condição de sua continuidade sobre a Terra”.




    A visão do mundo de Marina Silva, portanto, interpreta o horror na Noruega da seguinte forma: ela decorre da natureza humana pervertida. Ao dizer que há “algo terrível que subsiste na natureza humana”, ela nos faz semelhantes ao perpetrador norueguês e compartilhando sua natureza. Assim como a de Goebbles, Goering, Bin Laden, etc.




   Marina Silva, que natureza humana, cara-pálida? Não pertenço – e nem a senhora – a esta “natureza” humana.




    Sob este rótulo, a senhora acaba ocultando a verdadeira face do horror. Ele reside em causas políticas, sociais, culturais e econômicas perfeitamente identificáveis. Humanas. Que podem ser combatidas e derrotadas.




   A senhora nos tira esta possibilidade ao dizer que se trata de “natureza humana”. O fascismo pode ser derrotado. Mas para isso é preciso entender a realidade social, saber por que ela se apresenta com esta face detestável, entender onde estão suas causas e, compreendendo isto, eliminá-las. Mas se são parte da “natureza” humana? Então não há muito o que fazer. Talvez erguer as mãos para o céu e agradecer por não termos sido ainda vítimas desta funesta natureza humana.




   D. Marina Silva, natureza humana é uma coisa. Fascismo é outra coisa. Natureza humana é uma coisa. Crimes contra a Humanidade outra coisa. Gandhi e Martin Luther King são tipos de personalidades. Hitler é outro tipo. Todos fizeram escolhas, exerceram o livre arbítrio. Podiam fazer escolhas diferentes, e não estavam determinados por nada semelhante a uma natureza humana. Porque se estivessem a contradição lógica seria insuperável. Como conciliá-los em uma mesma natureza?




   Fundamentalmente, isto significa que podemos agir para que escolhas de criminosos desse porte não tornem nossas vidas um inferno. Transformando a sociedade, suas estruturas e construindo a partir de nossas próprias forças, de nossa racionalidade e de nossa capacidade de luta.




   Por que Marina Silva fala de uma natureza humana contaminada pelo mal, inexorável? Minha opinião é que ela está traduzindo nesta expressão sua visão teológica do mundo. A natureza humana, sendo contaminada, determina que a única possibilidade de salvação reside em alguma confissão religiosa que tem a “chave do reino”. Então, em vez de dizer “combatamos o fascismo”, embute, disfarçadamente, um apelo religioso.




   Faço aqui um parênteses. Nada tenho contra a idéia de transcendência. Muito pelo contrário. Apenas não confundo transcendência com o poder que supostos procuradores de Deus (sem firma reconhecida) passam a deter em suas mãos quando adotam concepções teológicas que retiram do humano qualquer esperança de construção racional da sociedade e atribuem a si mesmos o caminho da salvação. Que poder que isso lhes dá...




   Nos primórdios do Cristianismo, Pelágio dizia que a humanidade não estava contaminada pelo pecado original. Apenas Adão se perdera. Que Deus havia conferido a suas criaturas a possibilidade de raciocinar, exercer o livre arbítrio, e salvar-se por suas próprias obras. Que a salvação não decorria da inexplicável (para a mente humana) graça divina, mas das escolhas que o homem faria em sua experiência terrena. Evidentemente isto reduzia a pó o poder da nascente Igreja. Pelágio foi condenado, e sua doutrina é denominada desde então “heresia pelagiana”.



   Isto não é uma discussão teológica. É política.




   Porque estou apenas querendo dizer que Marina Silva, ex-candidata a presidente da República, tem uma visão de mundo teológica e que – ainda que ela não se dê conta – essa visão de mundo é fundamentalista. Um fundamentalismo "do bem". Mas fundamentalismo. Mesmo que "do bem", perigoso.




   O fascismo não integra a natureza humana, D. Marina. Se há uma natureza humana, ela é racional o suficiente para que, consultada, nos diga que o fascismo é uma aberração, tem causas políticas e sociais identificáveis e que podemos vencê-lo. Mas se ele, como a senhora escreveu, é parte da natureza humana, nada há que possamos fazer, a não ser esperar o próximo cápítulo do horror.




   Para não dizer que não falei de flores, termino dando graças a Deus que a senhora não foi eleita.


























quinta-feira, 28 de julho de 2011

Herzog e Ustra: por que as ações são diferentes



   Luiz Paulo Rouanet me pede, no facebook,  para esclarecer por que no caso do Herzog a ação foi movida contra a União e no caso do Ustra contra a pessoa física. 





   É uma faculdade da parte, a depender da estratégia e dos fins visados pelo autor da ação e por contingências, provas que podem ou não ser produzidas, viabilidade de sucesso, etc. 





   Há uma regra de que a pessoa jurídica responde pelos atos de seus  agentes. Em geral, no caso de danos, prefere-se esse caminho porque a pessoa jurídica é sempre mais sólida economicamente e a garantia de receber a indenização é maior (sendo pessoa jurídica de direito púbico, não fica insolvente). Mas nada impede que seja movida diretamente contra a pessoa física.





   Deve-se notar ainda que a  ação contra a União no caso do Herzog foi meramente declaratória. Não se pedia condenação em dinheiro, apenas a declaração de que Herzog morrera sob  a responsabilidade e  guarda de agentes da União  e nas suas dependências, depois de ser torturado e sofrer maus tratos. Clarice Herzog não quis que ela tivesse caráter pecuniário. Esta circunstância também explica a diferença entre os processos, já que a Clarice Herzog estava apenas buscando efeitos morais  de uma declaração do Judiciário. Por isto fazia sentido propor contra a União.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

FASCISMO: A SERPENTE ROMPE A CASCA DO OVO E PÕE A CABEÇA PARA FORA







      A Europa não prestou
mesmo atenção a  uma de suas melhores
cabeças do século XX. Adorno dizia que Hitler determinou um novo imperativo
categórico: “pensar e agir para que Auschwitz nunca mais acontecesse”.


Um micro Auschwitz  acaba de
acontecer na Noruega. Aparentemente o autor agiu sozinho, mas  parece esperto  o suficiente para saber que seu gesto pode
impulsionar e animar seus iguais, articulados e organizados por toda a  Europa. Espero ser um mau profeta ao prever
que virá mais.


Pensar e agir para que Auschwitz nunca mais acontecesse parece ter sido
tudo o que a Europa não fez após a guerra. Xenofobia,  preconceito e  discriminação grassam lá por toda parte. 


Governos
adotam posturas rígidas contra imigrantes e emitem, com isto,  sinais alentadores para o pequeno Hitler meio
adormecido que repousa na consciência de muitos europeus.


Este pequeno Hitler também anda por aqui, e foi meio que sacudido na
última campanha eleitoral por irresponsáveis que não tiveram escrúpulos de
vender a alma para o diabo para ganhar a eleição, apelando grosseiramente para a
intolerância e o preconceito. 


Perderam a alma e não ganharam a eleição. 


Este pequeno arranhão na casca do ovo foi  suficiente para gerar atos de vandalismo
contra minorias e  ataques a gays e  nordestinos, nas ruas e nas redes sociais. Ou será apenas impressão que estes
incidentes aumentaram após as eleições do ano passado?


Enfim, o que está parecendo é que a serpente rompeu a casca e pôs a
cabeça para fora.


A frase de Adorno está em modo negativo. Não diz o que deve ser feito,
diz o que devemos evitar. Não é difícil formulá-la em  modo positivo. Fatos semelhantes
a Auschwitz, em qualquer dimensão, nunca mais aconteceriam se no planos
político, social, econômico, cultural e educacional a Europa se dedicasse, após
a hecatombe da II Guerra, a shoah e a morte de milhões de inocentes,  a construir na experiência o que o  seu  filósofo maior ensinou: a construção
do conceito universal de homem.   


“Ao entrar o médico na alcova, como
Kant não via já quase nada, eu lhe disse que era o médico que havia chegado.
Kant se levantou, estendeu a mão, e disse algo sobre ‘postos’, pronunciando
esta palavra repetidas vezes em tom obsessivo. O médico, crendo que era uma
pura fantasia ou delírio do enfermo, o aquietou dizendo que no posto estava
tudo bem. Kant então diz: ‘muitos postos, postos de doença’, e acrescentou em
seguida: ‘muita bondade’ e ‘gratidão’ (...) Eu me dei conta do que ele queria
dizer. Queria dizer que seu médico lhe dava uma prova de sua bondade ao visitar-lhe,
apesar dos muitos e muitos postos de trabalho que ocupava. Disse isto ao
médico. ‘Perfeitamente’, comentou Kant, que seguia de pé, com muita dificuldade.
O médico pediu que sentasse. O enfermo não se decidia. Eu conhecia demasiado
bem seu modo de pensar para que pudesse abrigar a menor dúvida acerca da
verdadeira causa de sua vacilação. Falei com o médico e lhe disse que Kant,
cuja finura e correção de modos não o abandonavam nem em seus últimos momentos,
somente se sentaria quando ele, o visitante,  sentasse também. O médico, que parecia pôr em
dúvida a razão de minhas palavras, convenceu-se dela, e quase lhe saíram
lágrimas quando ouviu o enfermo dizer, apelando a suas últimas forças, com a
energia que pode:  ‘o sentimento de
humanidade não me abandonou ainda’. (Relato de Wasianski, criado de Kant,
reproduzido por Ernst Cassirer em “Kant, Vida e Doutrina”, Fondo de Cultura
Económica. Traduzi do espanhol o trecho)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

PARA O PIG, JUSTIÇA SOCIAL É "BONDADE"

   Na seção Painel da Folha de Sao Paulo de hoje, 13 de julho, colhe-se a seguinte pérola:




 Tesoura 1 Mesmo com folga no teto de gastos com funcionalismo, o pacote de bondades para professores e policiais custará a Alckmin fatia expressiva da cota de investimentos para 2012, ano em que o tucano se empenhará para eleger aliados nas grandes cidades.





   O governador acaba de conceder reajustes aos professores. Não sei exatamente quanto foi, e nem importa isto. Tudo que se conceder aos professores da rede pública, que até as pedras das ruas sabem que ganham miseravelmente, é pouco. Tudo que se investir na educação pública deste Estado é socialmente importante. Mas para o PIG, investir na educação pública, que é para os "diferenciados", merece a ironia tola: "pacote de bondades". Os reajustes de salários da moça que redige a coluna certamente são justos. Ela jamais se referiria aos seus reajustes como uma "bondade" do dono do jornal. No entanto, quando se trata de investir para quem ensina os filhos dos excluídos, a noção de justiça desaparece. Justiça é só para a elite. Os excluídos não têm direitos. Quando algo os beneficia, trata-se de "bondades". E nem se diga que a expressão é retórica,  usual. É assim que o PIG quer moldar a sociedade. A linguagem nunca é neutra. Os sentidos são relacionados pelo leitor, evocam visões de mundo, provocam ilações e deformam a realidade. No estado em que se encontra hoje a mídia, 1984, de Orwell, é conto de fadas. Tudo bem, tudo bem. Como dizia a Pasionaria, no pasaran.  

domingo, 3 de julho de 2011

Rousseau, as Redes Sociais e a Vontade Geral - Parte II



   A noção de uma vontade geral, embora anterior a Rousseau, chega à modernidade pela Revolução Francesa e pela influência de Rousseau nos revolucionários franceses.




   O conceito expressa a idéia de um bem comum, indicado por juízos racionais que os cidadãos alcançam ao deixar de lado suas vontades particulares (seus próprios interesses). 




   Agem assim porque estão na esfera pública, e os seus interesses como cidadãos, racionalmente, os levam a deliberar em nome da sociedade e não de si mesmos. No momento da deliberação ele considera seus interesses específicos secundários em função de seu interesse como membro de uma sociedade racionalmente organizada.



    É neste sentido que Rousseau diz que a vontade não se representa, é ela mesma ou não é. A vontade geral está adormecida na consciência de todo ser racional, é um ato de reflexão isolado.  Nesta ordem de idéias, a representação política da vontade geral é um sem-sentido.




   A construção de Rousseau supõe uma organização política específica, cujo modelo é sua cidade natal, Genebra, uma cidade-Estado como as as da Antiguidade. Os cidadãos vão à Assembléia deliberar diretamente, e a suposição filosófica é que nestas condições o resultado apresenta a  vontade geral. É uma suposição, e Rousseau não é ingênuo. Sabe que frequentemente não será assim, mas não há outra forma racional de organizar a sociedade e suas decisões a não ser sobre a base destas suposições.




    Tudo isto resultou  apropriado por formas de organização política desenvolvidas pelo Estado moderno, o Estado-Nação, completamente distinto de uma cidade-Estado como Genebra.  Como pensadas para outra forma de organização, resultaram deturpadas, mas ideologicamente legitimadas pelo Iluminismo e pela autoridade de Rousseau.




   Condições históricas,  como a dominação de classe, a hegemonia burguesa,    o desenvolvimento do capitalismo, etc., explicam como isto tudo ocorreu.




   Como recuperar os conceitos iluministas de Rousseau, de vontade geral e de organização racional da sociedade  no mundo contemporâneo? Até alguns anos atrás, isto tudo parecia definitivamente sepultado.




   Mas eis que...surge a internet. Surgem as redes sociais. Todo cidadão pode ter voz, opinião, influir, pensar, ter presença na vida política e social.




    E estas redes sociais ajustam-se perfeitamente ao contexto imaginado por Rousseau, os cidadãos reunidos e deliberando DIRETAMENTE, sem representação, em uma assembléia.




   A falácia da representação está aí, o rei está nu. Parlamentos, os supostos representantes da vontade geral, deliberam em nome do mercado e de seus interesses específicos. A grande mídia repercute e obscurece essa realidade. As pessoas começam a perceber o logro, e a desmistificar o não-sentido desta idéia de representação.




   Mas agora têm meios para transformar esta realidade. A internet e as redes sociais são a assembléia imaginada por Rousseau. Depende de nós recuperar estes conceitos e devolvê-los ao seu sentido original e verdadeiro, filosofica e politicamente.





   Basta indignar-se. Como na primavera árabe, na Espanha, na Grécia.





   Indignem-se.


    


   Basta isto para poder  dizer: no pasaran.