quinta-feira, 8 de novembro de 2012

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA VOLUNTÁRIA (Alexandra Szafir)

 

Sabia de  Alexandra Sfazir por amigos comuns e li o seu ótimo livro de crônicas DesCasos. Agora nos tornamos amigos virtuais e temos trocado textos e crônicas. Posto este artigo dela,  humano, inteligente e sensível,  que mostra como funciona de verdade o Direito Penal.

 

Tortura_-_Pau_de_Arara_thumb

 

Living is easy with eyes closed, misunderstanding all you see”

The Beatles, Strawberry Fields Forever

Certamente, todos estão familiarizados com a história, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, dos três jovens que passaram dois anos presos sob a acusação de terem estuprado e matado a ex-namorada de um deles. Com a prisão do “serial killer” que ficou conhecido como o maníaco de Guarulhos, este teria confessado a autoria do crime, com uma riqueza de detalhes que somente o verdadeiro assassino poderia conhecer, como, por exemplo, a roupa usada pela vítima quando foi morta, o fato de o corpo ter o rosto coberto por um véu, etc.

Os rapazes foram soltos, o Promotor de Justiça responsável pelo caso já avisou que pedirá a absolvição deles, o Secretário de Segurança Pública já anunciou que eles serão indenizados sem necessidade de processar o Estado e todos comemoram o final feliz, o desfazimento de uma gravíssima injustiça, que, felizmente, aconteceu antes de uma possível condenação dos réus inocentes pelo Tribunal do Júri.

Nesse clima, os jornais publicam entrevistas nas quais os jovens contam os horrores da prisão, incluindo-se aí bárbaras sessões de tortura, falam de seu medo de represálias, de planos para o futuro, dizem que são seres humanos e não lixo (e podemos apenas imaginar o tratamento dado a eles nos últimos anos, para que julgassem ser necessário fazer o esclarecimento de fato tão óbvio).

Lemos ainda a descrição da emocionante saída deles da prisão e de como eles foram recebidos com fogos de artifício no bairro onde moram. É o tipo de notícia que a maioria das pessoas não se cansa de ler.

No entanto, embora renda belas matérias jornalísticas (e é mesmo inegável o interesse humano da notícia), a saída deles da prisão é a parte menos importante da história, até porque esta saída se deu por mera casualidade, ou sorte (o verdadeiro culpado foi preso por outro motivo, não porque alguém tenha dado algum crédito aos protestos de inocência dos três e tenha resolvido investigar melhor o crime pelo qual eles foram presos e processados).

O que realmente importa, repita-se, não é como e por que eles saíram da cadeia, mas como e por que nela entraram e permaneceram por tanto tempo.

Aparentemente, a questão já foi respondida: toda a injustiça aconteceu por causa de maus policiais, que os torturaram e obrigaram a assinar falsas confissões, as quais, por sua vez, induziram o Promotor de Justiça e o Juiz a erro. Assim, a denúncia foi oferecida e recebida; as prisões cautelares, requeridas e decretadas; a sentença de pronúncia, prolatada; e, finalmente, o recurso dos réus, improvido, mantendo-se, é claro, a prisão.

Mas parece – e é – muito cômodo e fácil atribuir a culpa aos policiais torturadores, professar repulsa à tortura, e eximir de qualquer responsabilidade os nobres membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, certamente acima de compactuar com tais condutas.

Todos parecem se esquecer de que o Juiz e o Promotor têm o dever de fiscalizar a legitimidade da atuação policial. Se alguém é torturado para confessar, espera-se que, finalmente, ao se ver no Fórum, diante de um Juiz de Direito e de um Promotor de Justiça, como num santuário, poderá falar livremente e ali encontrar guardiães dos direitos constitucionais garantidos no artigo 5º, que se indignarão, e descartarão a confissão forjada, além, é claro, de tomar todas as medidas possíveis para punir os criminosos(fardados ou não), deixando claro que não compactuam com seus “métodos de interrogatório”.

Se os três jovens alimentavam tais esperanças, deram com os burros n’água: se é verdade que, pela primeira vez, puderam falar livremente – e, segundo consta, de fato puderam, pois em entrevistas aos jornais, eles contam que a descrição minuciosa de todas as torturas por eles sofridas estão nos autos – por outro lado, não é menos exato que isso de nada lhes serviu, uma vez que aqueles que deveriam protegê-los de abusos, os tais “guardiães da legalidade”, não deram crédito algum às suas palavras: prova disso é que as prisões cautelares foram mantidas e a sentença de pronúncia, prolatada, como verdadeiras chancelas do “trabalho” policial.

Ainda assim, o sistema legal tem outra forma de corrigir possíveis equívocos: o duplo grau de jurisdição. A parte que se sentir injustiçada pode recorrer ao Tribunal de Justiça, onde, após um parecer da Procuradoria de Justiça, o caso é submetido a três Desembargadores, mais experientes que o juiz de primeira instância.

No caso em exame, também no Tribunal, ninguém viu nada de errado com a pronúncia e a prisão cautelar.

Diante de tais fatos, as perguntas que, mais do que não querer calar, berram para serem feitas, são perturbadoras:

•Onde falhou o sistema, para que as coisas chegassem tão longe, em se tratando de réus inocentes?

• Considerando: i) que o sistema é falho, e ii) como se realçou, os três só foram inocentados por mera casualidade, quantos inocentes que não tiveram a mesma sorte – de o verdadeiro culpado ser preso e confessar o crime – não estarão presos, provisoriamente ou condenados, pelo país afora?

• Se os rapazes fossem culpados, seria menos grave torturá-los para obter suas confissões?

Com relação à primeira questão, as declarações desastradas dadas aos jornais por algumas das autoridades envolvidas ajudam a descobrir a resposta. O Desembargador responsável pela Relatoria, por exemplo, insiste que manteria os rapazes presos e pronunciados, mesmo agora, diante dos fatos novos. Para defender sua posição, chega ao ponto de atribuir “notas”, numa escala de 0 a 10, para a necessidade da pronúncia e da prisão cautelar, de acordo com os elementos existentes nos autos.

Confrontado com o fato de outra pessoa ter confessado o crime com uma riqueza de detalhes que só o verdadeiro assassino poderia conhecer, o nobre Julgador não se abala. Seria de se esperar que ao menos ele admitisse a mera possibilidade de seus critérios para avaliar os elementos dos autos estarem errados, atribuindo a esses elementos força probante maior do que eles têm na verdade. A providência seria de fundamental importância para outros réus inocentes, os quais, ante a impossibilidade de descobrir o verdadeiro autor do crime do qual estão sendo acusados, ao menos saberiam que não têm a obrigação ou a necessidade de fazê-lo, pois poderiam ter a certeza de que só seriam presos/pronunciados/condenados se houvesse elementos idôneos para isso.

No entanto, ao invés de fazer esse exercício de auto-questionamento e humildade, saudável até mesmo para aqueles que, diferentemente dele, não são confrontados com a prova do desacerto de suas decisões, o Desembargador preferiu olhar para fora e questionar a idoneidade da prova do seu erro (coisa que nem o juiz e o promotor do caso fizeram).

Assim, ele lança dúvidas sobre a confissão do tal “maníaco”, afirmando não saber em que condições ela teria sido obtida e salientando que ele está confessando "por atacado" (como se a quantidade de crimes cometidos não fosse, por definição, característica essencial do serial killer).

Ainda assim, tais preocupações com as condições de obtenção da confissão são pertinentes e seriam até elogiáveis, não fosse pelo fato de elas não terem dado o menor sinal de vida no caso em que aquele que as manifestou tinha a obrigação de se preocupar: o dos três jovens que ele manteve presos. Como, até onde se sabe, neste caso Sua Excelência não fez qualquer reserva à confissão policial, embora os três tivessem dito expressamente nos autos que tinham sido torturados, essa súbita manifestação de dúvidas quanto à idoneidade da confissão do “maníaco” parece puro oportunismo. Em outras palavras, tal manifestação não parece ser fruto de uma preocupação genuína, mas da necessidade de ter argumentos para não admitir o próprio erro.

Embora o Promotor de Justiça e o Juiz de primeiro grau tenham tido a decência mínima de reconhecer que houve um erro grave, requerendo e determinando a soltura dos réus, é certo que se eles tivessem considerado a hipótese de que os rapazes pudessem estar falando a verdade, ao invés de confiarem cegamente no "trabalho" da polícia (para isso, convenha-se, não são necessários juízes ou promotores: poder-se-ia passar diretamente do relatório do inquérito policial ao julgamento pelo Tribunal do Júri), ou se ao menos não pedissem e decretassem prisões cautelares desnecessárias (ao que consta, ao menos um deles foi preso dentro de casa), a injustiça poderia ter sido sanada muito antes; mas, repita-se ainda uma vez, isso só ocorreu porque os réus tiveram a sorte de ser descoberto o verdadeiro autor do crime, ou correriam o sério risco de serem condenados no Tribunal do Júri, até porque quando o juiz e o Tribunal mantêm os réus presos, é natural que os jurados fiquem propensos a acreditar na periculosidade deles e, consequentemente, a condená-los (bem por isso, não é raro a acusação usar tal “argumento” ao pedir a condenação aos jurados).

A explicação para tal atuação profissional que penalizou três inocentes, ignorando suas denúncias de tortura, está expressa numa obtusa declaração dada aos jornais e é assustadora, sob vários aspectos. Segundo o Promotor de Justiça, a justificativa para não dar crédito à palavra dos réus seria  que "90% dos que confessam na polícia depois afirmam em Juízo que confessaram falsamente sob tortura".

Na verdade, obtusa não é a declaração em si, que deve até ser verdadeira, mas a conclusão que dela se pretende extrair, de que, portanto, as alegações de tortura não devem, via de regra, ser levadas a sério.

A conclusão correta e óbvia, ao menos para quem enxerga um palmo na frente do nariz e que, além disso, não tolera hipocrisia, é que a imensa maioria dessas confissões é mesmo obtida por tortura. Não por outro motivo, o Secretário dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo de Tarso Vanuchi, afirmou que “a tortura continua sendo prática rotineira, num patamar muito elevado” (“O Estado de São Paulo”, 4.9.2008, p. C5).

Ou alguém dotado de um pingo de bom senso realmente acredita que um sujeito, mesmo que tenha praticado um crime (de inocentes, então, nem se fala), confessaria espontaneamente na polícia só para depois negar perante o juiz? Seria a figura dos policiais tão mais inspiradora de bons sentimentos (compungidos, honestos) que a dos magistrados, perante quem os acusados não teriam qualquer pudor em mentir? Seria algum curso de psicologia do interrogatório ministrado nas academias de polícia a que os juízes não têm acesso? Teriam os policiais alguma nova tecnologia, uma espécie de "interrogator tabajara"? Algum soro da verdade, talvez?

Bem por isso, em sua obra primorosa, “O valor da confissão” (Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2ª ed., 1999) Guilherme de Souza Nucci dedica um trecho especialmente à confissão feita no inquérito policial. De início, afirma, “não se pode iniciar a avaliação sem conhecer a razão de ser do inquérito policial e os notórios aspectos ligados à violência policial no curso das investigações do crime” (p. 187, grifos nossos).

E, mais adiante, o autor deixa claro que, “como procedimento preparatório e preventivo, não tem qualquer contorno judicial, sendo inválido para produzir provas, via de regra, contra o réu,” pois “estão longe do inquérito policial os princípios fundamentais da ampla defesa e do contraditório” (ob. cit., p. 189/190, grifos nossos).

E prossegue:

“Ressalte-se o disparate que ocorre, atualmente, nos julgamentos do Tribunal do Júri, quando provas produzidas na polícia, sem a menor confirmação em juízo, são exibidas com a maior naturalidade aos jurados, como se efetivas provas fossem, auxiliando sobremaneira na condenação dos réus. Afinal, juízes leigos que são, como discernir entre provas da polícia e provas do juízo? Se nebulosos ainda são os conceitos do contraditório e da ampla defesa para muitos juízes togados, logicamente, dos jurados não se poderia exigir pleno discernimento a esse respeito. Ao decidirem por livre convencimento imotivado, podem optar pela condenação exclusivamente por conta de uma prova __ às vezes até falsa __ produzida na fase extrajudicial. Essa não é a garantia que queremos para uma imparcial distribuição de justiça, de forma que deve o Judiciário fortalecer sua posição contrária à realização e aceitação desse tipo de prova” (ob. cit., p. 192/3, grifos nossos).

Não obstante tais lições, no caso concreto, os membros do Poder Judiciário e Ministério Público parecem ter preferido seguir o caminho descrito pelos Beatles na canção cujo trecho serve de epígrafe a este texto. E os “FAB Four”tinham absoluta razão: viver com os olhos fechados, entendendo errado tudo o que se vê realmente é fácil. Sem dúvida, mais fácil do que encarar a realidade e tentar mudá-la.

Afinal, responda você, caro leitor, em que mundo prefere viver: num onde a polícia tortura e forja confissões de acordo com suas próprias convicções ou naquele em que criminosos, embora capazes de estuprar e matar cruelmente, acabam tendo a honestidade de confessar aos seriíssimos e respeitadores policiais (ainda que depois estraguem tudo, ao inventarem essas histórias de tortura nos interrogatórios judiciais)?

Se você escolheu a segunda opção, talvez entenda por quê magistrados e promotor tenham feito a mesma escolha, fechando os olhos e entendendo errado o que viram. Tinham diante de si três jovens dizendo que assinaram confissões falsas sob tortura e viram três criminosos perigosos e mentirosos. Seria quase compreensível, não fosse a natureza de seus cargos, que não lhes permite fechar os olhos e escolher o mundo em que vão viver e as gravíssimas conseqüências de tal postura, para esses e muitos outros réus.

A única alternativa a esta hipótese de “cegueira voluntária” é bem pior e, por isso, impossível de se acreditar: teriam admitido a possibilidade de os réus terem sido torturados, mas, acreditando-os culpados, simplesmente não teriam se importado, quer por achar que os fins (obter a confissão) justificam os meios, quer por não achar de todo injusto que supostos criminosos confessos recebessem “um castiguinho a mais”, deliberadamente ignorando que o ordenamento jurídico não distingue se a vítima de tortura é ou não culpada de algum crime.

Como não se pode admitir tal alternativa, só se pode concluir que, realmente, ninguém quis enxergar o óbvio, que os rapazes foram torturados, tornando suas confissões imprestáveis (como, de resto, deveriam ser todas as confissões e provas policiais não-confirmadas em Juízo).

É verdade que há notícias a respeito de uma testemunha que teria ouvido os três rapazes conversarem entre si, supostamente sobre o crime, dizendo algo como “era só para ter dado um corretivo nela”.

Porém, dada a falta de divulgação de maiores detalhes, não se pode deixar de indagar se tal testemunha foi ouvida em Juízo, com todas as garantias do contraditório, esclarecendo, compromissada, exatamente em que circunstâncias teria presenciado tal declaração e, nesse caso, se já foram tomadas providências para apurar a possível ocorrência do crime de falso testemunho. Ou se, por outra, trata-se de testemunha apenas referida pelos policiais, ou ouvida só na fase inquisitorial, possivelmente sem identificação ou qualificação apropriadas. Infelizmente, não seria o primeiro caso desse tipo de que se tem notícia; mas, se for esse o caso, melhor seria nem mencionar essa “prova”, para não tornar ainda mais embaraçosa uma situação já delicada.

Por fim foi divulgada uma última “prova” que teria pesado contra os réus: uma testemunha, próxima ao local do crime, teria ouvido um barulho semelhante ao estouro de um escapamento com defeito, defeito este apresentado pelo carro de um dos réus. Haveria MUITO a dizer a respeito das fragilidades de tal circunstância como elemento probatório, mas não se fará isso aqui.

Primeiro, porque tais fragilidades são óbvias demais; mas principalmente porque esta não é uma peça de defesa dos réus, mas uma tentativa de descobrir onde e por quê o sistema falhou.

Portanto, só cabe dizer que quando se ignora a presunção de inocência, qualquer migalha que nada provaria se o ônus da prova fosse mantido com a acusação acaba servindo para confirmar a ilegalmente presumida culpa do acusado.

Só nos resta lutar para chegar o dia em que, ao invés de Strawberry Fields, possamos nos remeter a It’s a Wonderful World.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

“ANISTIA AMNÉSIA” AINDA PROTEGE TORTURADORES


 


A matéria abaixo, de Pedro Pomar,  foi publicada no Informativo ADUSP no. 351. Relata o ato-debate realizado na USP sobre os 33 anos da Lei de Anistia,  em 27 de agosto último, do qual participei.


 

“A primeira coisa aqui é desmentir esta história de que a Lei 6.683/1979, a lei de anistia parcial, foi resultado de um pacto forjado com a sociedade brasileira. Nada mais falso. O que caracteriza o projeto de distensão lenta gradual e segura do general Geisel e a abertura de Figueiredo é a imposição de um ‘consenso básico’ para a institucionalização dos princípios da ‘Revolução’ de 1964”. Assim a historiadora e ativista de direitos humanos Heloísa Greco abriu sua exposição no debate sobre os 33 anos da Anistia, realizado pelo Fórum Aberto pela Democratização da USP no auditório da História, em 27/8.

Daniel Garcia



Heloísa, Fon, Felippe, Fábio Franco (coordenou) e Angela

A anistia restrita e parcial, que preservou, impunes, os torturadores e assassinos que atuaram a serviço da Ditadura Militar (mas manteve nos cárceres os presos políticos acusados de “crimes de sangue”), teria resultado de uma negociação entre os blocos que participavam do poder, obtendo como contrapartida “o reforço da criminalização daqueles que estão de fora, da interdição do dissenso, da repressão às oposições não consentidas ou não domesticáveis”.

Nos planos do “consenso básico” de Geisel não figurava a anistia, a princípio: acenava-se, “no máximo, com uma possível revisão de punições caso a caso”, a qual “só passa a ser abordada de forma mais ostensiva a partir de 1978, exatamente quando a luta pela anistia ganha amplitude e força a Ditadura e o aparato midiático a colocarem a discussão em pauta”.

Neste momento, duas concepções se confrontam: uma, a da “anistia como resgate da memória e direito à verdade e à justiça: reparação histórica, luta contra o esquecimento, direito à justiça: anistia anamnese (memória instituinte)”; outra, a da “anistia como esquecimento e pacificação: conciliação nacional, consenso (certeza da impunidade), a anistia parcial e recíproca, defendida pela Ditadura: anistia amnésia (memória instituída, oficial), cuja matriz é a Doutrina de Segurança Nacional”. Prevaleceu, afinal, a “estratégia do esquecimento”.

Ditabranda?

Márcio Sotello Felipe, procurador do Estado e membro do Comitê Paulista Memória, Verdade e Justiça, destacou os números da repressão na Ditadura Militar, para desfazer o mito da “ditabranda”: 50 mil pessoas detidas por razões políticas já nos primeiros meses após o golpe; 20 mil torturadas ao longo do período ditatorial; cerca de 500 ativistas de oposição mortos ou desaparecidos; genocídio de nações indígenas; centenas de camponeses executados. Ele enfatizou a definição de que crimes contra a Humanidade são aqueles praticados pelo Estado, como no caso das torturas e execuções levadas a cabo por agentes dos órgãos de repressão.

“Quarenta pessoas ligadas à USP foram mortas ou estão desaparecidas, daí a importância de uma Comissão da Verdade na USP”, afirmou. Citou casos de vítimas da Ditadura que tinham relação com a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, como Arno Preis (assassinado) e o professor Alberto Moniz da Rocha Barros, “que foi espancado na porta da faculdade e morreu alguns meses depois”, em decorrência das agressões.

Felippe criticou a decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2010, de manter em vigência a Lei da Anistia, e particularmente o relator Eros Grau, que sustentou a tese de que a lei resultou de acordo político. “Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude [a imunidade dos torturadores]. Era ceder e sobreviver, ou não ceder e continuar a viver em angústia, em alguns casos nem mesmo viver [referência aos presos políticos que faziam greve de fome]”, afirma uma passagem do voto do relator, que Felippe considera absurda.

“O acordo nunca existiu na verdade. Mas digamos que tivesse existido. Ora, é trivial, elementar, saber que um acordo tem um pressuposto básico: a liberdade da vontade. Se não há liberdade da vontade, não há acordo. O próprio ministro está descrevendo um acordo juridicamente inexistente, impossível de ser considerado válido”, protestou o procurador. “Crimes contra a Humanidade não se anistiam e não prescrevem, e não há reconciliação nacional para isso. Não temos esse direito”, arrematou.

Revogação da lei

“A impunidade dos torturadores de ontem alimenta a impunidade dos torturadores de hoje”, assinalou a historiadora Angela Mendes de Almeida, pesquisadora do Observatório de Violências Policiais da PUC-SP. “Gostaria que a Lei da Anistia fosse reinterpretada ou revogada”, declarou ela, ex-presa política, a propósito da impunidade dos torturadores. Seu companheiro, jornalista Luiz Merlino, foi assassinado no DOI-CODI do II Exército.

Angela apontou a continuidade, no Brasil de hoje, da instituição da tortura por aparatos de Estado, em especial a Polícia Militar, cuja existência “é uma verdadeira excrescência”. Informou que a PM paulista mata em média 45 pessoas por mês; que em todos os batalhões existem grupos de extermínio, segundo revelação de um policial; e que o histórico de brutalidades levou o Conselho de Direitos Humanos da ONU a propor a extinção da PM. “É muito raro que um PM seja condenado por execução sumária”, disse.

Ela comentou recente polêmica entre os professores Paulo Arantes e Edson Teles, de um lado, e o governador Tarso Genro, de outro lado, a respeito da caracterização do atual regime político brasileiro. Arantes e Teles acreditam que vivemos um “estado de exceção permanente”, ao passo que Genro defende a hipótese de que o Brasil é um “estado democrático de direito, com democracia limitada”. Após relatar uma série recente de graves violações de direitos humanos — como a prisão e desaparecimento de 12 operários que trabalhavam na construção da Usina de Jirau (Pará) — Angela concluiu: “Se isso é estado democrático de direito, então a gente terá que rever essa ideia”. Criticou declarações do governador Alckmin (PSDB) de incentivo à morte de “bandidos” e elogiou a iniciativa corajosa de Matheus Magnani, procurador da República que pediu a substituição do comando da PM, por descontrole da tropa.

Sombra do quepe

Aton Fon, ex-preso político, advogado de alunos expulsos pela gestão Rodas, manifestou que houve disputa já no momento de elaboração da Lei da Anistia. Em 1974, além da derrota dos grupos que fizeram a luta armada, houve o extermínio da direção do Partido Comunista Brasileiro (PCB, que não havia aderido à luta armada contra a Ditadura), como preparação do processo de transição conservadora. O fim do “milagre econômico” obrigou os militares a pensarem em como se retirar da cena, para determinar de algum modo, por “trás da coxia, o que os atores vão fazer”. Surgiram confrontos internos no regime (com generais como Sílvio Frota), que retardaram os ajustes no governo, dando mais tempo às lutas populares pela anistia.

O movimento dos familiares das vítimas da Ditadura e seus apoiadores fez da questão dos desaparecidos políticos uma bandeira política. “Avançou-se na discussão sobre a tortura, obrigando o governo a dar explicações, construindo-se um arco de alianças que ia da Igreja católica à extrema-esquerda”. Num jogo Coríntians x Santos, no início de 1979, o desfraldar de uma faixa com os dizeres “Anistia ampla e irrestrita” mostrou aos militares, prosseguiu Fon, o perigo da popularização dessa bandeira, levando-os a acelerar seu projeto de anistia. “Eles tinham a força, saiu do jeito que eles queriam. Não conseguimos alterar a correlação de forças”, explicou.

“Infelizmente para nós, são 33 anos de um regime político inteiramente tutelado. Após a morte de Tancredo, foi o general Leônidas Pires que determinou a posse de Sarney. Em vários momentos, a gente percebe a sombra do quepe atrás da gente”. Sobre a Comissão Nacional da Verdade, ele lembra que a luta agora está na rua e nas instituições, residindo aí a possibilidade de avançar: “Estamos numa batalha para construir a contra-hegemonia”.

Quanto à polêmica entre Paulo Arantes e Tarso Genro, acredita Fon que ambos estão equivocados, embora considere estar mais próximo deste último, mas “ainda não derrotamos o poder limitador”.

(fonte: Informativo Adusp 351)

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Pedro Estevam da Rocha Pomar
















































sábado, 25 de agosto de 2012

O Travesti, o Advogado e Cazuza



  “Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro”


(Cazuza, O Tempo Não Para)



             pj                                            


 


   O rapaz viera de Minas fazer a vida em São Paulo. Dera-se razoavelmente bem. Comprara um opala usado, mas em boas condições. Uma madrugada apareceu morto no carro. Um tiro na cabeça.


   Na mesma noite a polícia prendeu o suspeito. Um travesti teria assassinado o rapaz no programa. Latrocínio.


   O jovem advogado nomeado pelo juiz entrevistou o réu antes do interrogatório. Ele negou. Negou para o juiz. Já havia negado para a polícia. Negou tudo o tempo todo. Firme e serenamente.


   O advogado impressionou-se com a fragilidade do inquérito. Não havia prova alguma. Ocorreu que a polícia recebera informação de um alcagueta. Amarrou  circunstâncias e indícios fracos dando a tudo a aparência de racionalidade investigativa.  O informante nunca apareceu. Claro, era dedo-duro. O delegado mandou para o forum. Deu certo. Denúncia por latrocínio.


   Crime pesado com acusação precária transformavam um jovem advogado em Perry Mason. A máquina do Estado, porém, tinha sua lógica vil. Crime pesado que saía em jornal sem solução era duro de engolir. Alguém pagava.


    O defensor entendeu o jogo jogado. Era simples: acreditar no alcagueta. A polícia acreditou e gostou muito de acreditar. Resolvia tudo. O Ministério Público acreditou. Faltava o juiz acreditar. Uma aposta. Se desse certo, missão cumprida. Se não desse, o sol nasceria do mesmo jeito no dia seguinte.


    "Não vai ser bem assim", pensou o advogado. Saiu do forum indignado e foi tomar um café expresso ali na rua XI de agosto, ao lado do Palácio da Justiça. Na época o forum criminal era lá.  Sorveu o expresso curto, forte e sem açucar entre murmúrios. “Filhos da puta esses caras pensam que nunca teve a porra do Iluminismo pensam que isso é processo inquisitório pensam que vivemos na porra da Idade Média pegar um travesti de programa marginal entre os marginais tão fácil meter o miserável na cadeia 30 anos quem condena é o alcagueta da polícia não precisa mais nada e todos os ilustres bacharéis delegados promotores juízes fazendo de conta que a coisa é séria que aprenderam tudo de Beccaria na Faculdade que o processo penal é civilizado e no final das contas estão apenas carimbando a palavra de um torpe alcagueta?”


   O processo correu como o advogado previa. Nada que prestasse. Depoimento dos policiais que prenderam o réu e de uma tia da vítima que nem morava aqui e apenas cuidou do funeral. A audiência constrangeu todos. Deu pena da pobre mulher ouvindo aquela história de como seu sobrinho havia sido assassinado em um programa com um travesti.


   O juiz acreditou no alcagueta. Como o delegado e o promotor. Fundamentação um pouco mais elaborada do que a da polícia, arrumando  melhor aqueles indícios e circunstâncias, mas tudo, afinal, resumia-se ao informante das sombras. Saiu uma pena pesada.


   O indignado defensor foi ao presídio conversar com o réu antes das razões do recurso. Tinha algumas coisas a esclarecer. Absolutamente convencido da inocência do cliente, preparava uma peça arrasadora e irrespondível.


   O travesti não era mais travesti. Havia retomado a aparência masculina. Convertera-se. Era então um “bíblia”. A conversa foi breve. O réu interrompeu bruscamente o advogado:


   - Eu dei o tiro na cara do rapaz, doutor. Meus dias eram 24 por 48 horas, doutor. Ele não quis pagar. Peguei umas coisas dele e saí correndo.


   “24 por 48…tiro na cara”.  Nunca tivera a menor dúvida de que ele fora o primeiro miserável que a polícia achou para livrar-se do latrocínio. O espírito de Perry Mason largou o seu corpo e voou sobre as ruas de Santana.


   Anos depois ouviu uma canção de Cazuza que dizia “meus dias são de par em par”. Cazuza usava linguagem mais poética, “par em par”. Semelhante ao que o  réu lhe dissera,  mas em linguagem mais cartesiana: “24 por 48”.  Drogas e remédios. Ao final das 48 horas,  o que era o que, quem era quem?


   Era assim que a polícia trabalhava. Apostava. Muita gente inocente ia para cadeia, mas de vez em quando a roleta parava no lugar certo.


   O ânimo era outro, mas advogados têm prazos. Foi para o escritório e avançou para depois da hora do expediente fazendo um extenso e fundamentado recurso. Como epígrafe uma citação de Kant: “o que é incompatível com o princípio da publicidade é incompatível com o princípio da moralidade”. Tecnicamente não tinha muito a ver, e nem esperava que apreciassem a sutil tirada filosófica: quem podia dizer qual, de verdade,  o fundamento  daquela condenação? Toda a sofisticada máquina do Estado movimentada por um vil alcagueta?



                                    * * * * * *



   Trinta anos depois daquele dia em Santana o advogado jantava com um amigo.


   - Você defende gente que sabe culpada. Como você consegue?


  O advogado ergueu a taça de vinho devagar e levou à boca pensando na resposta à pergunta desagradável. “24 por 48, doutor… tiro na cara". Articulou mentalmente a resposta.


  “Consigo porque é meu dever e esse dever está apoiado em um princípio superior.


  “Se culpados são condenados sem provas, pessoas inocentes também começarão a ser condenadas sem provas. A sociedade ganha mais deixando solto o réu culpado contra quem não há provas suficientes do que mandando para a cadeia inocentes. Por isso há o princípio da presunção de inocência.


  "Sociedades democráticas não são construídas sem princípios e princípios não podem ser respeitados somente quando convém.


   “Então, meu caro, ou o Estado prova ou o Estado solta. Não pode condenar pela mera convicção subjetiva de delegados, promotores ou juízes, ou por uma aposta deles na alta probabilidade de o acusado ser mesmo culpado. Já os flagrei fazendo isso e sabia que o réu havia cometido um crime horroroso. Mas era só uma aposta do Estado. Aposta certa, mas aposta,  e irresponsável. Ouvi a confissão do réu e a esqueci quando atravessei o portão do presídio.”

   Isso tudo ele pensou. Depois balançou a cabeça num gesto de desânimo, como quem diz "deixa pra lá", e respondeu, pousando a taça na mesa:


   - Nunca tive um réu que soubesse ser culpado.


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- A história é verídica. Alguns detalhes foram modificados 



























quinta-feira, 9 de agosto de 2012

NOAM CHOMSKY: NA SOMBRA DE HIROSHIMA


 

Por Noam Chomsky, publicado por Esquerda.net

O 6 de agosto, aniversário de Hiroshima, deveria ser um dia de reflexão sombria, não só pelos terríveis acontecimentos dessa data em 1945, mas também pelo que revelaram: que os seres humanos, na sua busca dedicada de meios para aumentar a sua capacidade de destruição, finalmente tinham conseguido encontrar uma forma de aproximar-se do limite final.



Os atos em memória desse dia têm, este ano, um significado especial. Têm lugar pouco antes do 50º aniversário do momento mais perigoso na história humana, nas palavras de Arthur M. Schlesinger Jr, historiador e assessor de John F. Kennedy, ao referir-se à crise dos mísseis cubanos.

Graham Allison escreve na edição atual de “Foreign Affairs” que Kennedy ordenou ações que sabia que aumentariam o risco não só de uma guerra convencional, mas também de um confronto nuclear, com uma probabilidade que ele calculou em cerca de 50%, cálculo que Allison considera realista.

Kennedy declarou um alerta nuclear de alto nível que autorizava aviões da Otan, tripulados por pilotos turcos (ou de outro país), a descolar, voar para Moscou e deixar cair uma bomba.

Ninguém ficou mais surpreendido pela descoberta dos mísseis em Cuba que os homens encarregados de mísseis semelhantes que os Estados Unidos tinham colocado clandestinamente em Okinawa seis meses antes, seguramente apontados à China, em momentos de crescente tensão.

Kennedy levou o presidente soviético Nikita Krushov até mesmo à beira da guerra nuclear e ele assomou-se da beira e não teve estômago para isso, segundo o general David Burchinal, então alto oficial de planeamento do Pentágono. Ninguém pode contar sempre com tal prudência.

Krushov aceitou uma fórmula proposta por Kennedy, pondo fim à crise que estava à beira de se converter em guerra. O elemento mais audaz da fórmula, escreve Allison, era uma concessão secreta que prometia a retirada dos mísseis norte-americanos da Turquia no prazo de seis meses, depois da crise ter sido evitada. Tratava-se de mísseis obsoletos que estavam sendo substituídos por submarinos Polaris, muito mais letais.

Em resumo, mesmo correndo o elevado risco de uma guerra de inimaginável destruição, considerou-se necessário reforçar o princípio de que os Estados Unidos têm o direito unilateral de colocar mísseis nucleares em qualquer parte, alguns apontando à China ou às fronteiras da Rússia, que previamente não tinha colocado mísseis fora da URSS. Deram-se justificativas, certamente, mas não creio que aguentem uma análise.

Juntamente com isto estava o princípio de que Cuba não tinha o direito de possuir mísseis para a sua defesa contra o que parecia ser uma invasão iminente dos Estados Unidos. Os planos para os programas terroristas de Kennedy, Operação mangoose (mangusto), estabeleciam uma revolta aberta e o derrube do regime comunista em outubro de 1962, mês da crise dos mísseis, com o reconhecimento de que o êxito final requereria uma intervenção decisiva dos Estados Unidos.

As operações terroristas contra Cuba são habitualmente descartadas pelos comentadores como manobras insignificantes da CIA. As vítimas, como é de supor, veem as coisas de uma forma muito diferente. Pelo menos podemos ouvir as suas palavras em “Vozes do outro lado: Uma história oral do terrorismo contra Cuba”, de Keith Bolender.

Os acontecimentos de outubro de 1962 são amplamente elogiados como o melhor momento de Kennedy. Allison considera-os como um guia sobre como diminuir perigo aos conflitos, gerir as relações das grandes potências e tomar decisões acertadas acerca da política externa em geral. Em particular, aos atuais com o Irã e a China.

O desastre esteve perigosamente próximo em 1962 e não houve escassez de graves riscos desde então. Em 1973, nos últimos dias da guerra árabe-israelita, Henry Kissinger lançou um alerta nuclear de alto nível. Índia e Paquistão estiveram muito perto de um conflito atômico. Houve inumeráveis casos em que a intervenção humana abortou um ataque nuclear momentos antes do lançamento de informações falsas de sistemas automatizados. Há muito em que pensar sobre o 6 de agosto.

Allison junta-se a muitos outros ao considerar que os programas nucleares do Irã são a crise atual mais grave, um desafio ainda mais complexo para os decisores políticos dos Estados Unidos do que a crise dos mísseis cubanos, devido à ameaça de um bombardeamento israelita.

A guerra contra o Irã está já em andamento, incluindo o assassinato de cientistas e pressões econômicas que chegaram ao nível da guerra não declarada, segundo o critério de Gary Sick, especialista em Irã.

Há um grande orgulho sobre a sofisticada ciberguerra dirigida contra o Irã. O Pentágono considera a ciberguerra como ato de guerra, que autoriza o alvo a responder mediante o uso da força militar tradicional, informa o The Wall Street Journal. Com a exceção habitual: não quando os Estados Unidos ou um seu aliado é quem o leva a cabo.

A ameaça iraniana foi definida pelo general Giora Eiland, um dos maiores responsável pela planificação militar de Israel, “um dos pensadores mais engenhosos e prolíficos que [as forças militares israelitas] produziram”.

Das ameaças que define, a mais crível é que qualquer confronto nas nossas fronteiras terá lugar sob um guarda-chuva nuclear iraniano. Em consequência, Israel poderia ver-se obrigado a recorrer à força. Eiland está de acordo com o Pentágono e com os serviços de segurança dos Estados Unidos, que consideram a dissuasão como a maior ameaça que o Irã coloca.

A atual escalada da guerra contra o Irã aumenta a ameaça de uma guerra acidental em grande escala. Alguns perigos foram ilustrados no mês passado, quando um barco norte-americano, pertencente à enorme força militar estacionada no Golfo, disparou contra um pequeno navio de pesca, matando um membro da tripulação indiana e ferindo outros três. Não se necessitaria muito para iniciar outra guerra importante.

Uma forma sensata de evitar as temidas consequências é procurar a meta de estabelecer no Oriente Médio uma zona livre de armas de destruição massiva e de todos os mísseis necessários para o seu lançamento, e o objetivo de uma proibição global sobre armas químicas – que é o texto da resolução 689 de abril de 1991 do Conselho de Segurança, que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha invocaram no seu esforço para criar uma tênue cobertura para a sua invasão do Iraque, 12 anos depois.

Esta meta foi um objetivo árabe-iraniano desde 1974 e por estes dias tem um apoio global quase unânime, pelo menos formalmente. Uma conferência internacional para debater formas de levar a cabo um tal tratado pode ter lugar em dezembro.

É improvável o progresso, a menos que haja um apoio massivo no Ocidente. Ao não se compreender a importância desta oportunidade alargar-se-á uma vez mais a fúnebre sombra que obscureceu o mundo desde aquele terrível 6 de agosto.

Artigo de Noam Chomsky, publicado no jornal mexicano La Jornada. Tradução de Carlos Santos para Esquerda.net
















































domingo, 29 de julho de 2012

A Mistificação da Grande Mídia

 

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Na edição de 1o. de agosto a Carta Capital publicou uma matéria bombástica.

Tratou do chamado “mensalão mineiro”. Consta que Gilmar Mendes (entre outros próceres da República) teria recebido alguns milhares de reais em 1998 em um esquema mais uma vez organizado por Marcos Valério

Há indícios razoáveis para uma investigação.

Gilmar Mendes vai julgar o “mensalão”, que envolve o mesmíssimo Marcos Valério. Neste momento a situação ultrapassa perigosamente os limites do surrealismo, ou, talvez, do realismo fantástico que a literatura latino-americana criou para falar adequadamente deste continente insano do hemisfério sul.

O que causa, no entanto, a mais profunda repulsa (ou asco. Ou nojo) é o comportamento da assim chamada “grande imprensa”, que cada vez mais faz jus à alcunha PIG. A Folha de São Paulo ignora a matéria da Carta Capital. Sua manchete de hoje, sábado, 28 de julho, porém, explora de forma sensacionalista uma peça  do procurador-geral de República encartada no processo do “mensalão”:  “Mensalão foi o mais atrevido ‘esquema’, afirma Procurador”. Mas não informa que um dos ministros que irá julgar o caso pode ter recebido dinheiro ilicitamente do réu que vai julgar, Marcos Valério, o que circulava na internet desde a noite de quinta-feira

O mundo de Alice no País das Maravilhas é uma pálida cópia do Brasil hoje.

Reparem que quando o PIG se refere aos blogs progressistas, hoje praticamente a única fonte de informação isenta e honesta de que dispõe a sociedade, invariavelmente usa a expressão “militantes”, ou “militantes petistas” das redes sociais. Nunca são veículos legítimos de expressão, nunca são parte da imprensa. São desprezíveis “militantes”. Claro que as famílias Genovese, Bonanno, Gambino, Lucchese e Colombo, etc. (ops, Civita, Marinho, Frias, etc.) não têm qualquer interesse político-partidário. Só os outros é que são “militantes”. Eles não são militantes de coisa alguma, embora até as pedras das ruas saibam quais partidos e candidatos eles apoiam e saibam que usam, sem pudor,  seus veículos  para tentar elegê-los.

O partido notoriamente beneficiado pela grande imprensa acaba de entrar com uma representação contra os blogs de Nassif e Paulo Henrique Amorim. A tese é que tais blogs recebem patrocínios de verbas públicas para apoiar o governo. Eu, como cidadão, quero então saber qual o volume do dinheiro que a grande imprensa recebe dos orçamentos públicos para desinformar a sociedade, defender seus interesses empresariais e apoiar partidos e candidatos.

Chamar esses senhores da grande imprensa de militantes é uma demasia. São militontos. Imaginam que nada disso terá consequências, que não está ficando cada vez mais nítido para a parte lúcida da sociedade o papel ignóbil que eles desempenham e que, afinal de contas, vai ficar por isso mesmo.

Sempre chega o dia do acerto de contas. Quem deve para o diabo sempre paga. Esse pacto nunca foi um bom negócio.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

TORTURADOR USTRA CONDENADO


 


A juíza Cláudia de Lima Menge, da 20a. Vara Cível da Capital, condenou o Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra por danos morais em favor de Ângela Maria Mendes de Almeida e Regina Maria Merlino Dias de Almeida, respectivamente companheira e irmã de Luiz Eduardo Merlino, morto sob tortura no DOI-CODI. A sentença cita texto do autor deste blog, publicado no Viomundo (aqui).                                                      

 

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Luiz Eduardo Merlino


 


 


VISTOS. ANGELA MARIA MENDES DE ALMEIDA e REGINA MARIA MERLINO DIAS DE ALMEIDA, com qualificação na inicial, propuseram AÇÃO CONDENATÓRIA contra CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, também qualificado, sob fundamento de que foram, respectivamente, companheira e irmã de LUIZ EDUARDO DA ROCHA MERLINO, jornalista falecido em 19/7/1971, quando estava preso no DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, órgão subordinado ao exército) em São Paulo, em decorrência de espancamentos e atos outros de tortura comandados e praticados diretamente pelo requerido. Fazem relato da participação da primeira autora e de Luiz Eduardo no movimento estudantil no final da década de 60 e das atividades desenvolvidas como integrantes do Partido Operário Comunista, clandestinos desde 1968, depois residentes por um tempo na França.


Em 15/7/1971, em visita a sua família em Santos, Luiz Eduardo foi levado a força, sob a mira de pesado armamento, por agentes do DOI- CODI. Nos quatro dias subsequentes, militares mantiveram a família, inclusive a coautora Regina, sob constante vigilância, mas sem notícias sobre Luiz Eduardo, até que noticiado seu falecimento, por suicídio. Foi possível, porém, constatar que ele fora vítima de tortura, tendo em conta as condições em que se apresentava o corpo.


Diversa, porém, foi a versão apresentada pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social): quando era transportado para o Rio Grande do Sul, para lá reconhecer colegas militantes, durante uma parada na proximidades de Jacupiranga, Luiz Eduardo teria se jogado à frente de um carro que trafegava pela rodovia e fora atropelado. Este o conteúdo lançado no atestado de óbito pelos técnicos no IML. Tempos depois, outras pessoas que estiveram no DOI-CODI na mesma época trouxeram relato de que Luiz Eduardo fora espancado durante 24 horas seguidas no “pau-de-arara” e, como consequência, passou a apresentar dores nas pernas, que, depois, se constatou ser sintoma de complicações circulatórias severas, que redundaram na morte dele, por falta de atendimento médico adequado e excesso nos atos praticados pelo réu.


A coautora Maria Helena estava na França quando recebeu a notícia da morte de seu companheiro. Mesmo depois do fatídico evento, a família foi mantida sob constante vigilância por agentes do exército. Os espancamentos de Luiz Eduardo se deram sob supervisão, comando e, por vezes, por ato direto do requerido, que, então, era comandante do DOI-CODI e da operação OBAN (Operação Bandeirante, como foi denominado o centro de informações e investigações montado pelo exército em 1969, voltado a coordenar e integrar as ações dos órgãos de combate às o rganizações armadas de esquerda).


Sofreram danos morais como decorrência de referidos atos de tortura praticados pelo réu e que resultaram na morte daquele que era, respectivamente, companheiro e irmão. Tecem considerações acerca da imprescritibilidade das pretensões relacionadas a afronta aos direitos da personalidade e aos direitos humanos. Pedem a procedência da ação para o fim de ser o réu condenado ao pagamento de indenização por danos morais. Veio a inicial instruída com os documentos de fls. 29/132, entre eles cópias de depoimentos testemunhais, decisões judiciais e notícias jornalísticas. Em contestação (fls. 141/159), invoca o requerido preliminares de falta de pressuposto processual, incompetência absoluta, ilegitimidade passiva, falta de interesse de agir e impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, argumenta ter sido a pretensão atingida pela prescrição e nega participação nos atos descritos, que não encontram substrato no conteúdo do atestado de óbito do jornalista. Sustenta serem inverídicos os relatos feitos por presos políticos. Pugna pela improcedência do pedido e junta documentos. Seguiu-se manifestação das autoras (fls. 658/665) e, por decisão de fls. 670/671, afastadas as preliminares, foi deferida a produção de prova oral. Contra referida decisão tirou o réu agravo de instrumento (fls. 686/699), pendente de julgamento. Consistiu a instrução da inquirição de sete testemunhas (fls. 756 e 789/848, 961). Encerrada referida fase processual, apresentaram as partes alegações finais, sob a forma de memoriais. É o relatório.


Fundamento e DECIDO.


I. É objetivo das autoras condenação ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes dos atos por ele praticados com excesso e abuso de poder, na qualidade de membro do Exército, comandante do DOI-CODI e da operação OBAN, consistentes em comandar tortura e, por vezes, dela participar diretamente, da qual resultou a morte de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, que foi, respectivamente, companheiro e irmão delas. Resiste o réu a dita pretensão, forte quanto a estar prescrita a pretensão, de resto não praticados os atos que lhe são imputados.


II. Superado, por decisão saneadora, o enfrentamento das questões processuais, oportuno mencionar que o litígio em análise não sofre ingerência da anistia contemplada na Lei nº 6.683/79, de âmbito exclusivamente penal, como de resto reconheceu o Supremo Tribunal Federal ao apreciar a reclamação arguida pelo requerido por suposta violação à decisão da Corte no ADPF 153, em razão de decisão proferida nestes autos: “não há identidade entre o caso apresentado e o decidido por esta Casa de Justiça do julgamento da APDF 153” no sentido da “integração da anistia da Lei de 1979 na nova ordem constitucional. Lei de anistia, contudo, que não trata da responsabilidade civil pelos atos praticados no chamado ‘período de exceção’.


E é certo que a anistia como causa de extinção da punibilidade e focada categoria de direito penal não implica a imediata exclusão do ilícito civil e sua consequente repercussão indenizatória.” (fls. 930/931). Não é de olvidar, porém, que até mesmo a anistia assim referendada pela Corte Suprema não está infensa a discussões, tendo em conta subsequente julgamento proferido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que o Brasil foi condenado pelo desaparecimento de militantes na guerrilha do Araguaia, enquadrados os fatos como crimes contra a humanidade e declarados imprescritíveis. No ponto, ostenta especial relevância considerar que a atual configuração inter-relacionada dos diversos países, integrantes de organizações internacionais voltadas para fins políticos, econômicos e sociais, e a intensa movimentação de pessoas entre as várias nações, faz com que a regulamentação acerca do respeito a os direitos humanos e das consequências dos atos praticados afronta deles transcenda largamente a posição soberana dos Estados para se basear, isto sim, em cada pessoa, como titular de direitos essenciais, independentemente da nacionalidade e do local em que esteja. Daí a relevância dos tratados internacionais acerca de direitos humanos, vez que como direitos essenciais não podem sofrer injunções ou considerações locais, com base no poder constituinte, quer originário, quer derivado. Como ensina Marcio Sotelo Felippe (www.viomundo.com.br), “além do fenômeno da convencionalidade sustentado pelo princípio da ‘pacta sunt servanda’, há normas de Direito Internacional que têm a característica da cogência. Após Nuremberg se reconhece que normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos são cogentes. Derivadas dos costumes e de outras fontes formais do Direito, independem, para sua eficácia, da vontade dos sujeitos envolvidos numa relação jurídica. A racionalidade disto é clara. Trata-se de um imperativo moral transformado em axioma jurídico: como poderia a proteção da vida e dos direitos básicos da pessoa humana depender de um ato de vontade, em qualquer plano do fenômeno jurídico?” (…) “A ideia de que somente normas positivadas por meio de determinados procedimentos formais constituem o Direito independentemente de juízo de valor deve ser considerada hoje uma etapa primitiva do desenvolvimento do fenômeno jurídico. Isto porque a dignidade da pessoa humana deixou de ser postulado filosófico para tornar-se axioma jurídico. Está na raiz dos instrumentos internacionais de defesa dos Direitos Humanos que se seguiram à barbárie nazista: a Declaração Universal de 1948, o Pacto de Direitos Civis e Políticos, a Declaração de Direitos Econômicos e Sociais, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade, de 1968, Convenção contra a Tortura, etc.” Desde 1992, o Brasil ratificou a Convenção Internacional de Direitos Humanos e, em 1998, reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o trato do tema. Em recente julgamento, referida Corte reconheceu a invalidade da Lei da Anistia porque “afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o art. 1.1 da Convenção.” Estes os termos em que há muito, sob a ótica dos direitos humanos, está proclamada a imprescritibilidade dos crimes contra os direitos de personalidade e de suas consequências, vez que devem ser tratados sem conside ração a fronteiras e soberania nacionais. É farta a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no reconhecimento da imprescritibilidade da ação de reparação de danos morais decorrentes de ofensas a direitos humanos, inclusive aquelas praticadas durante o regime militar. Eis os exemplos: “Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Processual civil. Administrativo. Ação de reparação de danos morais. Prisão ilegal e tortura durante o período militar. Prescrição quinquenal prevista no art. 1º do Decreto 20.910/32. Não ocorrência. Imprescritibilidade de pretensão indenizatória decorrente de violação de direitos humanos fundamentais durante o período da ditadura militar. Recurso incapaz de infirmar os fundamentos da decisão agravada.


Agravo desprovido.


1. São imprescritíveis as ações de reparação de dano ajuizadas em decorrência de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar, afastando, por conseguinte, a prescrição quinquenal prevista no artigo 1º do Decreto 20.910/32. Isso porque as referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida, incontáveis abusos e violações de direitos fundamentais, mormente do direito à dignidade da pessoa humana.


2. Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade. (REsp. 816.209/RJ, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, DJ, 3/9/2007).


3. No que diz respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição quinquenal prevista no art. 1º do Decreto-lei 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes de violação de direitos da personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionais não podiam buscar a contento as suas pretensões. (REsp. 1.002.009/PE, 2ª Turma, rel. Min. Humberto Martins, DJ 21/2/2008).


4. Agravo regimental desprovido.” (STJ, AgRg no Ag 970753/MG, 1ª Turma, rel. Min. Denise Arruda, DEJ 12/11/2008). “Agravo regimental. Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Danos morais. Tortura. Regime militar. Imprescritibilidade. 1. A Segunda Turma desta Corte Superior, em recente julgamento, ratificou seu posicionamento no sentido da imprescritibilidade dos danos morais advindos de tortura no regime militar, motivo pelo qual a jurisprudência neste órgão fracionário considera-se pacífica. Não-ocorrência de violação ao art. 557 do CPC. Via inadequada para fazer valer suposta divergência entre as Turmas que compõem a Primeira Seção. (…)


5. Agravo regimental não-provido.” (STJ, AgRg no REsp 970697/MG, 2ª Turma, rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE 5/11/2008). Cai como luva ao caso em análise o trecho do acórdão de que foi relatora a Ministra Eliana Calmon (REsp. 602.237): “Sob a égide da Constituição de 88, inaugurou-se no Brasil uma nova visão do fenômeno jurídica dando-se primazia aos princípios constitucionais, de forma a estar o magistrado autorizado a afastar a lei ordinária, se esta colidir com algum princípio da Lei Maior. Como a Carta da República tem como um dos seus princípios fundamentais a preservação da dignidade da pessoa humana, tem-se sustentado a imprescritibilidade do direito à recomposição material ou moral, quando a lesão é causada por ato político, o qual deixa a vítima inteiramente à mercê do Estado. Daí o reconhecimento da imprescritibilidade da ação de indenização dos que sofreram tortura ou outro dano qualquer por ato praticado durante o governo revolucionário de 1964, diante da fragilidade da vítima para se insurgir contra o Estado.” (…) “Não interfere na análise o fato de figurar no polo passivo o agente estatal, porque não há fundament o jurídico, doutrinário ou jurisprudencial, que autorize traçar, no tema discutido, uma linha divisória entre a ação condenatória ou declaratória proposta contra o Estado e a ação condenatória ou declaratória ajuizada contra seu agente.” (sem destaque no original).


III. A prova oral deu integral respaldo ao relato feito constante da inicial. Narraram as testemunhas a dinâmica dos eventos, a elevada brutalidade dos espancamentos a que foi submetido o companheiro e irmão das autoras, que o levaram a morte, ora sob comando, ora sob atuação direta do requerido, na qualidade de comandante do DOI-CODI e da operação OBAN, vinculadas a manutenção e proteção do regime militar. Narrou a testemunha Laurindo Martins Junqueira Filho que: “Ustra era o Comandante da unidade e assistiu minha tortura, assistiu a tortura do meu companheiro que estava comigo. Ele não viu o Luiz Eduardo sendo torturado, mas ele era o Comandante da unidade de tortura e orientava essa t ortura pessoalmente.” (…) “Após o contato com o Luiz Eduardo, eu recebi informações de um soldado do exército, que prestava serviço na Unidade da OBAN, de que o Luiz Eduardo tinha morrido, tinha sido torturado durante a noite. E esse soldado, de suposto nome Washington, de cor negra, veio até mim e falou que o Luiz Eduardo tinha morrido de gangrena nas pernas; tinha sido conduzido para um passeio – foi a expressão que ele usou – na madrugada, e que tinha sido várias vezes atropelado por um caminhão que prestava serviços para a unidade da OBAN. Isso teria se repetido tantas vezes que os órgãos dele tinham sido decepados pelo caminhão.” (fl. 802). A testemunha Leane Ferreira de Almeida, por sua vez, relatou que: “ouvi os gritos do Luiz Eduardo durante três dias, durante o período que as equipes comandadas pelo Major Ustra o torturaram.” Noticia também que, embora não tenha presenciado o momento da tortura de Luiz Eduardo, o requerido estava no local dos fatos. “Estava o Ustra. A coisa principal que ele estava fazendo naquele dia era torturar as pessoas que poderiam levar a uma pessoa que ele procurava muito fortemente; (…) Ele gritava esse nome pessoalmente enquanto ele era torturado no Pau-de-Arara. Parece um código, mas era o nome de um militante. O objetivo dele era chegar aos militantes. Quando eu não tive essa informação para dar, o Luiz Eduardo foi preso e passou a ser torturado na mesma sequência e sala que eu, durante três dias consecutivos. Todos os presos escutavam os gritos dele incessantemente, até sua retirada da Operação Bandeirantes, desacordado e colocado no porta-malas de uma carro. Isso foi visto por mim, no pátio do Presídio Bandeirantes, comandado pelo Major Ustra; colocado no porta-malas de um carro por quatro outros policiais da mesma equipe. Foi colocado no porta-malas do carro, desacordado. Parecia até que já morto.” (808). Coincidem os relatos da testemunha Paulo de Tarso Vanucchi: “Retornei ao DOI-CODI da Rua Tutóia no mês de julho. (…) respondi relatórios curtos e conheci o Merlino, que foi trazido para a porta da minha cela, no xadrez três (…) onde foi a massagem, deitado numa escrivaninha, que um enfermeiro – conhecido como Boliviano – fez durante uma hora na minha frente. Pude conversar com o Merlino, eu era estudante de medicina e notei que ele tinha numa das pernas a cor da cianose, que é um sintoma de isquemia, risco de gangrena. E nos dias seguintes pergunte para carcereiros, sobretudo para um policial de nome Gabriel – negro, atencioso – o que tinha acontecido com aquele moço e ele respondeu que ele tinha sido levado para o hospital. Nos dias seguintes vi essa versão repetida e tinha contato com o Major Tibiriçá, cheguei a perguntar sobre isso e ele nada respondeu. E nesse sentido eu tenho a dizer que o Major Ustra era o comandante que determinava tudo o que podia, o que devia ser feito e o que não tinha (fl. 818). É de Joel Rufino dos Santos o seguinte relato: “Pela versão que meu esse torturador, ele (Ustra) estava presente e comandou a tortura sobre o Merlino. E decidiu ao final se amputava ou não a perna do Merlino. A versão que recebi foi essa, que o Merlino, depois de muito torturado, foi levado ao hospital e de lá telefonaram, se comunicaram com o Comandante pra saber o que fazer. Ele disse para deixar morrer.” (fl.844). As testemunhas arroladas pelo requerido, por sua vez, nada souberam informar especificamente acerca dos fatos, porque nada presenciaram, uma delas só o conheceu depois da aposentadoria.


IV. Evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados. Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade m ilitar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensados aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio demandado, fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras expressivos danos morais. Oportuno mencionar que, a par de tipificada como crime, a tortura é vedada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e constitui indevida afronta à incolumidade daquele que está sob a responsabilidade do Estado e do agente público no exercício do comando. Nem mesmo o eventual cumprimento de ordem de superior hierárquico poderia afastar a culpa do requerido, porque se trataria de ordem absolutamente ilegal, que, por isso mesmo, não poderia ser acatada, sem delinear culpa própria. Permito-me transcrever recente julgado do Tribunal Regional Federal acerca do mesmo tema: “Indenização por danos morais. Prisão. Tortura e morte do pai e marido das autoras. Regime militar. Alegada prescrição. Inocorrência. Lei n. 9.140/95. Reconhecimento oficial do falecimento pela comissão especial de desaparecidos políticos. Dever de indenizar.


1. Não há que se falar em ausência de interesse de agir dado o fato de que a reparação especial prevista na Lei 9.140/95, não impede que o interessado busque indenização sob outro fundamento jurídico.


2. Também deve ser afastada a alegação de prescrição da ação, visto que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido da imprescritibilidade da ação para reparação por danos morais decorrentes de ofensa aos direitos humanos, incluindo aqueles perpetrados durante o ciclo do Regime Militar.


3. A documentação nos autos comprova que o falecido, em razão de sua militância política, foi perseguido, preso e torturado, o que resultou em seu óbito.


4. A morte do pai e marido das autoras em decorrência das torturas que lhe foram infligidas quando esteve preso no conhecido e temido DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), no mês de abril de 1970, foi reconhecida pela Comissão Especial instituída pelo artigo 4º da Lei 9.140/95.


5. A morte prematura do marido e pai privou as autoras de uma vida em comum com alguém intelectualmente privilegiado, além de certamente ter reflexos financeiros na vida de ambas a justificar a condenação da União a lhes pagar indenização por danos morais.


6. Considerando o princípio da razoabilidade e tendo como parâmetro decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 41614/SP, rel. Min. Aldir Passarinho, 4ª Turma, j. 21/10/1999), entendo razoáveis os valores fixados na sentença de primeiro grau a título de danos morais. (…)” (TRF 3ª Região, 3ª Turma, rel. DEs. Rubens Calixto, j. 1/3/2012).


V. A ilicitude no comportamento do réu teve o condão de causar ofensa a bem juridicamente tutelado das autoras, de caráter extrapatrimonial. Trata-se de dano reflexo, vez que conduta ilícita se dirigiu a ente próximo e muito querido delas, integrante do círculo familiar de relacionamento mais relevante. A brutal violência com que o requerido pautou sua conduta fez ainda mais gravoso o resultado final morte, dada a crueldade que, impingida a ente querido, acabou por atingir a esfera de dignidade das próprias autoras. A morte prematura por motivo político e com requintes de crueldade privou as autoras do convívio com seu companheiro e irmão, respectivamente. Por certo, a indenização almejada não será capaz de sanar a dor suportada pelas autoras, nem suprir-lhes a ausência do ente querido. Destina-se a minorar o intenso sofrimento. Muito se assemelham em seus objetivos a indenização aqui almejada e o trabalho da Comissão da Verdade, cujos integrantes foram recentemente empossados pela União. Como escr eveu Flávia Piovesan em recente artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, edição de 6/5/2012: “Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ‘toda sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a ocorrer no futuro’. O direito à verdade apresenta uma dupla dimensão: individual e coletiva. Individual ao conferir aos familiares de vítimas de graves violações o direito à informação sobre o ocorrido, permitindo-lhes o direito a honrar seus entes queridos, celebrando o direito ao luto. Coletivo, ao assegurar à sociedade em geral o direito à construção da memória e identidade coletivas, cumprindo um papel preventivo, ao confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais práticas. Como sustenta um parlamentar chileno: ‘A consciência moral de uma nação dema nda a verdade porque apenas com base na verdade é possível satisfazer demandas essenciais de justiça e criar condições necessárias para alcançar a efetiva reconciliação nacional’.” Com tais parâmetros, fixo a indenização devida pelo requerido às autoras no valor de R$ 50.000,00 para cada uma.


VI. Por todo o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido e condeno o requerido a pagar a cada uma das autoras indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), válido para esta data, a ser acrescido, até final pagamento de correção monetária computada segundo os critérios fixados pelo Tribunal de Justiça deste estado para atualização de débitos judiciais. Juros de mora incidirão desde o evento danoso, nos moldes da súmula 54 do STJ, sendo de 0,5% ao mês até 10/01/2003 e de 1% ao mês a partir de 11/1/2003. Arcará o requerido com o pagamento de custas e despesas processuais, bem como de honorários advocatícios que fixo em 10% do val or da condenação. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. São Paulo, 25 de junho de 2012.


CLAUDIA DE LIMA MENGE Juíza de Direito

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Texto Integral da Denúncia do Caso Pinheirinho à OEA


REQUERENTES



- Rede Social de Justiça e de Direitos Humanos

- Associação por Moradia e Direitos Sociais- ADMS

- Sindicato dos Advogados de São Paulo

- Marcio Sotelo Felippe

- Fabio Konder Comparato

- Celso Antonio Bandeira de Mello

- Cezar Britto

- José Geraldo de Sousa Junior

- Dalmo de Abreu Dallari

- Aristeu Cesar Pinto Neto

- Antonio Donizete Ferreira

- Nicia Bosco

- Giane Ambrósio Álvares

- Camila Gomes de Lima



Os peticionários não desejam que suas identidades sejam mantidas em reserva frente ao Estado.





ESTADO MEMBRO DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS CONTRA O QUAL SE APRESENTA A DENUNCIA:



- República Federativa do Brasil



AUTORIDADES RESPONSÁVEIS PELAS VIOLAÇÕES



1. Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin



2. Prefeito do Município de São José dos Campos, Eduardo Pedrosa Cury



3. Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivan Ricardo Garisio Sartori



4. Juiz assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rodrigo Capez



5. Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Cândido Além



6. Juíza da 6ª Vara Cível da Comarca de São José dos Campos-SP, Márcia Faria Mathey Loureiro



7. Juiz da 18ª Vara Cível do Fórum Central João Mendes, em São Paulo-SP, Luiz Beethoven Giffoni Ferreira



8. Comandante da Operação Policial, Coronel PM Manoel Messias



DATA E LUGAR DOS FATOS



Os fatos ensejadores das violações de direitos humanos narradas nesta petição tiveram início no dia 22 de janeiro de 2012, (portanto não exaurido o prazo de 6 meses, previsto no artigo 32, do Regulamento da CIDH) com a execução da ordem de despejo contra os moradores da Comunidade do Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos, Estado de São Paulo, Brasil, e perduram até o dia de hoje, tendo em vista que não foram realizadas medidas aptas ao restabelecimento de condições de moradia digna, nem tampouco de respeito ao direito ao trabalho e à educação, dentre outros, das famílias afetadas. Da mesma forma, não foram, até a presente data, realizados procedimentos com vistas à reparação dos danos materiais, morais e penais sofridos no contexto do que se tornou conhecido no país como o “Massacre do Pinheirinho”.



SUMÁRIO



I. OS FATOS



1. Esclarecimentos prévios



2. A ordem judicial violadora dos direitos fundamentais das vítimas e sua execução



2.1. A morte do morador Ivo Teles da Silva. Evidências de que a morte ocorreu em decorrência das agressões físicas praticadas por policiais militares durante a desocupação da comunidade.



2.2. Caso David Washington Furtado. Morador baleado durante a desocupação



3. A situação das vítimas após a destruição do bairro



3.1 Condições atuais de moradia precária.



4. A atuação do Poder Judiciário e dos Poderes Executivos do Estado de São Paulo e do Município de São José dos Campos



II. As violações da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e demais documentos



III. Admissibilidade



IV. Responsabilizações e Reparações



V. Vítimas



VI. Provas e Testemunhas







I – OS FATOS



1. Esclarecimentos prévios



A comunidade Pinheirinho, localizada em São José dos Campos, Estado de São Paulo, Brasil, formou-se a partir de 2004 em uma área abandonada de cerca de 1,3 milhões de metros quadrados. O terreno foi ocupado por pessoas de baixa renda em decorrência do déficit habitacional no Município.



Cadastramento realizado em agosto de 2010 pela Prefeitura de São José dos Campos constatou a presença de 1.659 famílias, num total de 5.488 pessoas, número equivalente a aproximadamente 1% da população do município. A partir de 2009, por exigência da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (órgão do Estado de São Paulo), a ocupação foi “congelada”, não se permitindo mais a entrada de outras famílias.



Ao longo de quase oito anos o bairro consolidou-se, com casas de alvenaria, ruas traçadas, avenidas, praças, local para equipamentos públicos e áreas de preservação ambiental. Quase a totalidade das moradias estava construída de acordo com as regras urbanas do Município.



O antropólogo Inácio Dias de Andrade conviveu diariamente com os moradores do Pinheirinho entre os anos 2007 e 2010, escrevendo sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo sobre essa experiência com a comunidade.



Conta o antropólogo:



“O terreno foi dividido, desde o início, em setores que podiam comportar um número determinado de casas, evitando a superpopulação do local. Às terças-feiras, cada setor se reunia, após o horário de trabalho dos moradores – geralmente à seis da tarde. Aos sábados, no mesmo horário, os moradores formavam uma Assembléia Geral, que contava com os encaminhamentos feitos anteriormente em cada setor (...) Nesses espaços de gestão democrática eram decididas as regras gerais de convivência (...) Delimitava-se as zonas que seriam destinadas à preservação ambiental, ao plantio de alimentos ou locais de risco em que não se poderia construir casas. Além disso, nessas ocasiões, eram resolvidas questões relativas à segurança da população do local e do entorno. Roubo, tráfico de drogas ou quaisquer outras atividades ilícitas eram rigidamente controladas pelas lideranças e moradores (...) Durante todos os anos de existência do acampamento não foi registrada uma morte sequer no local. Ao invés de vagabundos, o movimento se constituía num microcosmo de atuação democrática. (texto completo em http://antropologiausp.blogspot.com.br/2012/02/pinheirinho-para-alem-da-desocupacao.html - Anexo 01).



Verifica-se por esse relato que a comunidade do Pinheirinho não resultou de uma ocupação desordenada e caótica nem tampouco foi reduto de pessoas vivendo à margem da lei. Era formada por cidadãos produtivos e suas famílias, que construíram uma situação socialmente consolidada, ocupando uma imensa área abandonada e improdutiva. A comunidade, portanto, deu ao imóvel sua função social.



Havia uma negociação em curso para a regularização da área como núcleo habitacional. Participavam dos entendimentos representantes dos moradores, Secretaria Nacional de Habitação, Secretaria Estadual de Habitação e a Prefeitura de São José dos Campos. Devido ao grande número de moradores e à complexidade dos procedimentos burocráticos, as negociações transcorriam lentamente, desde 2009.



O terreno consta como propriedade da empresa Selecta Comércio e Indústria S/A, controlada pelo investidor Naji Nahas, nacionalmente conhecido por acusações de irregularidades praticadas no mercado financeiro . A empresa está com processo de falência em curso perante a 18ª. Vara Cível da Comarca de São Paulo. No momento dos fatos ora denunciados todos os créditos privados contra a massa falida haviam sido resolvidos, remanescendo apenas créditos fiscais em favor da Prefeitura e da União (anexo 02- Despacho Juiz Luiz Beethoven).







2. A ordem judicial violadora dos direitos fundamentais das vítimas e sua execução



Afirma o defensor público Jairo Salvador de Souza, que exerce sua função na comarca de São José dos Campos, que



“o histórico desrespeito aos Direitos Humanos na cidade revela uma reiterada negação ao epicentro axiológico de toda ordem constitucional: o respeito à dignidade humana. Nesse sentido, o caso Pinheirinho é emblemático”.



Relata que nos últimos 10 anos outras comunidades, sob os mais diversos pretextos, desapareceram:



“Só para citar algumas: Morro do Regaço (Vila Nova Tatetuba, Nova Detroit, Caparaó, Salinas, Vila do Pena,, Torrão de Ouro, Favela do Banhado (em curso), Comunidade do Jardim das Indústrias, Santa Cruz I, Travessa dos Anões, Henrique Dias, Martins Guimarães”.



“A política pública implementada na cidade propugnava a eliminação física dos adensamentos informais” (anexo 03 – Boletim da Associação dos Juízes para a Democracia).



Anteriormente aos fatos a Prefeitura fez aprovar uma lei – denominada “Lei Hayashi” – que vedava aos moradores de ocupações o acesso a serviços públicos. A lei foi declarada inconstitucional.



Em 2004 a massa falida da Selecta ingressou com ação de reintegração de posse, cuja liminar foi indeferida em 2005 pelo juiz da 6ª Vara Cível de São José dos Campos.



No entanto, transcorridos quase oito anos, a reintegração liminar foi deferida pela juíza Marcia Faria Mathey Loureiro, em junho de 2011.



É nesse momento que os interesses da empresa proprietária, que jamais havia dado finalidade social à área, usando-a para fins meramente especulativos, e das autoridades municipais, empenhadas em eliminar da cidade ocupações dessa natureza, ganham a possibilidade de serem atendidos, pouco importando o destino dos moradores da comunidade.



Em razão das impugnações judiciais cabíveis e também do tempo que a Polícia Militar necessitava para a execução do despejo dessa magnitude, a decisão não foi imediatamente realizada.



Diante da tragédia social e humana que se avizinhava, com a iminente retirada à força de 1659 famílias de suas moradias , parlamentares e representantes dos moradores tentaram uma negociação com os interessados e autoridades judiciais.



No dia 18 de janeiro de 2012, quinta-feira, reuniram-se no gabinete do juiz da Falência, Dr. Luiz Beethoven Giffoni Ferreira, o Senador da República Eduardo Matarazzo Suplicy, os Deputados Estaduais Carlos Giannazi e Adriano Diogo, o Deputado Federal Ivan Valente, o síndico da massa falida Jorge T. Uwada, o advogado da massa falida Julio Shimabukuro e o advogado da empresa falida Selecta, Waldir Helu.



Conseguiu-se então um acordo de suspensão da ordem judicial de reintegração de posse pelo prazo de 15 dias. O juiz da falência declarou na petição em que formalizado o acordo, por despacho de punho próprio, que havia telefonado para a juíza Márcia Loureiro, responsável pela ordem de reintegração de posse, comunicando o resultado da negociação (anexo 04 - Petição do acordo de suspensão do despejo e Anexo 05 – Relatório Oficial do Senador Suplicy).



No entanto, de surpresa, sem qualquer notificação, em flagrante, literal e traiçoeira violação do acordo de suspensão da ordem judicial, três dias depois ocorreu a violenta desocupação e remoção das 1.659 famílias.



Na madrugada de domingo, dia 22 de janeiro de 2012, às 5h30 da manhã, o bairro Pinheirinho foi cercado pela polícia estadual e pela guarda municipal de São José dos Campos. Mais de 2 mil policiais entraram na área, lançando bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha contra uma população que dormia, indefesa. Todos os moradores, incluindo mulheres, recém-nascidos, crianças, idosos e enfermos foram arrancados de suas casas (Anexo 06 – fotografias do despejo, Anexo 07 – vídeo despejo e violências, Anexo 08 - Vídeo - Repórter se emociona no Pinheirinho em São José dos Campos, Anexo 09 - Vídeo - Pinheirinho perdi tudo, Anexo 10 - Vídeo - Reintegração de Posse volta para a massa falida e Anexo 11 - Vídeo - Audiência Pública Sobre o Pinheirinho - Defensor Jairo Salvador).



Máquinas derrubaram as edificações, destruindo bens pessoais, móveis e utensílios dos moradores. Praticamente não foi concedida oportunidade para a retirada de bens pessoais, documentos e papéis.



Também foram demolidos todos os espaços de uso coletivo e todos os templos religiosos (um católico e seis protestantes).



Aquelas 6 mil pessoas foram tratadas como animais, arrancadas de suas moradias e lançadas em abrigos coletivos improvisados.



Durante a desocupação, dentro dos abrigos, os moradores ainda recebiam pancadas, eram vítimas de policiais armados, de balas de borracha e bombas de gás. Ambulâncias saiam do local carregando feridos, inclusive crianças vítimas dos gases e bombas de efeito moral.



As balas e bombas eram lançadas em todos os bairros contíguos ao terreno, atingindo pessoas e residências.



Mesmo após a desocupação, durante a noite, a Polícia Militar ainda atirava bombas de gás dentro do pátio da Igreja, onde se resguardavam moradores que não quiseram ficar nos abrigos.



Os advogados não puderam acompanhar os atos da desocupação, inobstante sua natureza judicial. Alguns levaram tiros com balas de borracha, como o advogado Antônio Donizete Ferreira, atingido nas costas, joelho e virilha por balas de borracha. Membros da Defensoria Pública, órgão estatal responsável pela assistência jurídica aos necessitados, foram impedidos militarmente de acompanhar o cumprimento da ordem.



A imprensa também não pode acompanhar o procedimento policial.



Pode-se comparar a operação policial, em sua brutalidade e selvageria, a um “pogrom”, ou à Noite dos Cristais na Alemanha nazista, que destruiu milhares de propriedades, casas e templos da comunidade judaica em 1938. Na comunidade do Pinheirinho, no Brasil de 2012, no entanto, o motivo não foi o ódio étnico. Foi o alegado direito de propriedade, reputado absoluto pelo Judiciário e imposto ao custo de indizível sofrimento de toda uma população.



A remoção violenta das 6 mil pessoas aqui descrita, além de violadora de diversos dispositivos da Convenção e da Declaração Americanas, a seguir mencionados, também caracteriza crime contra a Humanidade, nos termos do art. 7º , letra “k”, do Estatuto de Roma: ato desumano que provocou intencionalmente grande sofrimento, ferimentos graves e afetou a saúde mental e física de coletividade. Frontal violação do princípio da dignidade humana, com insuperável dano à integridade física e psíquica das vítimas e efeitos traumáticos em crianças, que perdurarão em suas existências.



O Relatório parcial produzido pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE) do Estado de São Paulo. Em reunião pública, que contou com a colaboração de cerca de 90 defensores dos direitos humanos, o órgão tomou a termo depoimentos de 634 moradores do Pinheirinho, então abrigados – ou, melhor dizendo, empilhados - nos abrigos precários fornecidos pela prefeitura de São José dos Campos (Anexo 12 – Relatório do Condepe).



Trechos de depoimentos :



“Muito constrangimento. Morava numa casa simples e sonhava que o loteamento fosse legalizado para viver dignamente. Foi horrível o que passamos lá. Crianças e idosos sendo tratados feito vermes” (Marisley, moradora do Pinheirinho com uma filha de 9 anos



“Já existia uma casa onde meus filhos tinham seu quarto, com endereço e identidade. Vimos o sonho que construímos com luta e dignidade virar um pesadelo. O que quero é o direito e a oportunidade de ter meu lar e um lugar digno para minhas filhas” (Luciana, mãe de 3 filhos)



“Não sabia de nada, não teve aviso prévio (...) um dia antes estavam comemorando que iam conseguir um prazo de 15 dias, mas os policiais vieram no domingo de surpresa. Quando soube já estavam derrubando outras casas. Mandaram todos ir para dentro de casas sem explicações. Foi tentar ver o que acontecia, mas cordões policiais barravam a visão. Viu um senhor de uns 70 anos sendo espancado mas não sabe o nome (...) ficou em casa esperando os policiais chegarem e arrumou umas mochilinhas com roupas. Os policiais mandaram sair, e avisaram que ligariam depois para retirar os móveis e tudo o que estivesse nas casas. Pegou telefone e RG [documento de identidade] mas não ligaram até hoje. Maria voltou lá para tentar pegar os móveis mas o trator estava chegando, ela pegou apenas o que pode. No outro dia o marido foi no local da casa e estava tudo destruído, mesmo os móveis estavam destruídos. O policial falou no domingo: ‘vocês ainda têm sorte que o comandante liberou vocês para pegarem as coisas, porque a juíza tinha avisado que tudo que havia dentro das casas era lixo’. Com as bombas de gás lacrimogênio, a filha J (15 anos) passou mal mas os hospitais estavam fechados com a confusão” (Maria de Jesus, moradora do Pinheirinho, com marido e 3 filhos).



“...Disse que na hora mesmo da reintegração só davam 5 minutos para tirar algumas coisinhas. Se demorasse recebia bala de borracha (...) os policiais xingavam muito, gratuitamente: ‘bando de filho da puta, entra pra dentro’ para mandar as pessoas para dentro de casa” (Cláudia, moradora com marido e 4 filhos)



“Os policiais foram muito estúpidos, apressando muito, debochando dos moradores. Ela nem teve tempo de pegar documentos, só a bolsa que tinha os documentos dos filhos. Os policiais chegaram jogando bombas, muito brutos e rasgando as faixas do PSTU [partido político] debochando do ‘Pinheirinho é nosso’ e rindo deles. Uma amiga de Aline levou balas de borracha na boca (...) o que mais dói é ver os filhos pedindo pra ir pra casa, fico sem ação.” (Aline, moradora do Pinheirinho, com marido e 3 filhos, 8, 5 e 2 anos)



“Estavam dormindo e foram atingidos com bombas e gás pimenta (possui uma bomba que caiu na casa e não foi deflagrada). Quando estava indo à Igreja foi surpreendida por 6 policiais do Choque que mandaram correr e dispararam bala de plástico nas costas (possui fragmento da bala). Sua esposa também foi agredida com um fragmento de bala ou bomba no nariz e teve uma reação alérgica com gás pimenta nos lábios e todo o rosto. O Helicóptero Águia despejou bomba no fundo do quintal, atingindo Iranil e seu filho de 2 anos que estava no colo. O filho de 6 anos apresentou quadro de vômito e trauma emocional de todo o processo. Perderam: todo mobiliário (cama de casal e de solteiro), armário, guarda-roupa, televisão, aparelho de TV a cabo (...) bicicletas, tanquinho, aparelho de DVD, prataria, louças, roupas, ferramentas, furadeira, réguas e a construção. Perda estimada? 16 mil reais (Iranil, com mulher e 3 filhos, de 6, 4 e 2 anos)



“Ele foi atrás da sogra de 60 anos que devia estar indo para a Igreja e levou três tiros de balas de borracha na perna esquerda. Os machucados estão inflamados, com pus.Atiraram de uma distãncia que não dava nem 5 metros”. (José Maria, morador, com mulher e filha de 11 anos)



“A neta está em estado de choque, por ter visto um nenê com a boca aberta por conta do gás de pimenta.O nenê não conseguia respirar. A neta é L, de 13 anos, que já sofria de problemas psiquiátricos antes da reintegração. Seus problemas se agravaram muito com o trauma do dia” (Lindaura, moradora, com 3 filhos maiores e 4 netos)



“Presenciou agentes da Tropa de Choque agredir uma criança de cerca de 9 anos próximo à Igreja Evangélica da rua 9. Não reconhece o agressor, mas diz que poderia reconhecer a vítima (criança, negra, desacompanhada, à procura dos pais)



O Relatório apresenta um quadro assustador da violência do ato de desocupação. Destacamos alguns pontos .



- Ameaças e humilhações: 260 denúncias



- Consequências do uso de armamentos: 248 denúncias



- Pouco tempo para recolher bens: 225 denúncias



- Casa demolida sem a respectiva retirada de bens: 205 denúncias



- Expulsão/ordem para sair de casa: 179 denúncias



- Agressão física – 166 denúncias



- Perda de emprego/impedimento de renda: 80 denúncias



- Dificuldade/impedimento de livre circulação: 77 denúncias



- Abrigos em situação de insalubridade: 73 denúncias



- Casas saqueadas: 71 denúncias



- Ameaças mediante armamentos: 67 denúncias



- Falta de orientação e de oferta de estrutura para retirar bens: 64 denúncias



- Falta de assistência: 54 denúncias



- Agressão/morticínio de animais: 33 denúncias



- Separação de filhos e outros parentes – 10 denúncias



Esse relatório apontou ainda o número de 1069 crianças e adolescentes nos 4 abrigos, observando o seguinte:



“Um dos efeitos imediatos da reintegração de posse e destruição do Pinheirinho foi a desinformação dos direitos das crianças e adolescentes à continuidade de seus vínculos com a escola e a creche. Nas primeiras duas semanas, o caos prevaleceu nos abrigos, dada a falta de informações sobre a garantia ou não de matrícula dos filhos e filhas nas escolas e creches



“a insegurança das famílias quanto à garantia de rematrícula das crianças e adolescentes na rede escolar de São José dos Campos, a perda de material escolar com a destruição das casas no processo de reintegração de posse, a falta de informações sobre as alternativas de transporte escolar e acesso dentro do calendário do ano escolar e as consequências psicológicas sobre as crianças e adolescentes das situações de violência vividas foram as principais queixas registradas...”



Ainda nos termos do relatório, a população do Pinheirinho era constituída de trabalhadores de baixa renda. De um total de 466 trabalhadores pesquisados sobre esse ponto (número que possibilita uma excelente amostragem), 402 tinham atividade remunerada. Destes, 55 eram pedreiros, 49 empregadas domésticas ou faxineiras, 45 eram pedreiros/ajudantes de ordem, 28 auxiliares de serviços gerais. Havia 197 trabalhadores com renda até 1 salário mínimo (cerca de U$ 317 dólares norte-americanos na época dos fatos) e 180 trabalhadores com renda até 2 salários-mínimos. Prejuízos na remuneração foram apontados por 470 pessoas.







2.1. A morte do morador Ivo Teles da Silva. Evidências de que a morte ocorreu em decorrência das agressões físicas praticadas por policiais militares durante a desocupação da comunidade.



O Sr. Ivo Teles da Silva contava com 69 anos e residia no Pinheirinho há 7 anos, com uma companheira.



No dia da desocupação Ivo Teles da Silva foi espancado pela polícia militar, sofrendo lesões em várias partes do corpo. Foi socorrido no Posto de Saúde do bairro e encaminhado ao Pronto Socorro do Hospital Municipal. Ficou desaparecido por mais de uma semana, apesar das insistentes tentativas de localização, por advogados, entidades de direitos humanos e amigos. A única resposta do serviço médico era que somente a Prefeitura poderia dar informações. E a prefeitura, por sua vez, negava haver efetuado qualquer atendimento à vítima.



Ele só seria encontrado cerca de dez dias depois no Hospital Municipal, outra unidade de saúde, já em estado de coma, e após ser submetido a procedimentos cirúrgicos.



O boletim de atendimento de urgência, embora solicitado pela Defensoria Pública e pelo CONDEPE, jamais foi apresentado.



O serviço público de saúde deu alta médica ao Sr. Ivo Teles da Silva, tendo sido encaminhado para a residência de sua filha, em Ilhéus-BA, de cadeira de rodas, pois ainda não andava ou falava. Ele viria a falecer dias depois, em 10.04.2012.



Embora não haja documentos oficias que atestem o nexo de causalidade entre as agressões praticadas pela polícia e a morte, há inúmeras evidências de que o seu falecimento se deu em decorrência dos fatos. As circunstâncias da morte ainda não foram esclarecidas, seguindo a sistemática sonegação de informação pela Prefeitura e demais órgãos da administração pública (Anexo 13 – Ivo Teles 1 e Anexo 14 – Ivo Teles 2).







2.2. Caso David Washington Furtado. Morador baleado durante a desocupação.



David foi baleado nas costas, próximo à medula óssea, quando protegia, com seu corpo, sua esposa, dos tiros de arma de fogo disparados pela guarda municipal.



Hoje, apesar da intervenção cirúrgica e tratamentos clínicos que ainda realiza, restaram sequelas nos membros inferiores que o tornaram parcialmente incapacitado. Um de suas pernas está se atrofiando e David Washington Furtado não recebe tratamento médico adequado.



Esse fato e os documentos que lhe comprovam estão amplamente registrados no relatório do CONDEPE (Anexo 12).







3. A situação das vítimas após a destruição do bairro



O Poder Público não tomou qualquer medida prévia para assegurar aos moradores desalojados condições mínimas de sobrevivência. Espantosamente, soube-se que a operação policial fora preparada durante 4 meses (Anexo 15 – Depoimento juíza Marcia Faria Mathey Loureiro).



Em nenhum momento desses 4 meses houve qualquer preocupação com o bem-estar dos moradores, obrigação elementar das autoridades, em especial do governador do Estado. Foram amontoados como animais, em abrigos públicos.



A conduta das autoridades limitou-se ao uso da força na ação policial. Tudo se resumiu a preparar violentamente o despejo das 6 mil pessoas, desprezando-se o direito dos moradores a um tratamento digno por parte do Estado.



Esse tratamento foi cruel e violador das mais elementares regras de humanidade e civilidade. Constituiu mais um capítulo da série de ofensas ao princípio da dignidade humana praticadas no episódio.



O relatório divulgado pela entidade não governamental Justiça Global (Anexo 16 – Relatório Justiça Global) assinala o seguinte:



As famílias despejadas foram levadas inicialmente a um centro de triagem situado numa quadra poliesportiva próxima à ocupação, e depois distribuídas por quatro abrigos diferentes, três organizados pela prefeitura e um pelo movimento social. No dia 25 de janeiro, as famílias abrigadas no local então coordenado pelo movimento social deixaram e tiveram que se deslocar a pé para outro abrigo, providenciado pela prefeitura, distante cerca de 4 km, no bairro Jardim Morumbi (grifo nosso).



Note-se: famílias foram obrigadas a caminhar a pé 4 km. Homens, mulheres, crianças, idosos e enfermos. Prossegue o relatório:



“Em todos os abrigos as condições sanitárias são precárias, o espaço insuficiente, o atendimento médico aos necessitados depende de voluntários. Em quase todos, os desabrigados são obrigados a usar pulseiras para suposto controle de entrada e saída, mas que, conforme narrado pelos desabrigados, acabam sendo um sinal de identificação que permitem agressões por parte da polícia fora dos abrigos”.



“No abrigo situado no CAIC, moradores acusam funcionários da prefeitura e o Conselho Tutelar de ameaçarem continuamente retirarem-lhe os filhos, e no dia 26 de janeiro pelo menos uma desabrigada não tinha informações nem acesso à sua neta que fora internada”.



“No mesmo abrigo, CAIC, desabrigados relatam que o local estava sujo com fezes de pombo no interior do alojamento onde as pessoas estão dormindo. Não há água no local, alguns moradores relatam que a comida servida está estragada e os desabrigados não estão sendo orientados quanto ao seu destino.”



“Luiz Alberto Ferreira Nunes declara que, além da falta de alimentação, foi inicialmente proibido entrar no abrigo pelo fato de ter passado das 23:00hs. Ele havia saído do mesmo para procurar alguma alimentação para sua esposa, que está grávida, e apenas conseguiu ingressar novamente no local após conversar com a polícia, assistentes sociais e explicar a situação.”



“Nos dias imediatamente posteriores ao despejo, funcionários da prefeitura abordaram desabrigados, oferecendo passagens para quem quisesse deixar a cidade para qualquer destino, inclusive para Estados do norte ou nordeste, o que foi interpretado como uma sugestão de que os moradores do Pinheirinho eram indesejados em São José dos Campos. Diante da fraca receptividade a essas propostas, ela cessaram.”



3.1 Condições atuais de moradia precária.



Na condição de desabrigados, sem roupas ou mesmo documentos, uma grande parcela dos moradores perdeu o emprego.



A maior parte das famílias esta recebendo o chamado aluguel social, de R$ 500,00. Com a distribuição do benefício, os aluguéis de residências simples, que já são habitualmente caros na cidade, aumentaram de tal forma que impedem o estabelecimento minimamente adequado das vítimas, obrigando a vida em condições precárias e muitas vezes insalubres.



Muitas famílias estão morando em um único cômodo, muitas vezes desprovido de janelas ou outros meios de ventilação. Outras dividem uma mesma casa. E algumas ainda se dirigiram para casas com construção condenada pela Defesa Civil.



A destruição de móveis e eletrodomésticos dificulta, ainda mais a condição precária de subsistência.



Muitas famílias tiveram que se deslocar para outras regiões da cidade, o que impede a frequência escolar, o atendimento no posto de saúde, mesmo para os idosos, deficientes e doentes, sem falar a dificuldade para o convívio com a comunidade a que estavam habituados.



A alteração do local de moradia dificulta a realização do trabalho daqueles que tem pouca remuneração, como os que fazem a reciclagem de lixo, pois tem que se deslocar de um lado a outro da cidade, custeando o transporte.



O aluguel social, portanto, é insuficiente às mínimas garantias de vida digna para a família. Seria necessário restabelecer uma moradia adequada, próxima ao antigo local, guarnecida dos móveis e equipamentos necessários. (Anexo 17 – Matéria Revista “ISTO É”)



4. A atuação do Poder Judiciário e dos Executivos do Estado de São Paulo e do Município de São José dos Campos.



Uma síntese da atuação do Poder Judiciário e das autoridades do Executivo no episódio encontra-se no relatório já mencionado da entidade Justiça Global (Anexo 15 e Anexo 18 - Reclamação CNJ), do qual nos valemos para a descrição do que segue.



Havia uma negociação em curso entre o Governo Federal, Estadual e Municipal para a celebração de um Protocolo de Intenções, visando regularizar a área e especificando as atribuições de cada esfera de governo.



A juíza Marcia Faria Mathey Loureiro, em entrevista que concedeu à programa televisivo, declarou que tinha ciência da negociação (anexo 15). No entanto, segundo suas próprias palavras, entendeu que tais negociações eram inócuas e estabeleceu, por sua própria conta, que deveriam ser desconsideradas e determinou a execução IMEDIATA da ordem judicial de despejo.



Já na madrugada de 17 de janeiro forças policiais se preparavam para executar o despejo. No entanto, às 4h20 da manhã, a juíza federal Roberta Monza Chiari deferiu liminar determinando às forças estaduais de segurança que não promovessem a reintegração de posse, reconhecendo o interesse da União em face da participação do governo federal no processo de regularização da área.



O interesse da União fixava a competência da Justiça Federal.



Na parte da tarde do mesmo dia, tal ordem foi suspensa pelo juiz federal Carlos Alberto Antonio Junior. No entanto, o Tribunal Regional Federal, por despacho do Desembargador Federal Antonio Cedenho, restabeleceu a ordem da juíza Roberta, no dia 19 de janeiro.



Assim, no dia dos fatos, 22 de janeiro, duas decisões impediam a desocupação: o acordo, já mencionado, no processo de falência da proprietária do imóvel, e a decisão da Justiça Federal confirmada pelo Tribunal Regional Federal.



No entanto, silenciosamente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu presidente, que não tinha jurisdição sobre o caso por ser autoridade administrativa, a prefeitura de São José dos Campos e o governo estadual executaram a decisão, como narrado acima, nas condições descritas de inaceitável brutalidade e violência.



Deve ser notada a inusitada e peculiar atuação do presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Desembargador Ivan Sartori, que determinou a presença de seu assessor, juiz Rodrigo Capez, no local do despejo, munido de um despacho determinando fosse desconsiderada a decisão do Tribunal Regional Federal e autorizando que fossem repelidas quaisquer ordens por parte de forças federais (Anexo 19 – Ofício Presidente do TJ-SP)



Buscou-se, até as ultimas instancias judiciais, a suspensão da ordem de reintegração. Entretanto, o Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu por respaldar a competência da juíza estadual para as medidas ditas de urgência.



Mesmo que assim não fosse o ato já havia sido concretizado (com a demolição das casas e expulsão dos moradores), com natureza satisfativa e impossibilidade de retorno à situação anterior.



Assim, constata-se nos fatos uma grave anomalia no funcionamento das instituições públicas e dos mecanismos jurídicos e políticos do país. Ressaltem-se, para síntese, os seguintes aspectos:



(a) Os governos estadual e municipal, ao mesmo tempo em que participavam da negociação para elaboração do Protocolo de Intenções visando regularizar a área, prepararam e executaram, traiçoeiramente, em atitude inaceitável para quem exerce munus público, a remoção dos 6 mil moradores. Note-se que a operação policial foi preparada durante 4 meses, e evidentemente jamais teria sido realizada sem autorização do governador do Estado, Geraldo Alckmin. Esta autoridade participava, por sua Secretaria de Estado da Habitação, ao mesmo tempo, das negociações para regularizar o terreno e da preparação da operação de remoção abrupta dos moradores, executada pela força policial que comanda. Do mesmo modo se comportou o Prefeito Eduardo Pedrosa Cury, de São José dos Campos.



(b) A decisão da justiça estadual foi executada contra determinação expressa da Justiça Federal e desconsiderando o acordo firmado pelo síndico da massa falida, legítima representante legal da massa falida e titular da ação de reintegração de posse.



(c) O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo exorbitou de suas funções, determinando a execução da ordem judicial sem considerar a existência de um frontal conflito de competência entre as Justiças Estadual e Federal. Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, conflitos de competência dessa natureza somente podem ser dirimidos pelo Superior Tribunal de Justiça. Exerceu, dessa forma, atividade jurisdicional para a qual não detinha competência, o que é primário e trivial na estrutura jurídica do Brasil.



II. As violações da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e demais documentos



Os fatos descritos constituem violações a diversos dispositivos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como segue:



1.Direito à Integridade Pessoal - artigo 5.1: “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”



Retirada de surpresa, sem aviso prévio, de madrugada, de 6 mil pessoas que dormiam indefesas, incluindo crianças de todas as idades, idosos e enfermos, com o uso de força policial que praticou ainda inumeráveis atos de violências, significando indelével abalo psíquico e moral e ofensa ao direito à integridade física da pessoa humana, incluindo inevitáveis traumas psicológicos ou psíquicos a crianças .



Em situação semelhante de imposição de sofrimento e violação à integridade pessoal, já decidiu a Corte:



149. Remarcó la Comisión que por la época en que ocurrieron los hechos de este caso, los llamados “niños de la calle” eran sometidos a varias formas de “abusos y persecuciones” por parte de “agentes de determinadas fuerzas de seguridad” del Estado, circunstancia que ya había sido puesta de manifiesto por parte de esse organismo interamericano en varios de sus informes.



(...)



151. En sus alegatos finales la Comisión sostuvo que los cuatro jóvenes víctimas de tortura fueron retenidos e incomunicados, situación que por sí misma necesariamente produce “gran ansiedad y sufrimiento”.(Caso “Niños de la Calle” - Villagrán Morales y otros Vs. Guatemala)



Colocação das pessoas em abrigos coletivos, desprovidos de qualquer conforto, em péssimas condições de higiene, em ambiente completamente insalubre. Conviviam nestes espaços idosos, crianças, jovens, deficientes físicos e inclusive doentes terminais jogados ao léu, dormindo no chão (vide anexo 06).



Os moradores do Pinheirinho, empilhados nos abrigos, dividiam estes espaços também com cachorros, pombos e até porcos (vide anexo 06).



Como é notório, mostra-se deveras desumano obrigar idosos de todas as idades, inclusive com mais de 80 anos, que buscavam apenas um espaço para ter privacidade, a permanecerem durante dias nestes abrigos coletivos, tendo como particular apenas um colchonete para dormir em meio a outras centenas de colchonetes espalhados pelo chão.



Os moradores da comunidade do Pinheirinho passavam o dia todo em volta do seu colchão, em meio ao barulho de um local dividido com muitos outros em situação idêntica.



Os idosos, assim como todas as pessoas, deixaram sob os escombros que restaram da realização do despejo mais que móveis e roupas. Deixaram seus sonhos e lembranças. Lembranças de uma vida toda foram soterradas, fotografias de parentes falecidos, vídeos de crianças que já cresceram, brinquedo que uma madrinha doou na infância, uma carta recebida há muito tempo, talvez na juventude. A caixa de recordações que toda família carrega, de fotos e lembranças recolhidas ao longo da vida, não mais existe.



Em síntese, além da destruição de bens cujo valor pode ser auferido (edificações, móveis, utensílios de uso doméstico etc), também foram destruídos, para sempre, bens imateriais, de valor moral e emocional inestimável.



A situação aqui retratada, particularmente no que diz respeito à vulnerabilidade, assemelha-se à apreciada pela Corte, no caso Comunidade indígena Yakye Axa Vs. Paraguay, sentença de 17 de junho de 2005:



‘50.108. La falta de garantía del derecho a la propiedad comunitaria ha ocasionado que los miembros de la Comunidad permanezcan con miedo, intranquilidad y preocupación. Esta situación los ha hecho vulnerables a las amenazas y hostigamientos por parte de terceros, que sumado a la falta de protección estatal, há provocado sentimientos de angustia e impotencia en los miembros de la Comunidad Yakye Axa.



50.109. Las graves condiciones de vida en que permanecen los miembros de la Comunidad que se encuentran asentados al costado de la carretera pública han ocasionado daños inmateriales a éstos.



50.110. Los miembros de la Comunidad Yakye Axa, en particular los niños y ancianos, han visto gravemente afectada su salud como consecuencia de las condiciones de vida en la que permanecen.”



2. Direito à Propriedade Privada – art. 21.1:“Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens”; art. 21.2: “Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei”.



As edificações em que residiam os moradores foram postas abaixo por máquinas, resultando na destruição dos bens móveis e utensílios pessoais de pessoas de baixa renda, privando-as do mínimo necessário para a continuidade de suas vidas. Todo o patrimônio adquirido ao longo da existência por aquelas pessoas foi destruído pelo Estado (Anexo 07 e demais vídeos).



3. Igualdade Perante a Lei - art. 24: “Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei”.



No conflito de interesses entre um proprietário privado e moradores, foi privilegiado de forma absoluta o direito do proprietário, com total desconsideração pelos direitos de sobrevivência digna e, igualmente, pelo direito de propriedade dos moradores, que tiveram seus bens destruídos (Anexo 10).



4. Proteção Judicial – art. 25: “Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais”. Garantias Judiciais – Art. 8.1: “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.



A Constituição do Brasil dispõe que a República tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º., inciso III). Estabelece que é objetivo fundamental da República “erradicar a pobreza e a marginalização” (art. 3º., inciso III) e “promover o bem de todos”.



Os fatos aqui expostos demonstram que não há na legislação infraconstitucional mecanismo (“simples e rápido”, conforme o texto da Convenção) capaz de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição e pela Convenção, particularmente quando se trata de pessoas em situação de vulnerabilidade, como crianças, idosos ou enfermos, além da parcela da população de baixa renda, privada de condições de sobrevivência digna.



Viu-se o privilégio do direito de propriedade, o privilégio de interesses econômicos e patrimoniais de pessoas já em situação de vantagem social em detrimento da população marginalizada ou vulnerável. O Código Civil e o Código de Processo Civil estabelecem regras para defesa da posse, conferindo direito de reintegração no caso de esbulho. Estes dispositivos não fazem nenhuma distinção entre (i) casos em que há evidente interesse humano e social, com risco potencial ou iminente de prejuízo à vida, integridade física, dignidade e sobrevivência de pessoas vulneráveis, crianças, enfermos e idosos ou pessoas de baixa renda e marginalizados, e (ii) casos em que estão em jogo interesses exclusivamente econômicos ou patrimoniais. O resultado disso é que fatos semelhantes a estes ocorrem com freqüência.



A ausência desse mecanismo jurídico determinado pela Convenção tem sido responsável pela ocorrência de tragédias sociais e humanas. Prevalece a singela aplicação de regras patrimoniais que remontam ao Direito Romano, desconsiderando a moderna proteção à dignidade da pessoa humana e normas correlatas.



Resulta, portanto, que direitos fundamentais, em face da realidade social e econômica do país, como este caso ilustra, não contam com proteção judicial porque o sistema jurídico do país os desconsidera quando em confronto com os direitos de posse e propriedade. Inexistem normas e instrumentos judiciais que conciliem o direito à propriedade/posse com a sobrevivência básica de pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica, de modo que o primeiro possa ser respeitado sem que se degrade a condição de vida dessas pessoas. Ressalte-se a peculiar proteção que o direito a um teto deve merecer: é básico para o exercício de outros direitos. Não há direito ao trabalho, à educação, à saúde, à integridade física, psíquica ou moral dos indivíduos em geral e à proteção das crianças, dos enfermos ou dos idosos, sem teto. A legislação ordinária contém recurso simples e rápido para a defesa da posse daqueles que não dão cumprimento à função social de suas propriedades e nenhum recurso simples e rápido para a defesa dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição, inclusive os que dizem respeito ao elementar direito de sobrevivência digna.



Aplicável ao caso, assim, o artigo XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, cujo objeto é o direito à justiça:



“Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridades que violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente”.



Durante quase 8 anos os moradores da comunidade Pinheirinho litigaram em vão nos tribunais. Além da inutilidade dos recursos judiciais de que se valeram, viram-se desalojados sem aviso prévio por ação sorrateira das autoridades do Judiciário e do Executivo e viram-se sem proteção.



5. Desenvolvimento progressivo - Artigo 26: “Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.”



O que se presenciou no despejo do Pinheirinho foi verdadeira ação estatal de destruição de direitos individuais, econômicos, sociais e culturais. Os documentos oficiais, científicos, notícias e depoimentos trazidos a esta honorável Comissão apontam para a existência de uma comunidade urbana organizada e consolidada, inclusive, de acordo com as normas urbanísticas, e em plena interação com os poderes públicos locais. Um cenário onde 1.659 famílias estavam gozando de seus direitos, até o advento da ação estatal.



O despejo realizado constituiu-se em grande retrocesso em matéria de efetivação dos direitos humanos das famílias do Pinheirinho, que tiveram rompidos, de maneira violenta, seus vínculos com o direito à dignidade, moradia, educação, trabalho, saúde e lazer.



Analisando o caso do Pinheirinho em sua totalidade, observa-se que a ação de despejo representa uma opção deliberada dos poderes públicos pela via que vai em sentido oposto àquele orientado para o desenvolvimento progressivo dos direitos humanos, sobretudo em se tratando de um caso que reflete outras centenas de situações de conflitos sociais no interior do Estado brasileiro.



6. Violações aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais



O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador) obriga os Estados a adotarem medidas para, entre outros, garantir o direito ao trabalho, saúde, educação, proteção da família, crianças, idosos e deficientes. Os fatos aqui narrados desnudam a não efetividade desses direitos no ordenamento brasileiro. As pessoas desalojadas estão privadas dessas garantias. Patente que inexistem normas, políticas públicas ou diretrizes governamentais que pudessem assegurar, antes ou depois dos fatos, o gozo desses direitos. Com isto, o Estado brasileiro desatende o artigo 2 do Protocolo de San Salvador, que assim dispõe: “Se o exercício dos direitos estabelecidos neste Protocolo ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Membros comprometem-se a adotar, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições deste Protocolo, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos esses direitos”.



Registre-se, nesse aspecto, que os direitos humanos são indivísíveis. O direito à moradia é pré-requisito para o gozo dos direitos econômicos e sociais. Não há como se conceber o direito ao trabalho, à educação, à saúde, proteção das crianças, idosos e enfermos em uma situação em que a pessoa esteja desprovida de um teto. Programas habitacionais existentes estão muito longe de atender a esta necessidade básica, o que está na base de acontecimentos como os do Pinheirinho.



As vítimas das violações aqui noticiadas continuam sofrendo suas consequências. Muitas permanecem sem abrigo ou acolhidas de favor em condições desumanas, em parcos espaços cedidos por amigos ou parentes, com comprometimento do direito à sobrevivência digna, em especial do bem-estar de crianças, idosos, enfermos. O Estado omite-se, sem adotar as medidas para atender de imediato as necessidades básicas das vítimas.



III. Admissibilidade



Esta petição preenche os requisitos de admissibilidade estabelecidos pelos arts. 44, 46.1 ‘a’, ‘b’, ‘c’, ‘d’ e 46.2 ‘a’ e ‘b’, da Convenção.



As violações originaram-se de determinação do Poder Judiciário, tendo as vítimas interposto todos os recursos possíveis, desde o início da ação de reintegração de posse, em 2005, para evitar fossem desabrigadas. A desocupação, no entanto, deu-se sem aviso prévio e no momento em que a execução estava suspensa.



A determinação da Justiça Federal que impedia o ato foi descumprida por ato do chefe do Poder Judiciário do Estado de São Paulo.



As vítimas, desde 2005, ano em que foi apresentado à justiça o primeiro pedido de reintegração de posse, esgotaram todas as possibilidades de recursos judiciais aptos a evitar a execução do desalojamento. No momento da execução da ordem de despejo, havia determinação da Justiça Federal que impedia o ato e um recurso de agravo em trâmite no Tribunal de Justiça de São Paulo, cuja decisão, que tinha o condão de suspender a desocupação, foi protelada e permanece até hoje em aberto (Anexo 18 – Reclamação ao CNJ).



No âmbito da responsabilização penal dos responsáveis diretos e indiretos pelas violações aqui apontadas, cabe mencionar que não tramitam procedimentos investigativos ou judiciais aptos para a apuração e punição das autoridades mencionadas, permanecendo inerte inclusive o Ministério Público. Considerando o peso funcional dos responsáveis pelas violações e o histórico de impunidade no país, entende-se que nenhuma medida de investigação que venha a ser proposta será eficaz para determinar sanções.



Nesse sentido veja-se comunicado do Tribunal de Justiça de São Paulo, assumindo responsabilidade pelo episódio (Anexo 21 - Comunicado Tribunal de Justiça de São Paulo):



“Tendo em vista o noticiário sobre o episódio do Pinheirinho, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo informa:



1 – Toda mobilização policial na data de 22/1/12 se deu por conta e responsabilidade da Presidência do Tribunal de Justiça, objetivando o cumprimento de ordem judicial;



2 – O efetivo da Polícia Militar em operação esteve sob o comando da Presidência do Tribunal de Justiça até o cumprimento da ordem;



3 – O Executivo do Estado, como era dever constitucional seu, limitou-se à cessão do efetivo requisitado pelo Tribunal de Justiça”.



Já é do conhecimento do Sistema Interamericano a patente morosidade dos procedimentos judiciais internos. Assim, por exemplo, como no caso do Parque São Lucas (Relatório N° 40/03 - caso 10.301 - 42° Distrito Policial - Brasil, ocasião em que foi observado pela peticionaria e acatado pelo relatório que:



“22. A parte peticionária, por sua vez, alegou a ineficácia dos recursos da jurisdição interna e a demora injustificada na tramitação dos casos contra os responsáveis pelos fatos ocorridos no 42° Distrito Policial, bem como a aplicação da exceção prevista no artigo 46.2, da Convenção. Alegou, ainda, que o argumento do Governo no sentido de que a denúncia fora apresentada demasiadamente rápido, não tendo havido tempo para que se desse andamento aos processos da jurisdição interna poderia ter sido válido em 1989, não procedendo contudo atualmente. Isto, porque já se passaram mais de seis anos desde que os processos judiciais iniciaram-se, sem que tenha sido proferida uma decisão definitiva a respeito, em especial no tocante aos processos que tramitam na Justiça Militar.”



Note-se também que as circunstâncias do caso impõem a necessidade de invocar a ação internacional porque “os recursos da jurisdição interna e o próprio sistema jurídico interno não são efetivos para assegurar o respeito aos direitos humanos das vítimas” (cf. Relatório 40/03 da CIDH). Isto vincula-se à violação do Direito à Proteção Judicial, previsto no artigo 25 da Convenção Interamericana.



Os fatos narrados nessa petição, ensejadores de múltiplas violações de direitos humanos reconhecidos em documentos internacionais, não foram submetidos à apreciação de nenhuma outra instância internacional de direitos Humanos.



IV. Responsabilizações e Reparações



Pedem os requerentes que:



- O Estado brasileiro seja declarado responsável pela violação dos artigos 5.1, 21.1, 21.2, 24, 25, 8.1, 26 da Convenção, artigo XVIII, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e artigo 2º do Protocolo Adicional (DESC).



- O Estado brasileiro adote as medidas legislativas necessárias, como a reforma de dispositivos do Código Civil e Código de Processo Civil relativos à posse, ao lado de políticas públicas, visando proteger direitos fundamentais de pessoas em situação de vulnerabilidade por condições pessoais, sociais ou econômicas, particularmente impedindo que sejam privados de condições mínimas e dignas de sobrevivência em litígios de posse.



- O Estado brasileiro adote medidas legislativas para instituir mecanismo judicial (semelhante ao recurso de amparo) destinado a evitar, de modo simples e rápido, flagrantes violações de direitos humanos como as ora expostas, tendo em vista a inexistência de instrumentos jurídicos no direito interno, aptos a à proteção dos direitos violados, como mencionado no artigo 31, 2, a, do Regulamento da CIDH.



- Recomende-se a regulamentação normativa dos procedimentos judiciais e policiais relativos à realização de despejos em conflitos fundiários, nos moldes do Comentário Geral n. 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas, e das Resoluções nº 87 e 98 do Conselho das Cidades, do Ministério das Cidades do Governo Federal brasileiro.



- O Estado brasileiro indenize os danos morais e materiais, de forma justa e compensatória, todas as pessoas desalojadas da comunidade Pinheirinho em decorrência dos fatos ocorridos no dia 22 de janeiro de 2012 na cidade de São José dos Campos, bem como garanta a efetivação dos seus direitos à moradia adequada.



- O Estado brasileiro apure responsabilidades civis e penais e puna os responsáveis pelos fatos ocorridos no dia 22 de janeiro de 2012 na cidade de São José dos Campos, em todos os níveis, anotando apenas que no plano estritamente funcional tramita perante o Conselho Nacional de Justiça procedimento disciplinar (Anexo 18), requerido por alguns dos peticionários desta denúncia, e que é o único instrumento de responsabilização ao alcance do cidadão comum.



- Recomende-se ao Estado brasileiro que faça publicar em veículo de comunicação de grande circulação o Relatório a ser emitido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e dê ciência aos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo.



- Recomende-se que o Estado realize um processo de reforma das instituições do sistema de segurança pública, admitindo o seu caráter de justiça transicional, de modo a reorientar o sistema de segurança pública brasileiro para a garantia e respeito aos direitos humanos, sobretudo em situações de conflitos fundiários de natureza reivindicatória de direitos.



- Recomende-se que o Estado, como meio de reparação simbólica, realize pedido formal de desculpas aos moradores da comunidade do Pinheirinho.



- A submissão do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos caso não haja adequada solução.



V. Relação das Vítimas







Qualificação de 489 vítimas.



A listagem acima, contendo a qualificação de 489 vítimas, não é exaustiva uma vez que o local contava com a presença de cerca de 6 mil moradores. Posteriormente será informada a Comissão a qualificação de outras pessoas que tiveram direitos humanos violados.



VI. Provas e Testemunhas



Provas



Sumários dos documentos anexos



Anexo 01 - Relato Antropólogo



Anexo 02 - Despacho Juiz Beethoven



Anexo 03 - Boletim AJD



Anexo 04 – Petição de acordo da suspensão do despejo



Anexo 05 – Relatório Oficial do Senador Suplicy



Anexo 06 – Fotografias



Anexo 07 - Vídeo despejo e violências



Anexo 08 - Vídeo - Repórter se emociona no Pinheirinho em SJC



Anexo 09 - Vídeo - Pinheirinho perdi tudo



Anexo 10 - Vídeo - Reintegração de Posse volta para a massa falida



Anexo 11 - Vídeo - Audiência Pública Sobre o Pinheirinho - Defensor Jairo



Anexo 12 - Relatório Condepe



Anexo 13 - Ivo Teles 1



Anexo 14 - Ivo Teles 2 - documentos médicos



Anexo 15 – Depoimento Juíza Márcia Loureiro



Anexo 16 - Relatório Justiça Global



Anexo 17 – Matéria Revista ISTO É



Anexo 18 - RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR AO CNJ



Anexo 19 – Ofício Presidente do TJ-SP



Anexo 20 - Manifesto pela denúncia do caso pinheirinho à CIDH



Anexo 21 - Comunicado Tribunal de Justiça de São Paulo



Testemunhas:



- Eduardo Matarazzo Suplicy, brasileiro, Senador da República Federativa do Brasil, Senado Federal, Praça dos Três Poderes, Edifício Principal, Ala Senador Dinarte Mariz, Gabinete 2, Brasília, Distrito Federal, Brasil.



- Adriano Diogo, brasileiro, geólogo, Deputado Estadual por São Paulo, Rua Peixoto Gomide, 596 - 196B, São Paulo, São Paulo, Brasil.



- Aristeu Cesar Pinto Neto, brasileiro, advogado, Rua Eugenio Bonadio, 120 Ap.92 Centro, São José dos Campos, São Paulo, Brasil.



- Fausta Camilo de Fernandes, brasileira, Oficial de Justiça, Rua Merimar Barbosa, 203, Jardim das Nações, Taubaté, São Paulo, Brasil.



- Lucia de Fátima Rodrigues Gonçalves, brasileira, jornalista, Rua Padre Raimundo da Silva, 65, Vila Califórnia, São Paulo, São Paulo, Brasil.



- Antonio Donizete Ferreira, brasileiro, advogado, Rua Cabo Frio 391 Jardim Satélite, São José dos Campos, São Paulo, Brasil.



- José Maria de Almeida, brasileiro, metalúrgico, Avenida Professor Alfonso Boveiro, 546 Ap -404, Sumaré, São Paulo, São Paulo, Brasil.



- Jairo Salvador Souza, brasileiro, Defensor Público, Avenida Comendador Vicente de Paulo Penido, n.532 - Jardim Aquarius Sao José dos Campos, São Paulo, Brasil



São Paulo, Brasil, 21 de junho de 2012.



Assinam os peticionários:



Valdir Martins de Souza



Associação por Moradia e Direitos Sociais Aton Fon Filho



Rede Social de Justiça e de Direitos Humanos











Marcio Sotelo Felippe



Carlos Alberto Duarte



Sindicato dos Advogados de São Paulo











Fabio Konder Comparato







Celso Antonio Bandeira de Mello











José Geraldo de Sousa Junior







Cezar Britto











Antonio Donizete Ferreira







Dalmo de Abreu Dallari











Giane Ambrósio Álvares







Nicia Bosco











Camila Gomes de Lima







Aristeu Cesar Pinto Neto