sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

NO "VI O MUNDO", DE AZENHA



Marcio Sotelo Felippe: A vendedora de ovos e os perdigotos









Hegel contava a história da vendedora de ovos. A moça bonita foi
reclamar que os ovos que comprara estavam podres. A vendedora, uma
velha senhora, responde: “quem você pensa que é para reclamar comigo?
Teu pai é um inútil, tua mãe uma vadia que fugiu com um francês e
ninguém sabe de onde vem o teu dinheiro”.


Hegel queria mostrar como um conflito pode ser tratado de modo
enviesado e a argumentação sobre o fato concreto, que é o que importa,
obscurecida. Os ovos estavam podres, ainda que a moça fosse mesmo
prostituta, o pai um inútil e a mãe adúltera. No entanto, dito isto, a
questão do apodrecimento dos ovos desaparece.


Quando Reinaldo Azevedo polemiza com alguém usa a estratégia da
velhinha dos ovos. Basta passar os olhos pelos seus posts. Alguém que
lhe criticou solta perdigotos. O pai de Vladimir Safatle é
latifundiário improdutivo. Ao polemizar com a brilhante psicanalista
Maria Rita Kehl, procura atingi-la profissionalmente.


Em seu post de ontem, respondeu às críticas que lhe fiz por distorcer
a nota da Associação Juízes para a Democracia (AJD) sobre os recentes
acontecimentos da USP. A nota dizia a coisa mais óbvia da democracia: a
lei ordinária deve estar de acordo com a Constituição e respeitar os
direitos fundamentais. Usava uma linguagem diferente para dizer essa
coisa elementar. Como a expressão usada pela AJD era inusual, (cimo da
Constituição) prestou-se à manipulação do colunista. E eu sou
apresentado como “poderoso” por conta de um cargo que deixei de exercer
há 11 anos. Sutil. Se um “poderoso” o ataca, ele, que insulta, passa a
ser a vítima.


No dia anterior, um amigo me dizia que haveria resposta dele.
Respondi na hora: se responder, Reinaldo Azevedo vai usar a estratégia
da velhinha dos ovos. Não deu outra. Ninguém lhe disse que eu solto
perdigotos. Então, escarafunchou a minha vida pessoal e achou o mote:
minha mulher é juíza e é da AJD. A mensagem é clara: estou defendendo
minha mulher. Tudo o mais fica em segundo plano. Se eu digo que ele usa
expedientes macarthistas, que expõe, consciente e irresponsavelmente,
os dirigentes da AJD ao nominá-los um a um, ele, incorporando a
velhinha dos ovos, fala da minha mulher. Como falou dos perdigotos e do
pai de Safatle.


Agora vejamos o seu post de 9 de dezembro, após tudo que relatei: “blogueiros
a soldo do oficialismo, que pagam as contas com o nosso dinheiro,
criaram o mito de que ofendo as pessoas. Já aconteceu, sim, aqui e ali,
coisa rara, mas em questões pessoais — e nunca sem ter sido atacado
antes. Mas deixei isso de lado. Quando se trata de um tema público,
nunca! Nada de ofensas!



Vejam bem: se se trata de um tema público, ele nunca ofendeu…


Vou explicar como funciona a coisa. Quando elege alguém como inimigo
político, Reinaldo Azevedo introduz de algum modo um aspecto pessoal
negativo. Nesse momento seus leitores ficam envolvidos numa atmosfera
complicada. O clima que se estabelece é do tipo “vou lhe contar um
segredinho terrível sobre fulano. Sabe, ele solta perdigotos; sabe, o
pai dele é um latifundiário complicado”. Os argumentos que aparecem no
resto do texto pouco importam. O trabalho sujo está feito. O adversário
está desqualificado. A ideia é humilhar, operar com as baixas emoções,
com o ressentimento, com o ódio. Se o leitor não gostava de
esquerdistas por razões políticas, agora não gosta de esquerdistas
porque eles são pessoas ruins, desprezíveis, repugnantes.


O leitor há de perceber onde isso pode chegar. A História está
repleta de exemplos. Quando, em vez de ideias, as pessoas são
desqualificadas, o clima para coisas ruins vai sendo criado. O
primeiro passo é esse: apresentar o adversário político como alguém que
não merece respeito como pessoa. A grande vítima dessa estratégia é o
processo democrático. Na democracia, ideias são discutidas. Não o pai,
os perdigotos ou a mulher.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

REINALDO AZEVEDO E VEJA: A TORPEZA COMO POLÍTICA


                                  



                                  Reinaldo
Azevedo postou em seu blog violento ataque à Associação Juízes para a
Democracia. O motivo foi a nota em que a entidade de juízes fez críticas à
conduta da  reitoria da USP e das
autoridades nos  recentes episódios
envolvendo aquela Universidade.






                                 A nota da AJD  também motivou materia da Veja.  Ilustrada com uma foto da suástica nazista.
Inacreditável.


                                 No texto de
Reinaldo Azevedo há dois aspectos que merecem atenção das pessoas razoáveis e
lúcidas do país.


                                 O primeiro –
que foi também o mote da Veja -  é a
desonesta manipulação de um conceito básico das democracias contemporâneas.


                                 A nota da AJD
diz, em certa passagem,  que a lei, seja em si mesma, seja na sua aplicação,
deve ser recusada se contrariar princípios constitucionais.


                                 Acontece todos
os dias nas sociedades democráticas.  
Nas decisões dos tribunais, juízes ou administradores públicos.  Do ponto de vista dos cidadãos, relaciona-se
com o  conceito de desobediência civil,
tal como praticado por Gandhi e Martin Luther King, filosoficamente consolidado,
ainda que de escassa repercussão prática. No conflito entre uma regra positiva  e
a moralidade, prevalecem a moralidade e os princípios constitucionais.



                                Mas o colunista pinça a frase para dizer
que os juízes estão atacando o Estado de Direito e a idéia de supremacia da
lei. Os juízes da AJD fizeram rigorosamente o contrário. Defenderam o Estado de
Direito,  a ordem constitucional e a
moralidade.


                                 Isto se  chama delinquência intelectual. Mostra a inacreditável
má-fé e desonestidade  do colunista. Podia ser  burrice, mas não parece ser o caso de se
atribuir burrice a Reinaldo Azevedo. É o porta-voz das trevas, simplesmente.


                                 O segundo
aspecto. Após conduzir, maliciosamente, seus leitores à conclusão de que a AJD
é uma perigosa entidade subversiva que pretende destruir a democracia, nomina, um a um, os dirigentes da entidade.


                                 Isto se
chama  delinquência política. Que também
atende pelo nome de fascismo.


                                 Neste momento o
colunista ingressou  na infame galeria
em  que figuram, entre outros,  Joseph McCarthy e o jornalista Claudio
Marques.


                                 McCarthy, como
os leitores devem lembrar,  foi o senador
norte-americano responsável pela “caça às bruxas” nos anos 50, que perseguiu e
destruiu a vida de milhares de pessoas sob a acusação de esquerdismo,   fazendo da delação instrumento de ação
política.


                                 Claudio Marques
foi o jornalista que denunciou Vladimir Herzog como perigoso esquerdista
infiltrado na TV Cultura. Herzog foi preso após 
a infame campanha movida por Claudio Marques,   e o 
fim do episódio todos conhecemos.


                                 Reinaldo
Azevedo vem numa escalada de violência verbal. 
Perdeu a noção de limites. Embriagado pelo sucesso de sua retórica ultradireitista
em certo segmento social, criou um círculo vicioso em que ele e seus leitores
alimentam-se reciprocamente de ódio. Sua linguagem incita o ódio dos leitores,
e o ódio dos leitores  o incita a
tornar-se mais violento e permissivo.


                                 Quem lê “A Chegada do III Reich”, do historiador ingles Richard Evans, identifica esse
mesmo mecanismo na República de Weimar. Figuras semelhantes a Reinaldo Azevedo
pululavam.   O conceito clássico de
fascismo é o uso da violência como instrumento politico. Nenhuma violência
política se viabiliza sem uma etapa anterior anterior de  ódio e violência verbal. Este o papel em que
Reinaldo Azevedo e Veja  se comprazem. O
fascismo não surge por geração espontânea. Germina pouco a pouco com semeadores
desse tipo.


                         Conflitos politicos
resolvem-se, em uma democracia,  por
procedimentos antecedidos por diálogos em que os sujeitos agem racionalmente e
submetem-se a tais procedimentos independentemente de seu resultado. Quem, como
a Veja ou Reinaldo Azevedo, aventura-se no caminho da infâmia e da torpeza recusa  esse diálogo racional e recusa  os mecanismos democráticos. Não se importa
mais com a política democrática,  fazendo falsas
profissões de fé na democracia. Vislumbra apenas o ódio como meio de ação política. Se o ódio não for suficiente, vai recorrer a outro tipo de violência.


                          




terça-feira, 29 de novembro de 2011

A COMISSÃO DA VERDADE E OS DIREITOS DA HUMANIDADE






    Publiquei o texto que segue  no jornal Valor Econômico em 28 de abril deste ano.  Posto aqui com a finalidade de  deixar clara a diferença entre o que determinou a Corte Interamericana e o que o Estado brasileiro está fazendo. A Comissão da Verdade somente tem competência para,  em síntese,  esclarecer "os fatos e as circunstâncias" em que se deram graves violações de direitos humanos a partir de 1946". A Corte Interamericana disse ser inválida a Lei de Anistia de 1979, o que tem como consequência a possibilidade de persecução criminal contra os responsáveis pelos crimes contra a Humanidade praticados no período da ditadura militar. Esgota-se o prazo dado pela Corte para o cumprimento de sua decisão pelo Estado brasileiro. O Brasil está prestes a se tornar um Estado fora da lei na ordem internacional.




















       STF, CORTE
INTERAMERICANA E ANISTIA: ASPECTOS JURÍDICOS
                       


                                                                      


                          A Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou
inválida a Lei da Anistia. O STF, na ADPF no. 153, declarou válida mesmo
abrangendo crimes contra a humanidade. A sociedade deve ser informada sobre a solução
para o conflito porque após a decisão da Corte o Ministro César Peluso declarou
que  “a
eficácia se dá no campo da convencionalidade. Não revoga, não anula e não cassa
a decisão do Supremo”.  O Ministro errou.  Convencionalidade no Direito Internacional tem
um sentido próprio: é modo de criação de
normas vinculantes. Não há uma autoridade central com as funções do Estado
moderno. A norma vincula por acordo entre os Estados, por força do pacta sunt servanda. O pactuado deve ser
cumprido sob pena de ilicitude. 









                         Além
das convencionais, há normas imperativas de Direito Internacional. São
previstas na Convenção de Viena sobre
Direito dos Tratados. A racionalidade para os direitos humanos é clara: a
proteção da vida não pode depender de acordo. O marco foi Nuremberg, que rompeu
com o positivismo jurídico. Normas não constituem o Direito sem juízo de valor.
A dignidade humana tornou-se o princípio dos instrumentos de defesa dos
Direitos Humanos depois da barbárie nazista, a começar pela a Declaração de Universal
de 1948. Os  Princípios de Nuremberg, aprovados
pela ONU em 1950, estabeleceram que a lei
interna não isenta de responsabilidade o perpetrador. Sem o que tudo seria
inútil.









                         Crimes
contra a humanidade são imprescritíveis. Neles há na grande maioria das vezes
um enorme potencial de aniquilação de seres humanos (frequentemente o imenso
poder de um Estado e sua capacidade de destruição interna e externa). Há o
risco de extermínio de etnias, minorias, de certos valores culturais,
espirituais, sociais, expressões políticas e filosóficas. O que se protege é a
própria sobrevivência da humanidade em sua inteireza, complexidade e riqueza. O
poder de persecução não é relativizado.









                         No
plano da convencionalidade, temos que o Brasil ratificou a Convenção Interamericana
de Direitos Humanos em 1992 e reconheceu a competência da Corte Interamericana em
1998, com ressalva para fatos anteriores a esse ano.   O caso Araguaia
ficou a salvo da ressalva. A Corte delimitou sua competência aos desaparecidos
porque é crime continuado, persistindo seus efeitos após 1998.   









                         O
Estado brasileiro reconheceu os fatos perante a Corte.   A divergência foi jurídica. Entre os anos de
1972 e 1974, na região do Araguaia, agentes do Estado foram responsáveis pelo
desaparecimento forçado de 62 pessoas. O obstáculo à eventual punição dos
responsáveis é a Lei de Anistia. A Corte declarou que ela não pode produzir
efeitos jurídicos. Lembrou que é sem sentido manter a proscrição das violações
graves dos direitos humanos e aprovar medidas estatais que absolvam seus
perpetradores.









                Em
sentido absolutamente contrário ao afirmado por Cesar Peluso a Corte assinalou
que é obrigação das autoridades judiciais efetuar o controle de
convencionalidade como obrigação assumida pelo Estado brasileiro na ordem internacional.
Isto deve fazer o Ministro lembrar-se de que a ordem jurídica internacional não
é um adorno. O presidente do STF desinformou a sociedade e as instituições
políticas. O Estado brasileiro tem obrigações internacionais. Pleitear assento
definitivo no Conselho de Segurança da ONU e ignorar regras internacionais desmoraliza.









                Embora
a Corte tenha delimitado sua competência aos efeitos jurídicos pós-1998, em
voto apartado o juiz Caldas enfatizou aspectos do caráter imperativo das normas
de Direito Internacional dos Direitos Humanos independentemente da
convencionalidade. Lembrou que é irrelevante a não ratificação pelo Brasil da
Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a
Humanidade porque ela não é criadora do Direito, mas meramente consolidadora.
Desde Nuremberg reconhece-se a existência de um costume internacional que remonta
ao preâmbulo da Convenção de Haia de 1907. 
Assim, prosseguiu, há um Direito que transcende o Direito dos Tratados e
abarca o Direito Internacional em geral, inclusive o Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Nenhuma norma de direito interno pode  impedir que um Estado cumpra a obrigação de
punir os crimes de lesa-humanidade “por serem eles insuperáveis nas existências
de um indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e
nas transmissões por gerações de toda a humanidade.”









          A
pessoa é sujeito de direito acima do poder constituinte originário.
Isto há de deixar pálidos juristas formados no positivismo. Mas a idéia 
de  segurança jurídica é uma falácia do Direito contemporâneo. Milhares de
decisões conflitantes vêm à luz todos os dias nos tribunais e a República sobrevive.
A segurança jurídica reside em princípios a que os juízes estão submetidos
e a conflitos razoáveis sobre eles.  Aceitar
- como se fez em Nuremberg – que em casos de barbárie devem ser preservados
valores universais terá a vantagem de esclarecer quando a forma positiva
clássica do Estado contemporâneo ainda prevalece. Estabelecer os limites
de um conceito não o enfraquece, o fortalece. Dizer "isto pode" e
"isto não pode" sobre juízos racionais permite um acordo entre
sujeitos democráticos para colocar o Direito a serviço da sociedade, não o
contrário. Estão conceitos serão a base do Direito no 3o. milênio.


       Há uma opção. Não admitir
que o Estado mate e faça desaparecer pessoas e tudo seja ignorado por razões
políticas.  É uma escolha moral amparada
pelo Direito. Os que calam indiferentes que façam a escolha que não os envergonhe
perante gerações futuras.










quarta-feira, 23 de novembro de 2011

DA SÉRIE CRÔNICAS DO FORO - TODOS OS RÉUS DO MUNDO





    Naquele tempo o fórum criminal era no Palácio da Justiça,
praça da Sé. Ainda passaria pelo Viaduto D. Paulina até chegar à Barra Funda. Havia
24 Varas Criminais com seus cartórios espalhados pelo labirinto infernal  dos andares inferiores e porões  do Palácio da Justiça. Eu sabia ir ao cartório
da 4ª. Vara Criminal porque lá oficiava como procurador do Estado, mas jamais
consegui ir a outro cartório sem me perder por pelo menos uns 10 minutos. Noviço,
nutria uma discreta inveja dos colegas advogados que percorriam o Palácio com
passos firmes e resolutos, sabendo exatamente que escada, elevador ou  corredor 
levavam aos escaninhos onde ficavam o 9º. Ofício,  ou o 21º. Oficio, ou qualquer um deles.


       A sala de
audiências era tudo. Gabinete do juiz, do promotor e do procurador da
Assistência Judiciária. Três mesas de tamanhos diferentes. A grande do juiz no
centro, em patamar, de onde saía em T a mesa de audiências.  À esquerda a do promotor. Ao lado da
porta  a da PAJ. O tamanho das mesas,
pensava eu, correspondia à importância que o Estado dava a cada membro da  ilustre tríade. A minha, a da defesa,  era a menor, quase oculta se a porta
estivesse aberta.


       Julho era o mês
das férias forenses. Somente tramitavam processos de réus presos. Os colegas
procuradores saíam de férias, e quem ficava devia acumular duas Varas. A mim
coube a vizinha 5ª. Vara.


       E lá pela metade
de uma tarde tranquila daquele  julho fui
chamado para uma audiência da 5ª. Vara. Roubo. Vítima, juiz e promotor em seus
lugares na mesa de audiência, a escolta adentra com o réu.


         Mulato
de cabelo encarapelado.


       “Como foram os
fatos?”, pergunta o juiz à vítima.


“Os fatos, doutor, foram
assim,   assim e assim”.  A vítima descreve o roubo com segurança e
cheio de detalhes.


“Reconhece o réu como o autor dos
fatos?”.


“Sim, doutor, foi ele mesmo.
Certeza”.


Então deu-se o caso. Um policial
da escolta volta  e sussurra  no ouvido do juiz.  Retira o réu da sala e em alguns momentos  retorna. 
Com outro réu. A escolta trouxera o réu errado da carceragem.


O novo e verdadeiro réu do
processo era branco, de cabelos castanhos muito, muito claros, quase ruivos.
Mas reconheço, em nome da verdade, que eram encaracolados. Havia, enfim, algo
em comum entre eles: um era mulato de cabelo encarapelado, outro quase ruivo de
cabelo encaracolado.


Não, não estou exagerando para
melhorar a crônica. Não é licença poética. Os personagens hão de estar vivos e
poderiam perfeitamente confirmar.  A semelhança  entre os réus,  no mais, seria a mesma que há entre Neymar e
Kaká. Entre Obama e  Bush. Entre Chico
Buarque e Jair Rodrigues.  Penso que seja
o suficiente para descrever a situação.


A audiência recomeçou. Com o réu
devido.


“Reconhece o réu como autor dos
fatos?”, volta o juiz a perguntar.


A situação derivou perigosamente
para o absurdo. Entramos todos num sonho, num delírio, num cenário surrealista.
Evidentemente já não tinha mais sentido o reconhecimento. A vítima havia
acabado de reconhecer como autor do roubo uma pessoa completamente diferente. No
entanto, a situação surrealista era perfeitamente compatível com a
racionalidade processual. Não havia o que fazer.


“Sim, doutor, foi esse aí”,
responde a vítima, impávida, inabalável. Constrangimento nenhum. Como se
tivesse pedido ao garçom  um prato  e depois mudasse de ideia: “suspende o
bife  acebolado e me manda aí um bife a
cavalo”.


Todos os réus do
mundo seriam reconhecidos naquela audiência. Qualquer um que a carceragem mandasse e sentasse na
cadeira do réu cometera  aquele roubo.
Inclusive eu mesmo, o juiz ou o promotor. O segredo era a cadeira. Bastava
colocar alguém sentado lá.


Juiz e promotor não reagiram, o
que aumentou ainda mais a sensação de um sonho sem pé nem cabeça. A ausência de
reação deles  deu à cena uma atmosfera
de normalidade,  o que era a última coisa
que se podia dizer daquilo tudo.  No
entanto, não é todo dia que o foro proporciona algo assim a um advogado
criminal. Que mais eu podia querer? Enfim, quieto no meu canto,  com o 
caldo da acusação entornado,  não
havia muito o que fazer a não ser 
relaxar e aguardar divertido  o
desfecho que o juiz daria à audiência. Era novato, mas já tinha aprendido que
quando a situação favorece o réu o advogado fica quieto e não atrapalha.


O juiz encerrou o depoimento.


“O Ministério Público tem
reperguntas?”


“Não, Excelência”.  


“A Defesa?”


“Requeiro, Excelência,  conste que a vítima há 10 minutos reconheceu
outra pessoa como autor dos fatos”.


O que foi deferido e constou.


Já há muitos anos não faço
audiência nem contencioso. Mas até o tempo em que fiz, nunca mais entrei numa
sala de audiências sem lembrar da fé inabalável daquela vítima em sua memória.


Aliás, nunca mais ouvi algo sobre
pena de morte sem que imediatamente me viessem à mente  o
impávido  reconhecedor de réus  e a indiferença daquele  juiz e daquele promotor. Não tenho dúvida de que nada teria constado se eu não requeresse. Absolutamente nenhuma. Não posso provar, não deixei acontecer, mas me creiam: eu estava lá e vivi.



terça-feira, 15 de novembro de 2011

Michael Moore e Aleida Guevara


Michael Moore entrevista a médica Aleida Guevara, filha de Guevara. Ele pergunta em inglês, ela responde em espanhol. A idéia é que saúde não é negócio. Ela dá uma aula  sintética, precisa e clara de  humanidade.








sábado, 5 de novembro de 2011

Lula: O Humano e o Político





                                


  


                   Entre 1933,
advento do nazismo, e 1945, final da II Guerra, 35 milhões de pessoas foram
aniquiladas. Isto não se executa com poucos. É preciso muita gente que mate
cumprindo ordens.


                   Milgram,
psicólogo norte-americano, fez uma experiência em 1963 movido por esse fato.
Até que ponto as pessoas podem ir pelos mecanismos da autoridade e da  obediência? A experiência se tornou um
clássico da Psicologia.


                   Os sujeitos não
sabiam o real objetivo do experimento. Eram instruídos a aplicar choques, por
meio de  uma máquina, em uma pessoa que
respondia perguntas. A cada resposta errada a intensidade do choque devia
aumentar. O primeiro era de 15 volts, até o limite de 450 volts (classificado
pela máquina como “choque severo”), mas na verdade suficiente para matar uma
pessoa.


                   Os choques eram
fictícios.  Quem respondia as perguntas
apenas fingia. E à medida em que a intensidade do suposto  choque aumentava, simulava mais  dor e pedia aos gritos que parassem. O
experimentador ao lado do voluntário o instruía a continuar porque a
pessoa  havia concordado antes com a experiência.


                   O resultado foi
espantoso. 65 % das pessoas aplicaram  os choques até o limite  de 450 volts. O mecanismo  da obediência a uma frágil autoridade,  sem nenhum caráter coercitivo, por  mera
instrução verbal,   foi  para esses 65% determinante para infligir
dano grave, sofrimento e   o  risco de morte a outra pessoa. O relato da
experiência feito pelo próprio Milgram está aqui.


                   A conclusão é
que para a moralidade média – a moralidade da maioria das pessoas – a vida e o
bem-estar do outro não são valores fundamentais. Era assim em 1963 nos EUA e
não podemos deixar de supor que é assim aqui e agora.  Um suposto “dever”
de obediência, a ordem estabelecida, uma convicção política, uma confissão
religiosa (vide os fundamentalismos religiosos)  a propriedade, entre
tantas outras coisas, mostram-se prioritários em relação à vida. Muito
frequentemente o ressentimento, o preconceito e a intolerância – as emoções
mais vulgares – fazem desaparecer qualquer resquício do valor básico da
moralidade que é a vida do outro.


                   A inacreditável
campanha para Lula tratar-se no SUS (com 120 mil adesões no Facebook, segundo
dados do dia  4 de novembro) é um exemplo disso. 


                   No nosso caso há
ainda um componente histórico e social que, penso, tem a ver com o passado
escravocrata do qual nunca a sociedade brasileira se libertou de todo. Joaquim
Nabuco dizia que a escravidão moldou perversamente a sociedade brasileira.  A empregada doméstica, o serviçal,   o operário, 
qualquer um que esteja abaixo da classe média  na escala social,  são “quase-pessoas”. E como essa gente reage
quando uma “quase-pessoa”, operário, nordestino,  pau de arara, 
rompe os limites sociais para chegar à presidência da República e  ainda se torna  uma personalidade mundial? Estamos vendo.


                   
A euforia com a doença, disse Marcelo Semer em sua coluna do Terra, é pior do
que o câncer. Gilberto Dimenstein, na UOL, afirmou sentir um misto de vergonha
e enjôo pelos e-mails que recebeu. Maria Inês Nassif, na Carta Maior, foi
contundente e precisa: "a compulsão da elite brasileira em tentar
desqualificar Lula é quase patológica. E a compulsão por tentar aproveitar
todos os momentos, inclusive dos mais dramáticos do ponto de vista pessoal,
para fragilizá-lo, constrange quem tem um mínimo de bom senso".


                   Expressaram com
palavras fortes a repulsa moral ao episódio. Porque o  problema é
mesmo  essencialmente moral.


                     O fato de se tratar de uma doença terrível,
que mata e muitas vezes aniquila dolorosamente a pessoa antes da morte, não
disse nada a milhares de pessoas (milhões, se tomarmos as redes sociais como
uma certa amostragem da população). Foi apenas a deixa para que emergisse o
ódio de classe, o preconceito e o rancor submetendo implacavelmente o valor da
vida.


                   Pode-se fazer
uma ressalva. Muita gente terá  visto tudo como uma graça apenas e
aderido impensadamente. Provavelmente não estariam nos 65% de Milgram e não
estão eufóricos  de verdade com o tumor
de Lula. A indignação que a campanha suscitou – do que são exemplos os textos
contundentes de Semer, Dimenstein, Inês Nassif  e tantos outros – deve ser
para essas pessoas um sinal de que a brincadeira não era boa e a oportunidade para uma reflexão sobre ao lado de quem às vezes se acaba ficando. Tenho amigos no facebook, por exemplo,  que se enquadram nesta categoria e espero que entendam o que estou dizendo aqui.


                   Os outros – os
movidos pelo ódio e pelo ressentimento político -  não alcançam, por suas estruturas racionais,
o que os filósofos formalistas (formalistas porque para eles o que determina a moralidade
é o modo de raciocinar)   de filiação kantiana denominam de reversibilidade: devemos viver com  ações que seriam as mesmas se a nossa posição
fosse a do outro.É o  "ideal role taking".


                    Para uma conduta ser moral precisa passar,
pois,  pelo teste da reversibilidade. Os
sujeitos da experiência de Milgram não passaram. Não reverteram sua posição
para a de quem, mesmo concordando antes com a experiência,  desistisse por
não suportar a dor. No horizonte moral deles  o conceito de autoridade era
superior ao do  bem-estar do outro. 


                   Há no Brasil uma
elite que ainda pensa como os senhores de escravos. Como os que estão "embaixo" são
“quase-pessoas”, sequer são passíveis  de reversibilidade.


                  Enfim,
para os que ainda não perceberam o sentido do  episódio, recomenda-se o
teste da reversibilidade: como gostariam de ser tratados se tivessem um tumor
maligno? Seria uma boa ocasião para que o seu adversário político fizesse uma
revanche desconsiderando a sua dimensão humana e o seu drama pessoal? Basta usar a reversibilidade. É o suficiente.





             





                    


                  


                                           




                  


                  




terça-feira, 18 de outubro de 2011

INDIGNADOS E "INDIGNADOS"










“Muitas pessoas morreram em nome da honestidade, da responsabilidade e do resto do ‘pacote de virtudes’, mas eu não tenho nenhuma simpatia por elas. Quero dizer, como Platão, que as virtudes não são muitas, mas uma, e seu nome é justiça (...) justiça não é uma regra concreta de ação como honestidade (...) justiça (...) é um princípio moral. Por princípio moral, quero dizer que é um modo de escolher o que é universal, um modo de escolher o que podemos desejar que todas as pessoas adotem sempre em todas as situações” (Lawrence Kohlberg).







Kohlberg foi um psicólogo moral norte-americano que se dedicou a pesquisas que deram suporte empírico a determinadas concepções filosóficas, num espectro tão amplo que abrange Platão, Kant e Habermas, entre outros. Se este fosse um mundo razoável Kohlberg teria sido um dos homens mais célebres do século XX.



Nessa passagem Kohlberg chama a atenção para a inconsistência do  senso comum relacionado com o “pacote de virtudes”.



Como, por exemplo, usar palavras como “honestidade” sem vinculá-la a um princípio moral superior. Posso ser desonesto e roubar para salvar uma vida porque a vida vale mais do que a propriedade.



Por isso que Kohlberg diz que justiça não é um conjunto de regras concretas, materiais, mas um motivo para a ação, o princípio moral superior que deve reger nossa conduta.



Até hoje Platão choca seus leitores por ter expulsado os poetas da República. Ele o fez pelos mesmos motivos que estão por trás da afirmação de Kohlberg na epígrafe. Os poemas de Homero, por exemplo, eram os textos “canônicos” daquele tempo, o que se ensinava aos jovens, e por isso preocupavam tanto Platão. Os heróis de Homero possuíam um “pacote” de certas virtudes: coragem, audácia, obstinação, feitos heroicos e memoráveis. Mas também eram cruéis, irascíveis, vingativos e ressentidos. Em síntese, o que Platão queria dizer é que as virtudes daqueles heróis não estavam orientadas pelo princípio superior da moralidade que era a justiça. Por isso não eram virtudes.



Isto tudo me ocorre dizer a propósito dos nossos “indignados” moralistas que, nos últimos dias, em algumas cidades do país, saíram às ruas com a bandeira do combate à corrupção. Quem pode ser a favor da corrupção?



Estou disposto a sair às ruas contra políticos corruptos.



Mas também contra empresários corruptos.



Mas também contra os bancos e seus executivos regiamente pagos que levaram o mundo à crise que aí está, provocando desemprego, recessão e miséria e que agora são socorridos com o nosso dinheiro



Mas também contra a desigualdade social.



Mas também contra a fome e a miséria.



Mas também contra o racismo.



Mas também contra a intolerância.



Mas também contra o elitismo



Mas também contra a homofobia



Mas também contra o ódio de classe.



Mas também contra gente que odeia ver os excluídos, os “pobres”, invadindo seus espaços privilegiados.



Por isso não vou às ruas com os “indignados”, os com aspas, todos aqueles que estão interessados apenas num pacotinho de “virtudes” seletivo e conveniente, desviando os olhos das injustiças que fazem da vida de milhões de seres humanos o horror  que não  permite sonhar.



Vou às ruas com os indignados sem aspas que estão dizendo, no mundo todo, em Wall Street, em Barcelona e em Roma, que o modo social de vida que permite a 1 por cento apropriar-se da riqueza produzida por todos não pode mais ser suportado.



Mas não vou às ruas com a UDN.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A Comissão da Meia Verdade - Entrevista de José Damião de Lima Trindade


















José Damião de Lima Trindade, em entrevista ao Correio da Cidadania, denuncia o arranjo reacionário que ameaça o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos: “Tenho suspeitas sobre essa quase ‘unanimidade’ entre
reacionários de todos os tipos no Congresso em apoio ao projeto”, 
referindo-se também à base aliada do governo Lula, repleta de herdeiros e
amigos da ditadura. 





Segue o texto do Correio da Cidadania
































Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da
Redação   



Sexta, 07 de Outubro de 2011






Em vias de aprovação no
Congresso, o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, resultante de
iniciativas e do esforço de correntes políticas vitimadas pela ditadura
civil-militar de 1964-1985, sofreu incontáveis mutilações em relação a seus
objetivos iniciais. Entre as muitas aberrações, expandiu-se o período de
investigação dos crimes políticos, que terá como data inicial o ano de 1946,
quando o Brasil se encontrava sob regimes democraticamente eleitos, ainda que
com as devidas tensões e violências políticas registradas - mas nunca
assumidas como práticas oficiais do Estado.





O procurador do estado de São
Paulo e mestre em Direito Político e Econômico, José Damião de Lima Trindade,
concedeu longa e detalhada entrevista ao Correio
da Cidadania, na qual foi implacável em suas críticas a pontos substanciais
do projeto. Vencedor do prêmio de Direitos Humanos João Canuto, concedido em
2008 pela ONG carioca Humanos Direitos, Trindade faz uma provocação que muito
contribui para a compreensão do perverso caráter conciliatório que prevaleceu
na Comissão, conforme manda a tradição brasileira: “Tenho suspeitas sobre
essa quase ‘unanimidade’ entre reacionários de todos os tipos no Congresso em
apoio ao projeto” - referindo-se também à base aliada do governo Lula,
repleta de herdeiros e amigos da ditadura.





Ao longo de toda a entrevista,
o procurador, também autor do livro História Social dos Direitos Humanos,
desnuda as típicas facetas da classe dirigente nacional, sempre afeita às
“conciliações por cima”. “A Comissão deveria ser mais ampla e ser designada
após amplíssima consulta pública à sociedade, para garantir-se que nela não
tenham assento agentes duplos nem ‘reconciliadores’ pusilânimes”, critica. E
entre tantas ofensas aos preceitos dos Direitos Humanos e do Direito
Internacional, destaca-se o trecho que estabelece o sigilo de dados,
fatos e documentos que o Estado (inclusive o ditatorial) tenha, no
passado, catalogado como confidenciais. Um paradoxo gritante para um projeto
que se pretende (ou pretendia) não somente a elucidar, mas a publicizar a
‘verdade’. “Se todas as informações recebidas pela comissão não forem
tornadas públicas, estaremos diante de uma mera encenação ditada pela
conveniência de comandantes militares e policiais ou por figurões da política
que prestaram bons serviços à ditadura e pretendem manter seu
colaboracionismo trancado no armário”, sentencia.





Depreende-se com evidência, da
avaliação de Trindade, o frustrante engodo em que pode se transformar uma
comissão que foi criada sob aura de muita esperança para os vitimados pela
ditadura e é comemorada com grande ufanismo pelos ‘governistas’. O promotor
questiona pautas essenciais da Comissão, explicando as razões que deixam
clara sua intenção de praticar “jogo de cena para o público internacional”.
Basta, neste sentido, reavivar a memória para perceber que o governo Lula só
se mexeu após a condenação, a ser reiterada em 2012, na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Além de ter nomeado a maior parte dos
integrantes do STF, que no ano passado reinventaram o Direito Internacional
ao votarem pela legitimidade da auto-anistia concedida pelos militares em
1979.





O procurador evidencia ainda
uma Secretaria Nacional de Direitos Humanos (órgão criado e elevado a
ministério pelo PT) como um “time de segunda divisão”, cujos objetivos são
rotineiramente desprezados quando confrontados com os interesses políticos
dominantes e retrógrados. Trata-se nada mais nada menos do que “uma opção
política da Presidência da República”, completa, sem poupar nenhum dos dois
presidentes petistas, muito menos aquele egresso dos movimentos democráticos
e populares.





O caminho que até agora se
insinua como o mais provável para uma Comissão tão repleta de contorcionismos
já é visto com bastante pessimismo e desilusão por correntes esquerdistas,
progressistas, humanistas e democratas. A ‘Comissão do Brasil’ parece,
portanto, afastar-se inexoravelmente de processos semelhantes realizados com
muito maior grau de justiça e transparência em países como Argentina, Chile e
África do Sul. A não ser que haja uma retomada de manifestações por parte de
movimentos democráticos e progressistas e uma vigilância e pressão sobre os
poucos integrantes da Comissão, restará como uma miragem a verdadeira
reconciliação brasileira com os princípios básicos de respeito aos direitos
humanos e como uma farsa a tão repisada alusão à ‘respeitabilidade
internacional’ de nosso país. “Se não cumpre os tratados internacionais de
direitos humanos que subscreveu, e se não cumpre fielmente as decisões de
Cortes Internacionais de direitos humanos a que aderiu, como o país espera
ser respeitado internacionalmente?”, indaga Trindade





Confira abaixo a entrevista
completa.





Correio da Cidadania: O projeto
de lei que cria a Comissão da Verdade está em vias de aprovação definitiva no
Congresso, com a finalidade de investigar o passado político do país entre os
anos de 1946 e 1988. O que pensa da extensão do período de investigação para
além da ditadura, do número de pessoas estabelecido para os trabalhos, ao
lado do prazo proposto de dois anos para a duração da empreitada? Há alguma
chance de tal configuração confluir para uma Comissão da Verdade ‘de
verdade’?





Damião Trindade: O projeto de lei 7376/2010, encaminhado ao
Congresso pelo ex-presidente Lula em maio de 2010 e aprovado pela Câmara dos
Deputados com duas emendas aditivas em 21 de setembro último, cria na Casa
Civil uma Comissão Nacional da Verdade, composta de sete membros a
serem designados pela Presidente da República e auxiliados por catorze
assessores, com o mandato de dois anos, para investigar e apresentar um
relatório sobre as graves violações aos direitos humanos cometidas entre
18/11/1946 e 05/10/1988. O projeto tramita agora no Senado sob o número
88/2011.





O número de componentes dessa Comissão
parece mesmo insuficiente, assim como sua assessoria parece diminuta, dada a
vastidão e complexidade do trabalho que está à sua espera, o período
histórico muito lato a ser examinado – quase 42 anos – e o mandato de apenas
dois anos de duração para os integrantes da Comissão. Mas a experiência
internacional das Comissões da Verdade criadas em quase cinqüenta países ao
final de ditaduras em todo o planeta nos ensina que, além dessas limitações
reais, há também outros fatores – pelo menos mais três deles – que podem até
se tornar mais importantes.





Correio da Cidadania: Quais são
esses três outros fatores?





Damião Trindade: Em primeiro lugar, importa decisivamente a composição
dessas comissões, ou seja, a qualificação dos seus integrantes para
investigar as violações, sua familiaridade com o tema e com o período
histórico abrangido e, sobretudo, a completa independência política, a
determinação e a intrepidez moral dos seus componentes. A Comisión Nacional
sobre La Desaparición de Personas
, na Argentina, teve apenas 11
integrantes e trabalhou durante apenas nove meses, investigando os sete anos
da ditadura militar argentina, mas seus componentes eram inequivocamente
comprometidos com a defesa dos direitos humanos e ela foi presidida por
ninguém menos do que o escritor Ernesto Sábato. Já a Comisión Nacional de
Verdad y Reconciliación
, constituída no Chile por decreto do Presidente
Patricio Ailwin para investigar os 17 anos da ditadura de Pinochet, teve 8
membros e 60 assessores, mas quatro dos membros nomeados eram antigos
apoiadores da ditadura, que tentaram de tudo para emperrar os trabalhos – só
não o conseguiram porque era monstruoso o volume e a profundidade das
atrocidades encontradas. Na África do Sul, após vários meses de audiências
públicas, foi constituída uma Comissão da Verdade e Reconciliação com
16 integrantes, sob a presidência do arcebispo Desmond Tutu, com o suporte de
300 assessores e quatro escritórios regionais distribuídos pelo país, para
investigar, durante dois anos e meio, as violações cometidas ao longo dos 45
anos de apartheid.





No Brasil, ainda não sabemos
se, antes de designar os membros da comissão, a Presidenta da República
estará disposta a ser permeável a consultas públicas democráticas. Se a
comissão sair apenas da algibeira do Palácio do Planalto, em meio a pressões
da “base aliada” conservadora e a recados remetidos por generais, tudo poderá
estar comprometido logo de partida.





Outro fator relevante é que o marco
legal
sob o qual trabalha a comissão faz toda a diferença. Na Argentina,
foi revogada a anistia que a ditadura se auto-concedeu, e as informações e
testemunhos recolhidos pela Comisión foram fundamentais nos
julgamentos dos generais. No Chile, mesmo com idêntica lei de auto-anistia, o
Poder Judiciário encontrou os meios jurídicos para levar às barras dos
tribunais os militares assassinos e torturadores. No Brasil, estamos em
situação pior: o Supremo Tribunal Federal – cuja maioria de Ministros foi indicada
pelo Presidente Lula – já lavou as mãos quanto à infame auto-anistia da
ditadura, mesmo após o Brasil haver sido condenado na Corte Interamericana de
Direitos Humanos, que reiteradamente julga como inválidas tais leis de
auto-anistias das ditaduras.





Por fim, se faltar autonomia
financeira
à comissão, ela pode estar condenada a caminhar o tempo todo
com o pires na mão. O exemplo tragicômico a esse respeito foi a Comisión
Nacional de La Verdad e y la Justicia
, do Haiti: após trabalhar sob
inacreditável penúria financeira durante 10 meses, seu relatório final, de
fevereiro de 1996, teve cópias distribuídas para organizações de defesa dos
direitos humanos – assim mesmo, após todo um ano de pressões. Nunca foi
efetivamente publicado, pois o Ministro da Justiça do país à época “explicou”
que o preço da publicação era “proibitivo”. O resultado foi que o relatório
passou praticamente despercebido pela população e somente algumas de suas
recomendações foram implementadas – anos depois, e somente por conta da pressão
internacional.





Correio da Cidadania: O que o
senhor pensa do fato de tal comissão poder vir a ter a participação de
militares?





Damião Trindade: O artigo 7º, parágrafos primeiro e segundo, do
projeto em tramitação, admite expressamente que servidores públicos civis ou
militares, de qualquer das esferas de Poder, poderão ser designados para
integrar a Comissão Nacional da Verdade – o que deixa abertas as portas para
o ingresso na Comissão, por exemplo, de um oficial militar ou de um policial,
coisas assim. Por outro lado, o artigo 2º veda a participação na Comissão
daqueles que estejam no exercício de cargos públicos em comissão ou função de
confiança, ou daqueles que “não tenham condições de atuar com imparcialidade
no exercício das competências da Comissão”. Ou seja: sopesando os dois tipos
de dispositivos, se a Presidenta da República quiser nomear para a Comissão
um militar ou um policial, bastará escolher entre os que não estejam ocupando
cargo de comando ou de assessoria, que não hajam mantido laços muito óbvios
de colaboração com a ditadura, nem defendam em público posições de
extrema-direita...





Todavia, se tivermos em mente,
tanto o forte espírito de corpo predominante entre militares e policiais,
como a ideologia autoritária que está longe de haver se dissipado nessas
corporações, o que poderíamos esperar de uma nomeação desse tipo? Mas,
perguntemos: não haveria militares e policiais verdadeiramente democratas,
convertidamente interessados em abrir o ventre imundo da ditadura, mesmo à
custa de granjear antipatia entre seus pares, mesmo sob o risco de sofrer
depois retaliações hierárquicas? Eu desejo sinceramente que haja. Mas ignoro
se e quais foram os “entendimentos” previamente estabelecidos para que os
altos comandos militares não “vetassem” o encaminhamento do projeto ao
Congresso.





E tenho suspeitas sobre essa
quase “unanimidade” entre reacionários de todos os tipos no Congresso em
apoio ao projeto. Estará a Presidente da República disposta a correr o risco
de, logo de partida, desmoralizar a Comissão perante a opinião pública com
uma designação indefensável?





Correio da Cidadania: Como o
senhor avalia a possibilidade de, aparentemente, o projeto de Comissão da
Verdade admitir que sejam investigados militantes de lado a lado, torturados
e torturadores, tal como pediram os setores mais conservadores?





Damião Trindade: Quanto ao risco de a Comissão Nacional da
Verdade vir vergar-se a pressões espúrias de saudosistas da ditadura e
perder-se numa nova caça às bruxas contra os que combateram aquela ditadura,
penso que isso dependerá da envergadura moral dos seus integrantes, de sua
convicção democrática, de sua clareza histórica, de sua hombridade pessoal,
de sua independência e coragem. Equiparar os golpistas de 1964 aos que
resistiram ao golpe seria o mesmo que equiparar o exército de ocupação
nazista aos guerrilheiros franceses que heroicamente o enfrentaram.





Ademais, as atividades dos
combatentes contra a ditadura já foram sobejamente “reveladas” – foram
extorquidas sob tortura, muitas vezes seguida de morte. O que ainda faz falta
é revirar e revelar as “atividades” dos agentes da ditadura, as variadas e
sempre dilacerantes práticas de tortura e de crimes hediondos que cometeram
contra milhares de presos políticos, incluindo estupros contra meninas
capturadas, execuções, “desaparecimentos”, ocultação de cadáveres etc..





O projeto de lei em trâmite é
muito aberto quanto ao objeto de trabalho da futura comissão, havendo, sim, o
risco – se os integrantes da comissão forem tíbios ou desfibradamente
“reconciliadores” – de ela descambar para a investigação de supostas
“violações” assacadas contra os que resistiram à ditadura, como querem as
forças mais reacionárias, só interessadas em embaralhar o assunto, como, de
fato, aconteceu em boa medida com a comissão chilena, e em alguma medida com
a comissão sul-africana.





Penso que só a pressão da
sociedade, uma pressão organizada e insistente, com a multiplicação de
seminários e debates por todo o país, com manifestações coletivas ao menos em
todas as capitais, com o engajamento dos movimentos estudantil e sindical,
dos artistas e intelectuais etc., poderá suscitar um sentimento de indignação
e de exigência capaz de neutralizar as pressões das forças da escuridão que,
com toda certeza, trabalham no sentido de tornar a Comissão Nacional da
Verdade em não mais que uma encenação para a platéia internacional.





Correio da Cidadania: E quanto
ao sigilo de dados estabelecido no projeto de lei que criou a Comissão, não
se trata de um paradoxo gritante para um projeto que se pretende (ou
pretendia) não somente a elucidar, mas a publicizar a ‘verdade’?





Damião Trindade: Será crucial a mais completa transparência
e publicidade dos trabalhos da comissão. Todavia, há dispositivos, no
projeto em trâmite no Senado, que admitem a realização sigilosa de atividades
da comissão (artigo 5º) e que até obrigam a comissão a manter o sigilo dos
documentos e informações que o Estado, de antemão, houver classificado como
sigilosos (artigo 4º, parágrafo segundo). Isso configura, evidentemente, uma
aberração risível. Se o propósito for revelar a verdade sobre as violações de
direitos humanos daquele período, como respeitar “sigilos” previamente
estabelecidos?





A comissão brasileira se
prestará ao papel de censurar informações em seu relatório final ou,
quiçá, de produzir um relatório “misto”, em que uma parte poderá ser
franqueada ao público e outra parte permanecerá sob chaves? Se todas
as informações recebidas pela comissão não forem tornadas públicas, estaremos
diante de uma mera encenação ditada pela conveniência de comandantes
militares e policiais ou por figurões da política que prestaram bons serviços
à ditadura e pretendem manter seu colaboracionismo trancado no armário.





Na África do Sul, as sessões da
Comissão eram transmitidas ao vivo pela rádio estatal durante quatro horas
por dias, todos os dias. Na Argentina, o relatório final da Comisión
foi publicado na íntegra, sem qualquer censura, e após cerca de 30
reimpressões, já soma quase 500 mil exemplares vendidos.





Correio da Cidadania: No que
diz respeito à ausência de poder de punição da Comissão, que poderá no máximo
indicar caminhos a serem seguidos pelo Estado brasileiro, trata-se de
critério aceitável mediante os preceitos judiciais brasileiros?





Damião Trindade: A Comissão Nacional da Verdade, como todas as
comissões congêneres dos demais países, não é um órgão jurisdicional,
punitivo. Sua competência é apurar a verdade, toda a verdade, e entregá-la
por completo, sem censura de qualquer espécie, à sociedade brasileira e ao
Estado. A jurisdição constitucional para processar e punir pertence ao Poder
Judiciário.





O problema é que, como já
apontei, o Poder Judiciário brasileiro, por meio de sua Corte mais alta
(insisto: cuja maioria de membros foi indicada pelo Presidente Lula), já
decidiu que os crimes cometidos pelos agentes da ditadura estão cobertos pela
auto-anistia que a ditadura concedeu a si mesma, malgrado toda a
jurisprudência em sentido contrário emanada das Cortes internacionais de
direitos humanos.





Em 2012, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos voltará a examinar a conduta do Estado brasileiro quanto
ao cumprimento da sentença condenatória que exigiu a punição dos crimes da
ditadura. E, mais uma vez, o Brasil será chamado às suas responsabilidades,
sob pena de colocar-se como um Estado que prefere ficar à margem da
comunidade internacional.





Correio da Cidadania: Como o
senhor posicionaria a presidenta Dilma Rousseff nesse processo, especialmente
à luz do fato de ter sido uma vítima notória da ditadura e de seu discurso de
início de mandato, com forte ênfase na não tolerância de nenhuma espécie de
violação aos direitos humanos?





Damião Trindade: Em política, não se pode avaliar uma pessoa
apenas por seu passado e, muito menos, por seus discursos. Conta mais a sua
prática, as opções que adota a cada circunstância. Fiquemos atentos à conduta
que ela adotará e logo teremos a resposta a essa pergunta.





Correio da Cidadania: Acredita
que, mesmo enfraquecida e ao gosto dos militares e herdeiros da ditadura
(políticos, empresários e órgãos de mídia), como se viu na repercussão do
assunto, a Comissão da Verdade terá alguma serventia à elucidação da história
do país e ao estancamento das práticas autoritárias que ainda persistem em
nosso sistema penal e judiciário? Em suma, ela pode colaborar minimamente
para uma transição democrática ainda não concluída por aqui?





Damião Trindade: A resposta a essa indagação depende da
conjugação de vários fatores políticos que ainda estão em desdobramento.
Portanto, ainda não é possível oferecermos uma resposta cabal e segura.
Depende das modificações que o Senado vier a introduzir no projeto de lei – e
devemos temê-las, pois o Senado está sob controle muito maior das classes dominantes
conservadoras do que a Câmara dos Deputados. Se assim for, nenhum acerto de
contas farão em relação ao nosso passado. Depende também dos eventuais vetos
que a Presidente da República estiver disposta a contrapor ao texto final.
Depende, ainda, do conteúdo do decreto presidencial que vier a regulamentar a
lei – ele poderá facilitar ou dificultar os trabalhos da comissão. Também
depende muito, muito mesmo, da composição que a Comissão Nacional da
Verdade vier a ter – o que, por sua vez, depende da pressão que as forças
democráticas e progressistas forem capazes de mobilizar na sociedade.





E depende, por fim, de outro
fator ainda mais imponderável: um processo de busca da verdade, uma vez
deflagrado, pode acabar escapando do controle dos seus planejadores, pode
acabar transbordando de limites previamente “combinados”
. Um fato puxa
outro, um depoimento acaba incriminando quem deveria ficar acobertado, e
assim por diante. A caixa de Pandora pode, até inadvertidamente, ser
destampada. Se a Comissão for idônea e politicamente independente, e
se de fato desfrutar de independência operacional, poderá colocar o dedo em
feridas sérias e acabar jogando luzes sobre o que “deveria” permanecer nas
sombras, malgrado seu número pequeno de membros e de assessores, e apesar do
prazo exíguo para as investigações.





Poderá, por exemplo, resolver
focar seus trabalhos essencialmente no período da ditadura militar, entre
1964 e 1985, o que já reduziria para 21 anos o período investigado, até pela
impossibilidade de investigar adequadamente todos os 42 anos previstos no
projeto de lei. Ou, ao contrário, se seus membros forem politicamente
pusilânimes, empenhados muito mais em “reconciliar” do que em desnudar
verdades, poderão propositalmente diluir a investigação pelos 42 anos e
esquivar-se de investigar fatos e denúncias que, eventualmente, possam vir a
comprometer militares ou figurões da República. Os rumos da Comissão também
poderão ser expressivamente influenciados pelo jogo de pressões e
contrapressões que ela seguramente receberá durante todo o tempo de
funcionamento.





Estarão as forças do progresso
social e político amadurecidas para se unir, somar e coordenar esforços,
ocupar espaços e exercer uma mobilização aguerrida e uma cobrança de
resultados sem qualquer comiseração de natureza partidária? Porque as forças
das sombras, dos armários trancados, dos arquivos escondidos, e dos crimes
ignominiosos que ocultam, essas forças conhecem muito bem quais são os seus
interesses, e reconhecem muito bem os momentos em que devem se unir e se
acobertar mutuamente.





Correio da Cidadania: O senhor
tem uma opinião já formada sobre a atual Secretaria Nacional dos Direitos
Humanos (SNDH), ligada diretamente à presidência? Como o senhor a avalia, à
luz da atuação do ministro anterior, Paulo Vannuchi, o primeiro ocupante
dessa secretaria, com status ministerial, criada no governo Lula?





Damião Trindade: Passa a impressão de que a Secretaria Nacional
dos Direitos Humanos, não importa o status legal de que desfrute,
continua sendo um órgão de segundo escalão, um time relegado à segunda
divisão, que não tem força ou respeitabilidade para, em momentos cruciais,
convencer o governo federal de suas posições.





Bastam alguns exemplos. O
Congresso Nacional editou a lei 10.559/02 que, dentre outras matérias,
obrigou o Estado a indenizar as vítimas ou seus familiares pelos crimes
cometidos por agentes públicos durante a ditadura. Em decorrência, o Estado
vem indenizando os sobreviventes e as famílias dos mortos/desaparecidos, isto
é, vem reconhecendo, nesses casos bem documentados, que o Estado
tolerou/promoveu condutas criminosas de seus agentes, condutas essas que
estão agora gerando efeitos financeiros contra o próprio Estado. Esse
dinheiro das indenizações saiu e continua a sair do erário. A rigor, a União
estaria juridicamente obrigada, ela mesma, a ingressar diretamente com ações
judiciais contra os agentes criminosos identificados, para compeli-los a
repor ao erário esses valores que, por culpa deles, o erário está sendo
obrigado a desembolsar. Esse tipo de procedimento ocorre todos os dias,
em todas as esferas da Administração Pública, contra servidores que causam
prejuízos à Administração.





Por que o governo federal não
aplicou o mesmo critério no caso das indenizações políticas? Por que a própria
União não processou os agentes da ditadura para que ressarcissem ao erário as
despesas com as indenizações pagas? Pois foi necessário o Ministério Público
Federal tomar essa iniciativa, na defesa do patrimônio público federal. O MP
federal ajuizou, em 2008, uma ação contra dois ex-comandantes do DOI-CODI de
São Paulo, para responsabilizá-los financeiramente (não penalmente)
por cerca de 60 indenizações pagas pela União relativas a
mortos/desaparecidos naquele centro de horrores durante o período em que
aqueles dois militares o dirigiram. Ou seja: a ação foi em defesa do
patrimônio da União. Os réus são os dois militares, não a União. Chamada a
pronunciar-se no processo, a União, representada por sua Advocacia Geral,
deveria ter endossado a iniciativa do MP. Mas, para assombro e
estarrecimento dos próprios meios jurídicos do país, a AGU... defendeu
os réus! Colocou-se contra o próprio interesse patrimonial da União! Na
ocasião, o Secretário Nacional de Direitos Humanos pronunciou-se em público
no sentido de que o Presidente da República deveria determinar à AGU a
mudança de posição. E ele tinha inteira base jurídica e processual para
defender isso. Mas o Presidente da República não se moveu e a AGU manteve sua
posição horrível.





Mais recentemente, houve o
vergonhoso episódio das amputações no III Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH). Bastou os comandantes militares torcerem o nariz, a ala
conservadora da Igreja protestar, o agronegócio reclamar e os monopólios da
grande mídia denunciarem ameaças à “liberdade de imprensa”, e o III PNDH,
mesmo após debatido e votado democraticamente por milhares de pessoas e de
entidades reunidas em conferências por todo o país, foi unilateralmente
amputado pelo Presidente Lula de pontos importantíssimos. A Secretaria
Nacional dos Direitos Humanos, que era contra essas amputações, foi novamente
derrotada.





Por fim, os arquivos militares
secretos sobre o período da ditadura, cuja abertura a SNDH sempre defendeu,
continuam lacrados e escondidos. Aliás, quanto a isso, como a futura Comissão
Nacional da Verdade saberá quais informações deverá requisitar às
Forças Armadas, uma vez que não saberá quais informações aqueles
arquivos contêm? Como a Comissão poderá requisitar informações que, estando
classificadas como sigilosas, ela não faz a menor idéia do que tratam? Na
realidade, a coisa está toda invertida, pois, primeiramente, os arquivos
deveriam ser abertos. Mas, em se tratando de assuntos assim “sensíveis”, a
SNDH não consegue fazer valer suas posições. É um órgão que vem sendo mantido
em posição de fraqueza – o que, é claro, configura, nada mais, nada menos, do
que uma opção política da Presidência da República.





Correio da Cidadania: O senhor
fez referências a alguns processos de transição democrática mundo afora, os quais,
em analogia com nosso país, parecem deixá-lo em uma categoria de muito maior
pusilanimidade. Como deve ficar a imagem do Brasil no exterior?





Damião Trindade: A pergunta já embute uma resposta óbvia. Se não
cumpre os tratados internacionais de direitos humanos que subscreveu, e se
não cumpre fielmente as decisões de Cortes Internacionais de direitos humanos
a que aderiu, como o país espera ser respeitado internacionalmente? Se esse
processo de vacilações de passos em falso e de contorcionismos, para não
desagradar comandos militares e figurões da política e da alta finança, não
for revertido, esse constrangimento internacional do Brasil só crescerá.





O que temia o Presidente Lula,
o que tem a temer a Presidenta Dilma? Um novo golpe de Estado? Não há o menor
ambiente político ou social para isso. Quando está em jogo completar o
processo de transição democrática, o medo, ainda mais o medo deslocado da
realidade, é o pior dos conselheiros. A menos que não se trate apenas de
medo, mas da reincidência da atávica vocação de nossas classes dominantes e
de nossos dirigentes políticos de sempre conciliar pelo alto, de colocar
panos quentes nas questões “delicadas”, de modo a não perturbar a
continuidade da dominação.





Correio da Cidadania:
Consideradas as atuais circunstâncias históricas e políticas do país, como
deveria ser, na opinião do senhor, uma verdadeira Comissão para elucidar e
tomar providências a respeito dos chamados crimes contra a humanidade,
imprescritíveis e impassíveis de auto-anistias, nos moldes dos preceitos
consagrados pelo direito internacional?





Damião Trindade: A Comissão deveria ser mais ampla e ser
designada após amplíssima consulta pública à sociedade, para garantir-se que
nela não tenham assento agentes duplos nem “reconciliadores” pusilânimes,
capazes de torcer ou de conter as investigações por medo de desagradar aos
poderosos de ontem e de hoje. A comissão deveria contar com ao menos o dobro
ou o triplo de assessores e com retaguarda financeira e administrativa
assegurada na própria lei. Também deveria ter a sua missão definida mais
claramente na lei: investigar e tornar públicas as violações de direitos
humanos cometidos por agentes do Estado com farda e sem farda, e por seus
comparsas civis, durante os 21 anos da ditadura militar, com todos os
arquivos militares e policiais daquele período previamente abertos à
sociedade.





Todos os trabalhos da Comissão
deveriam ser transparentes e públicos, amplamente divulgados, sem qualquer
possibilidade de sessões secretas ou de cumplicidade com sigilo documental.
E, para dar conseqüência às revelações a que a Comissão chegasse, deveríamos
poder contar com um Poder Judiciário disposto a cumprir sua responsabilidade
de oferecer aos criminosos da ditadura que forem identificados exatamente o que
eles negaram às suas vítimas: acusações penais justas, isto é, não baseadas
em “provas” extorquidas sob tortura, com garantia de amplo direito de defesa,
o devido processo legal assegurado e, por fim, sentenças judiciais com
direito a todos os recursos previstos na lei processual.





Enquanto isso não acontecer,
estaremos “fazendo de conta” que aqueles crimes também não aconteceram, ou
que, mesmo após revelados, devem ser “esquecidos” – o que, além de ser por si
mesmo abominável, configura um estímulo poderoso, e renovado todos os dias,
para que as detenções extrajudiciais, a tortura dos presos pobres e seu
assassinato se reproduzam interminavelmente nos dias de hoje. A impunidade
dos criminosos da ditadura funciona como uma espécie de “garantia” de impunidade
para a violência policial de hoje. Isso já foi demonstrado até em trabalhos
acadêmicos.





Correio da Cidadania:
Finalmente, por que motivos, políticos ou outros, o governo não seguiu neste
rumo, em sua visão? Acredita que a presidente Dilma ainda possa retomá-lo?





Damião Trindade: O atual projeto de lei sobre a Comissão Nacional
da Verdade é fruto da correlação de forças políticas estabelecida no interior
do governo Lula e da sua “base aliada” no Congresso, que incorporou, inclusive,
setores reacionários da sociedade e antigos colaboradores e simpatizantes da
ditadura. E, talvez mais importante que isso, o projeto é fruto do débil
grau de convencimento daquele e deste governo em relação à necessidade
histórica de desvendar-se todos os crimes e criminosos da ditadura. Fosse
esse convencimento maior, e o governo Lula teria adotado essa e outras
medidas arejantes já no início do seu governo, e não apenas no último ano do
seu segundo mandato presidencial. Fosse esse convencimento maior, e a atual
Presidenta já haveria retirado o projeto do Congresso para consultas à
sociedade, visando ao seu aperfeiçoamento. Fosse esse convencimento maior, e
Lula ou Dilma já teriam determinado a completa abertura dos arquivos
públicos referentes à ditadura – como, aliás, fizeram há vinte anos os
governos de São Paulo, Rio Grande do Sul e de outros estados em relação aos
arquivos dos respectivos DOPS.





Na Argentina, apenas uma semana
após tomar posse, o Presidente Raúl Alfonsín, que estava longe de ser de
esquerda, já criou, por decreto mesmo, a Comisión Nacional sobre La
Desaparición de Personas
. No Chile, o Presidente Patricio Ailwin, que
também nunca foi de esquerda, só demorou um mês e meio após sua posse para
também criar sua Comisión Nacional de Verdad. Na África do Sul, o
Presidente Nelson Mandela demorou pouco mais de um ano para criar a sua
Comissão. Sob esse ponto de vista, Lula ficou muito aquém desses líderes que
eram meramente liberais. Faltaram ao governo Lula convicção e vontade política
para adotar rapidamente uma atitude que, além de ser uma aspiração de todas
as forças democráticas, além de ser uma necessidade histórica para superarmos
realmente os resquícios da ditadura, era também uma promessa eleitoral. Abrir
todos os arquivos, esclarecer e tornar públicos os crimes da ditadura e punir
judicialmente os seus criminosos são pontos que sempre constaram de todos os
programas do partido capitaneado por Lula.





Vê-se, como sempre, que se
conhece melhor o homem – e seu partido – quando chegam ao poder. Assim, não
há como apagar a impressão de que o governo Lula só se animou a remeter esse
projeto ao Congresso, mesmo com as limitações apontadas, quando ficou
evidente que o Brasil estava na iminência de ser condenado na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o que de fato aconteceu meses depois, no
final de 2010. Quanto à Presidente Dilma, também não demorará para sabermos
se, nessa questão, haverá ou não convergência entre discurso e prática.





Valéria Nader, economista, é
editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.



Última atualização em Terça, 11 de Outubro de
2011