Aldo Pereira, ex-editorialista da Folha de São Paulo, publica no Tendências e Debates (edição de 14 de abril da FSP) texto com o título "Crime e Castigo". Um primor de conservadorismo e de apoio conceitual à mentalidade repressiva no campo da segurança pública. Um texto insidioso e perigoso. Reproduzo algumas passagens (em negrito) e comento.
"Continua válido, embora hipotético, o argumento de que punição exemplar inibe disposição criminosa em gente propensa a delinquir."
O apoio ao ao endurecimento do sistema penal e ao Estado repressivo está no uso sutil, melífluo (o "hipotético") do adjetivo “exemplar”. Não se trata de punir apenas, o de que precisamos é de punição “exemplar”. O adjetivo vem jogado num chavão e por isso quase passa despercebido, mas o sentido que interessa transmitir vai mesmo embutido no "exemplar". Por que não apenas punir? Por que a punição tem que ser "exemplar"? O que é, afinal de contas, "exemplar" nesse campo? Logo veremos.
"Mas impor sofrimento a delinquentes em nada satisfaz o interesse social; desconsiderada a vingança, interessa à sociedade apenas que os crimes não ocorram."
Somos forçados pelo texto a concluir que se houvesse "interesse social" nada haveria contra impor sofrimentos graves (exemplares...) a um ser humano. O dito “interesse social” (outra ideia feita que tem um forte efeito simbólico e pode justificar praticamente tudo) é que determina se um ser humano sofre ou não sofre. Nem pensar em discutir valores, princípios ou preceitos éticos válidos em si mesmo.
"Na prevenção de reincidência pode não haver ainda alternativa plausível para, por exemplo, reclusão e concomitantes medidas disciplinares; para isolamento e vigilância no contato com visitas e advogados; para rastreamento por emprego de tornozeleira eletrônica. Mas, em tais casos, o decorrente sofrimento do réu é meramente incidental, não intencional."
Então chegamos ao ponto crucial: endurecer. Isolamento, uma das formas mais cruéis de tratar um ser humano, tornozeleira eletrônica, como se homens fossem equivalentes a animais com coleiras, e vigilância sobre os advogados. Esta uma ideia regressiva, pré-iluminista, mas muito usada em regimes totalitários que o articulista certamente detesta, mas pode admitir seus métodos quando lhe interessa. E no final da frase temos os conceitos de sofrimento incidental e intencional. Se impor tais tipos de sofrimento não for uma espécie de perversão da alma, intencional, então não há grande problema. Desnecessário dizer que a frase cabe como justificativa para violação dos direitos humanos básicos em qualquer regime autoritário ou fascista. Nesta ordem de coisas, fácil montar um argumento para justificar qualquer barbárie cometida pelo Estado. É incidental e ponto final. Mas o melhor ainda está por vir.
"Ponto controverso? Penalistas que se preparem para outros a caminho. Baseados no conhecimento atual da genética e da neurociência, filósofos naturalistas argumentam que a vida de cada pessoa é jogo necessariamente disputado com a mão de cartas recebidas do destino: o legado genético, social e financeiro dos pais, afeto e exemplos recebidos deles, os acertos e erros cometidos em nossa formação. E, afora a decisiva influência parental, todas as oportunidades fortuitas, ao longo da existência, de amizades e inimizades, de amores e desamores, de sanidade e doença, de lucros e perdas. Os naturalistas não propõem daí que sejamos todos inimputáveis. Ainda assim, sustentam que o livre arbítrio, fundamento da responsabilidade ética e penal postulado há séculos por Epicuro (341-270 a.C.), por Lucrécio (circa 96-circa 55 a.C.) e por são Tomás de Aquino (1224-1274), é uma ilusão. Qual o seu veredito?"
O articulista põe em dúvida a liberdade e joga com a tese do determinismo. Em termos gerais, o seu conceito é lombrosiano: há pessoas que estão de algum modo determinadas ao crime. Se pudéssemos identificá-las (quem sabe com o avanço da neurociência?) poderíamos ter uma sociedade melhor. Saberíamos quem pertence, mas está disfarçado entre nós, a uma sub-espécie, uma raça inferior, algo intermediário entre as bestas e os seres humanos “normais”. Já conhecemos finais de filmes com esse enredo de horror.
No plano filosófico a coisa toda é ingênua. Filósofos especulam sobre a liberdade humana como ideia a priori porque sabem que a liberdade não se demonstra no plano da experiência. Aceita-se como axioma ou não (como na Matemática, axioma é um ponto de partida que não se questiona, por definição; se questionado, não é axiomático e não é ponto de partida). Neste momento estou diante de um computador escrevendo. Poderia estar, digamos, correndo no parque Ibirapuera. Não há como saber se houve uma escolha. Fatores de alguma natureza determinaram inexoravelmente esse fato? A possibilidade de fazer algo diverso neste momento é real ou ilusória? Uma resposta não se demonstra. Assumo como axioma que poderia estar fazendo outra coisa e minha vida mental baseia-se nessa conclusão. Testes de neurocientistas jamais poderão demonstrar que, postas as mesmas condições, indivíduos terão inexoravelmente a mesma conduta e mostrarão os mesmos resultados neurológicos, psíquicos, de conduta, etc. Poderão demonstrar que isto ocorre com muita frequência, ou que ocorre toda vez que fazem a experiência, mas jamais que ocorre sempre. Não podem provar cientificamente a existência da liberdade humana ou o determinismo.
Embora nem todo determinismo seja fascista, todo fascista tem na base de seu pensamento uma concepção determinista. Judeus são inferiores e maléficos porque estão racialmente determinados. Ciganos não se adaptam à civilização porque são inferiores desde sempre. Homossexuais são naturalmente pervertidos. Negros são inferiores. Pessoas sem cultura ou educação formal ficaram determinadas pela sua origem e formação a serem inferiores. E há pessoas que estão determinadas para a vida criminosa.
Sendo a liberdade indemonstrável na experiência, a civilização se funda na ideia de liberdade humana como axioma. Que aceitamos (mesmo sendo indemonstrável) ou perdemos o sentido da vida social. Todos os nossos juízos sobre responsabilidade jurídica, ética, política, social, etc., derivam da aceitação desse axioma. Sem ele, reduzimos a existência a uma forma bruta de natureza. A experiência humana poderia ser apreciada como estética, bela ou feia, agradável ou desagradável, mas a responsabilização de indivíduos perderia sua racionalidade. Teríamos que absolver Hitler por falta de livre arbítrio. Não há meio termo possível. Não há terceira via. Não é possível ter responsabilidade moral ou jurídica sem a pressuposição do livre arbítrio.
Os conservadores não rejeitam a ideia de liberdade para questionar filosoficamente a responsabilização moral ou jurídica. Deixam de lado ilogicamente essa consequência. O determinismo deles aparece para estabelecer diferenças. Há os que estão determinados a serem “normais”. Há os que estão determinados a serem “anormais”. Logo, basta tratá-los do modo que corresponde à sua natureza inexorável. Com, por exemplo, tornozeleiras eletrônicas, o isolamento que se destina a feras, a privação de direitos elementares, como o de defesa, ou simplesmente pela aniquilação, que é onde esse discurso chega e justifica a política de extermínio que todo mundo está fazendo de conta que não vê. Que podemos fazer com pessoas determinadas a serem criminosas? Perdem a condição e a proteção de membros da Humanidade. O primeiro passo para uma política de aniquilação é desumanizar o outro. Como lembrei acima, já conhecemos o enredo e o final do filme. Até quando ele vai passar? Até quando haverá gente disposta a pensar enredos como esse? Há um princípio, que tem validade incondicionada, que diz que seres humanos devem ser tratados com dignidade e respeito. Mas quem não está ainda pronto para assumir isto como preceito ético incondicionado, pode no entanto ficar satisfeito com um argumento prático, de "utilidade social", como quer o articulista. Se o Estado trata seres humanos como bestas, a sociedade será tratada da mesma forma por eles. Estaremos todos condenados à barbárie, num círculo infernal.