Publiquei o texto que segue no jornal Valor Econômico em 28 de abril deste ano. Posto aqui com a finalidade de deixar clara a diferença entre o que determinou a Corte Interamericana e o que o Estado brasileiro está fazendo. A Comissão da Verdade somente tem competência para, em síntese, esclarecer "os fatos e as circunstâncias" em que se deram graves violações de direitos humanos a partir de 1946". A Corte Interamericana disse ser inválida a Lei de Anistia de 1979, o que tem como consequência a possibilidade de persecução criminal contra os responsáveis pelos crimes contra a Humanidade praticados no período da ditadura militar. Esgota-se o prazo dado pela Corte para o cumprimento de sua decisão pelo Estado brasileiro. O Brasil está prestes a se tornar um Estado fora da lei na ordem internacional.
STF, CORTE
INTERAMERICANA E ANISTIA: ASPECTOS JURÍDICOS
A Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou
inválida a Lei da Anistia. O STF, na ADPF no. 153, declarou válida mesmo
abrangendo crimes contra a humanidade. A sociedade deve ser informada sobre a solução
para o conflito porque após a decisão da Corte o Ministro César Peluso declarou
que “a
eficácia se dá no campo da convencionalidade. Não revoga, não anula e não cassa
a decisão do Supremo”. O Ministro errou. Convencionalidade no Direito Internacional tem
um sentido próprio: é modo de criação de
normas vinculantes. Não há uma autoridade central com as funções do Estado
moderno. A norma vincula por acordo entre os Estados, por força do pacta sunt servanda. O pactuado deve ser
cumprido sob pena de ilicitude.
Além
das convencionais, há normas imperativas de Direito Internacional. São
previstas na Convenção de Viena sobre
Direito dos Tratados. A racionalidade para os direitos humanos é clara: a
proteção da vida não pode depender de acordo. O marco foi Nuremberg, que rompeu
com o positivismo jurídico. Normas não constituem o Direito sem juízo de valor.
A dignidade humana tornou-se o princípio dos instrumentos de defesa dos
Direitos Humanos depois da barbárie nazista, a começar pela a Declaração de Universal
de 1948. Os Princípios de Nuremberg, aprovados
pela ONU em 1950, estabeleceram que a lei
interna não isenta de responsabilidade o perpetrador. Sem o que tudo seria
inútil.
Crimes
contra a humanidade são imprescritíveis. Neles há na grande maioria das vezes
um enorme potencial de aniquilação de seres humanos (frequentemente o imenso
poder de um Estado e sua capacidade de destruição interna e externa). Há o
risco de extermínio de etnias, minorias, de certos valores culturais,
espirituais, sociais, expressões políticas e filosóficas. O que se protege é a
própria sobrevivência da humanidade em sua inteireza, complexidade e riqueza. O
poder de persecução não é relativizado.
No
plano da convencionalidade, temos que o Brasil ratificou a Convenção Interamericana
de Direitos Humanos em 1992 e reconheceu a competência da Corte Interamericana em
1998, com ressalva para fatos anteriores a esse ano. O caso Araguaia
ficou a salvo da ressalva. A Corte delimitou sua competência aos desaparecidos
porque é crime continuado, persistindo seus efeitos após 1998.
O
Estado brasileiro reconheceu os fatos perante a Corte. A divergência foi jurídica. Entre os anos de
1972 e 1974, na região do Araguaia, agentes do Estado foram responsáveis pelo
desaparecimento forçado de 62 pessoas. O obstáculo à eventual punição dos
responsáveis é a Lei de Anistia. A Corte declarou que ela não pode produzir
efeitos jurídicos. Lembrou que é sem sentido manter a proscrição das violações
graves dos direitos humanos e aprovar medidas estatais que absolvam seus
perpetradores.
Em
sentido absolutamente contrário ao afirmado por Cesar Peluso a Corte assinalou
que é obrigação das autoridades judiciais efetuar o controle de
convencionalidade como obrigação assumida pelo Estado brasileiro na ordem internacional.
Isto deve fazer o Ministro lembrar-se de que a ordem jurídica internacional não
é um adorno. O presidente do STF desinformou a sociedade e as instituições
políticas. O Estado brasileiro tem obrigações internacionais. Pleitear assento
definitivo no Conselho de Segurança da ONU e ignorar regras internacionais desmoraliza.
Embora
a Corte tenha delimitado sua competência aos efeitos jurídicos pós-1998, em
voto apartado o juiz Caldas enfatizou aspectos do caráter imperativo das normas
de Direito Internacional dos Direitos Humanos independentemente da
convencionalidade. Lembrou que é irrelevante a não ratificação pelo Brasil da
Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a
Humanidade porque ela não é criadora do Direito, mas meramente consolidadora.
Desde Nuremberg reconhece-se a existência de um costume internacional que remonta
ao preâmbulo da Convenção de Haia de 1907.
Assim, prosseguiu, há um Direito que transcende o Direito dos Tratados e
abarca o Direito Internacional em geral, inclusive o Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Nenhuma norma de direito interno pode impedir que um Estado cumpra a obrigação de
punir os crimes de lesa-humanidade “por serem eles insuperáveis nas existências
de um indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e
nas transmissões por gerações de toda a humanidade.”
A
pessoa é sujeito de direito acima do poder constituinte originário.
Isto há de deixar pálidos juristas formados no positivismo. Mas a idéia
de segurança jurídica é uma falácia do Direito contemporâneo. Milhares de
decisões conflitantes vêm à luz todos os dias nos tribunais e a República sobrevive.
A segurança jurídica reside em princípios a que os juízes estão submetidos
e a conflitos razoáveis sobre eles. Aceitar
- como se fez em Nuremberg – que em casos de barbárie devem ser preservados
valores universais terá a vantagem de esclarecer quando a forma positiva
clássica do Estado contemporâneo ainda prevalece. Estabelecer os limites
de um conceito não o enfraquece, o fortalece. Dizer "isto pode" e
"isto não pode" sobre juízos racionais permite um acordo entre
sujeitos democráticos para colocar o Direito a serviço da sociedade, não o
contrário. Estão conceitos serão a base do Direito no 3o. milênio.
Há uma opção. Não admitir
que o Estado mate e faça desaparecer pessoas e tudo seja ignorado por razões
políticas. É uma escolha moral amparada
pelo Direito. Os que calam indiferentes que façam a escolha que não os envergonhe
perante gerações futuras.