quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O Horror, o Horror, o Horror



                                             

A coluna da ombudsman da Folha noticia a reação dos leitores ao episódio do “estrebucha”. Para quem não leu, reproduzo:






“ ...Cotidiano trouxe um vídeo que mostra dois presos baleados no chão, enquanto policiais lamentam que eles não tenham morrido. "Estrebucha!", diz um deles. A reportagem, na Folha.com, provocou uma avalanche de comentários (1.780). O conjunto da obra revoltou os leitores que identificam na imprensa uma tendência a proteger os "direitos dos bandidos". ‘Se fosse um policial agonizando, vítima de um assassino covarde, será que a mídia se daria ao trabalho de questionar?”, perguntou um dos internautas mais educados. "Parabéns ao empenho da Folha. A criminalidade agradece", escreveu outro."




Um dos modos de aferir o nível moral de uma sociedade é verificar como ela hierarquiza valores. A amostragem da “folha.com” não é evidentemente científica no plano estatístico, mas diz algo. Parte considerável de nossos cidadãos demonstra que em sua visão moral violar a propriedade  deve ser punido com a perda da vida, e que não há nenhum grande problema tratar de modo atroz, brutal, selvagem quem agoniza já indefeso,  se afrontou o sacrossanto direito de propriedade. A propriedade, pois, precede a vida. Os leitores indignados não estavam satisfeitos com o fato de  os criminosos  feridos serem presos, processados e punidos de acordo com regras jurídicas legítimas. Queriam mais. Queriam torpezas.




Há uma lastimável demanda social por mais violência contra a violência. Isto repercute na indiferença diante da degradação humana nos presidios, na exigência de penas draconianas, no tratamento de pessoas como subhumanos, no uso de tornozeleiras como se se tratasse de animais.



Não simpatizo com argumentos utilitaristas. Dizer, por exemplo, que a violência gera mais violência pela reação de quem é maltratado pelo Estado, e que portanto restaremos mais inseguros ainda, é um tipo de argumento utilitarista. Não deixa de ser correto. É verdadeiro, mas há um incômodo. Subjacente a este raciocínio temos algo assim: se tratar criminosos de modo violento resolvesse, a violência poderia então ser legitimada.



Filosoficamente, há um argumento melhor.




Prefiro dizer que uma sociedade civilizada deve ser erigida sobre a base do princípio do respeito à vida e à dignidade do humano. Na Filosofia Moral isto se chama imperativo. Chama-se assim para expressar a idéia de que é incondicionado. Ele conforma melhor o argumento utilitarista, retira-lhe aquele incômodo subjacente. Despidos das emoções e com suas  estruturas racionais em uso, aqueles leitores indignados certamente assumiriam a premissa de que suas vidas valem mais do que propriedades e que em hipótese alguma qualquer forma de violência pode ser legitimada. Racionalmente, é o tipo de sociedade em que escolheriam viver. Eles ainda não sabem disso.








O juiz (e blogueiro/colunista) Marcelo Semer publicou, há alguns anos, Crime Impossível, com base em sua dissertação de mestrado. Deu-me o privilégio de escrever o prefácio. A ordem de idéias que expus acima está refletida naquele prefácio, e o texto de Semer também está impregnado desse espírito iluminista de humanização do Direito Penal. Reproduzo abaixo o prefácio e, claro, recomendo vivamente a leitura do texto elegante,  preciso e filosoficamente correto de Semer.








Dissertando sobre o crime impossível, Marcelo Semer nos chama a atenção para um tema caro à democracia: os perigos da hipertrofia do Direito Penal.




Observamos entre nós o fenômeno. Vem sendo impulsionado pelo arrivismo político que dá guarida ao clamor descontrolado de certa opinião pública, notoriamente favorecido por incidentes criminais em que figuras de fortuna ou prestígio social foram atingidas. É uma reação que, no cerne, quer ferir de morte o que Semer designa apropriadamente como o conceito iluminista do Direito Penal. Assim, o legislador acaba desempenhando o papel oposto ao que esperamos dele segundo os preceitos do moderno Direito Penal. A pena, que deveria expressar a racionalidade de não permitir o ressentimento e a vingança privada, torna-se ela própria uma manifestação do ressentimento. O que é particularmente incômodo, porque esta sanha repressiva nunca vingou ao longo dos anos de crescimento da criminalidade atingindo o cidadão comum.




Nestes tempos sombrios, ocorre lembrar o que Hegel certa vez escreveu sobre o Direito Penal: "se ... a pena é representada como coação, somente se lhe pode imputar o caráter de determinação, de algo totalmente finito que não entranha racionalidade alguma e que por inteiro fica compreendida sob a noção geral de determinada coisa oposta a outra, ou de uma mercadoria com a qual se compra outra coisa, ou seja, o crime. O Estado como poder judicial mantém um mercado provido de determinações chamadas crimes, que oferece a quem por elas pague o preço de outras determinações, e o Código Penal é a lista de preços." 1




A ironia do filósofo evidencia algo que nunca convém esquecer: o destinatário da sanção penal é senhor de seu arbítrio.




É senhor de seu arbítrio tanto para utilizar-se da liberdade que integra a estrutura lógica das normas - todos conhecemos na experiência algo semelhante ao mecanismo descrito por Hegel- como para subtrair-se a elas ao modo que se pode ilustrar com o exemplo do caçador.




A caça, tal como a sanção penal, é o obstáculo perigoso a ser superado. O caçador espreita, estabelece seu raio de ação, calcula os riscos e executa sua estratégia quando se sente seguro o suficiente para supor que consegue ileso seu objetivo. Da mesma forma que para o caçador convicto, seguro de sua competência, não é fundamental o porte e o perigo do animal, para o agente da conduta criminosa não é questão decisiva o adjetivo que o legislador apôs ao crime e a extensão da pena.




Há na idéia de um Direito Penal exacerbado a vã esperança de elidir o arbítrio dos indivíduos, como se esse arbítrio não integrasse a própria estrutura das normas. Supõe-se que é possível dar uma eficácia tal aos mecanismos repressivos do Estado que a norma fica praticamente elevada à condição de fato, como se fosse possível imitar na sociedade a relação de causalidade própria da natureza. A mentalidade repressiva e a intolerância política, típicas dos regimes totalitários, estão ligadas de algum modo a este trágico equívoco lógico. A intensificação dos mecanismos repressivos do Estado, não conseguindo - pela própria natureza das coisas - elidir o arbítrio dos indivíduos, sugere mais repressão, num círculo vicioso em que todos morremos do remédio. É assim que surgem as barbáries: imagina-se que é possível vencer a lógica das normas exposta por Hegel com penas que comprometem a civilização e a dignidade humana, ou vencer o arbítrio dos indivíduos com a instalação de um Estado que perde sua natureza ao deixar de lado os seus atributos para tornar-se apenas um gigantesco e tentacular mecanismo de repressão.




Lembremos que na República, de Platão, os guardiões submetem-se ao necessário governo do rei-filósofo. Os guardiões são responsáveis pela defesa da sociedade. Como a luta é ofício e razão de ser de suas vidas, tendem a considerar a força uma lógica autônoma. Ela se auto-alimenta e tende à expansão, salvo se os reis-filósofos dão-lhe forma moral e racionalidade.




O ensinamento de Platão expressa a sabedoria de jamais permitir que o aparato repressivo do Estado conduza-se a si próprio ou - o que é o mesmo - que a mentalidade repressiva contamine a sociedade, e, à guisa de governo, as diretrizes políticas reduzam-se à lógica da força, que na verdade está se determinando a si mesma. Reside em potência nesta lógica a violência, o poder descontrolado que destrói os fundamentos éticos e a racionalidade da vida social.




A força é o ente empírico do Direito que não resolve seu sentido, ainda que ele não possa se apresentar na experiência de outro modo. Como se vê pela cortante observação de Hegel, empiricamente a norma dirige-se ao arbítrio dos cidadãos, mas neste plano se perpetua em um não-sentido sem atingir seu fim de regular condutas. Somente se torna inteligível como uma mensagem que, recepcionada pelo arbítrio, dirige-se, na verdade, à razão dos homens, que manda organizar a sociedade segundo os princípios da solidariedade e da fraternidade. É fácil compreender porque uma sociedade desigual, arbitrária e violenta acostuma-se a chamar os guardiões e delegar a eles o problema do controle social. É assim que o Direito vai perdendo sua inteligência - tomo também a expressão no sentido comum, o de evitar fazer coisas insensatas - para cada vez mais aparecer identificado com os guardiões, com a repressão que, afinal, acaba sendo a precária sustentação da sociedade iníqua, num círculo perverso em que a violência causa mais violência e ódios acumulam-se para onde quer que se olhe.




O conceito de Direito Penal mínimo é como o de um rei-filósofo que impõe limites aos guardiões. Ao longo do texto de Marcelo Semer nota-se a sabedoria de razão prática consistente em não admitir que sejamos governados pela lógica da repressão. Tratando do crime impossível, assenta sua defesa da teoria objetiva, que quer a punição apenas naqueles casos em que a conduta signifique no mínimo perigo concreto para o bem jurídico tutelado, em um postulado decisivo para a democracia: ao Direito Penal não compete punir a subjetividade dos indivíduos, não compete punir o cidadão pelo que é, não compete cuidar de ânimos.




O valor das proposições jurídicas reside na adequação do conhecimento à sabedoria. A sabedoria de um Direito Penal mínimo integra a razão prática, mas Marcelo Semer cuida de construir a técnica porque no Direito a sabedoria não pode intervir ao modo de um deus ex-machina.




Assim, o operador do Direito Penal encontrará no texto os conceitos técnico-jurídicos exigidos para que o Direito Penal mínimo se mostre operacional no tema árido do crime impossível, com a rigorosa harmonia lógica que lhe confere a necessária condição de aplicabilidade.




Mas, sobretudo, é um texto iluminado sobre a liberdade neste tempo sombrio. Não sei o que pode ser mais digno para um texto jurídico do que mostrar que a liberdade pode habitar nossa mente racional, além de povoar os sonhos do coração.




Marcio Sotelo Felippe




Setembro de 2002





























sexta-feira, 19 de agosto de 2011

SÉRIE FILOSOFIA E CINEMA - I



                                                    O SOL É PARA TODOS






                                                (TO KILL A MOCKINGBIRD)








   Há cenas cinematográficas que quem viu não esquece. Chaplin caminhando pela estrada ao final de Tempos Modernos; Orson Welles murmurando “rosebud”; a angústia e a revolta de Marlon Brando dizendo “eu poderia ter sido grande”, em Sindicato de Ladrões.




   A minha preferida é insuperável como arte cinematográfica captando um momento de humanidade: o final do julgamento do negro acusado injustamente de estuprar uma branca em O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird).




   O filme não costuma figurar nas listas dos dez mais, mas pode muito bem aparecer em algum lugar depois do décimo. Na minha lista é o primeiro. O AFI – American Film Institute - elegeu, na comemoração dos 100 anos de cinema, os 100 melhores filmes norte-americanos, e O Sol é Para Todos surgiu em 34º lugar. No entanto, o personagem central, Atticus Finch, (Gregory Peck) foi escolhido pelo AFI, dentre uma lista de 400 indicados, como o maior herói do cinema.




   A metáfora que dá o nome original ao filme, e é sua chave e sentido, expõe a irracionalidade de estruturas sociais e um lado sombrio que mostramos no cotidiano das relações intersubjetivas.




   Mockingbird é um pássaro que só existe na América do Norte. Não é o rouxinol, como supõe o tradutor brasileiro do filme. É do mesmo gênero do nosso sabiá, e tem a característica de imitar o canto de outros pássaros.




   No diálogo que explica o título do filme e revela a metáfora Atticus Finch conta à filha Scout – a menina de 6 anos de cujo ponto de vista a história é contada - que seu pai havia lhe dado uma arma e lhe instruído sobre o uso que poderia fazer dela, com a advertência de que era um pecado “to kill a mockingbird” porque esses pássaros não são nocivos, cantam e nos deleitam, não estragam o jardim, não fazem ninho onde não devem. Apenas alegram a vida com seu canto.




   Em todas as histórias que se entrelaçam no enredo a metáfora do pássaro expressa a condenação moral da violência inexplicável contra o outro: preconceitos raciais, sociais, sexuais, religiosos, culturais ou agir, surda e mesquinhamente, somente em função de seus interesses.




   Atticus Finch é o advogado que defende o negro da acusação infundada de estupro de uma branca em uma pequena cidade do sul dos EUA. O negro, um trabalhador pacífico e solidário, ajudava casualmente a moça branca e recusou o seu assédio sexual. Perturbada (e por razões que o julgamento revela) a moça o acusa de estupro. Na pequena cidade sulista tornou-se um homem morto e o julgamento uma encenação.




   Na casa vizinha de Atticus Finch vive um homem isolado pela família por insanidade mental. Os filhos de Atticus têm pavor dele, e praticam o ritual infantil de enfrentar o próprio medo aproximando-se de sua casa. Somente no final saberão que do seu quarto isolado o homem os protege e lhes deixa pequenos presentes nas redondezas.





   Os dois homens – o alienado e o negro - são os evidentes mockingbirds do enredo, maltratados e marginalizados pela comunidade.




   Voltando à cena memorável a que me referi, passa-se após Atticus Finch, designado pro bono pelo juiz, apresentar uma defesa impecável, desmontar a acusação, expor a estupidez do preconceito e desmascarar a mentira da suposta vítima. Mas a condenação é certa.




   Brancos e negros assistiram o julgamento segregados. Brancos embaixo, negros em cima, no que seria um mezanino. Proferida a condenação, os brancos se retiram. Os negros não se movem. Atticus Finch arruma seus papéis e caminha para a saída. Quando passa abaixo do mezanino todos os negros se erguem em silêncio, reverencialmente. Um deles diz à menina Scout (de cujo ponto de vista a história é contada), filha de Atticus, a única branca na parte reservada aos negros: “levante-se, seu pai está passando”. Não há mais falas. Uma tomada do alto mostra a caminhada solitária de Atticus pela sala do julgamento e a homenagem silenciosa dos negros em cima.





   Mostrei essa cena a alunos como um exemplo da moralidade de Kant, o imperativo categórico. Para Kant, uma conduta somente poderia ser moral se motivada pelo dever puro. Se na origem de uma conduta estiver qualquer outra causa (a aparência social, algum interesse do indivíduo singular, o receio de reprovação ou sanção, etc.) a conduta parecerá moral, mas não será moral.




   A rigor, kantianamente, jamais podemos saber se uma conduta é efetivamente moral porque não temos acesso à mente do outro (para Kant isto está no plano da consciência, fora dos sentidos).




   Mas nós sabemos que Atticus Finch é um homem superior. Ele está, claro, ciente de que os negros estão lá, mas em nenhum momento olha para cima na expectativa da aprovação, gratidão, louvor, reconhecimento ou aclamação pelo seu esforço.




   Pela sua estatura moral, que neste momento o enredo já revelou, claro que não se trata de indiferença. Seu caráter prescinde de alguma forma de reconhecimento.




   O roteiro (fiel ao romance que o originou) não contamina moralmente, no mais puro sentido kantiano, a cena. Atticus cumpriu seu dever com a justiça. Os negros reverenciam a figura de Atticus Finch e o seu cumprimento do dever contra a parte branca da cidade. Atticus, absorto na causa que acabou de perder, não percebe o gesto.




   Os negros sabem que Atticus não percebeu o gesto. Nada fazem  para que Atticus o perceba. Nenhuma palavra é dita. Nenhum aplauso. Nenhuma voz de louvor. Nenhuma aclamação. Tudo se resolve na reverência à humanidade do advogado. Tudo é como deve ser no puro plano da consciência. Porque podemos nos mostrar gratos como um gesto social; podemos nos mostrar gratos para que os outros nos reconheçam como pessoas que sabem expressar gratidão; podemos nos mostrar gratos para que reconheçam em nós uma moralidade que não temos mas nos dá ganhos sociais. No gesto empírico da gratidão haverá sempre uma suspeita de contaminação ética. A arte e a filosofia dessa cena é mostrar a reverência à humanidade do personagem Atticus como um gesto que se basta à consciência de cada um dos negros que lá estão. “Levante-se – um homem justo está passando”. A única fala ensina à criança a possibilidade dessa comunhão de consciências além dos sentidos, das palavras e dos gestos.




   O filme termina com a tentativa de assassinato por vingança do filho de Atticus pelo pai da moça branca no meio da noite. O menino quase torna-se, assim, mais um “mockingbird”. Quem o salva, secretamente, na noite escura, é o vizinho alienado mental, que termina por matar o agressor. Somente Atticus e o xerife desvendam o fato, e vem outra cena memorável.




   A legítima defesa da criança é clara para eles. Mas haveria uma prisão, um processo, a exposição pública de uma personalidade frágil e psiquicamente abalada, o que terminaria por destruí-la. E o próprio xerife recusa-se a “to kill a mockingbird”: “posso não ser muita coisa, Mr. Finch, mas continuo xerife de Macomb County. E Bob Ewell caiu sobre sua própria faca. Boa noite, sir.” E não há inquérito, processo ou julgamento.




   É o dilema entre regra e princípio que contemporaneamente os juristas começaram a perceber. O que transparece na fala do xerife, e motiva sua decisão de consciência, é o receio do aniquilamento gratuito de um ser humano pela sua exposição ao clamor público que a regra positiva determinava.




   O xerife realizou o Direito, digamos, com suas próprias mãos. Sua conduta deve ser tomada como um específico modo de funcionamento da Razão. Sendo o sentido do Direito (idealmente)  a proteção da dignidade humana, a regra positiva, por si só, muitas vezes não a expressa. Sua racionalidade deve ser amparada por princípios, e princípios podem e devem excluir a aplicação da norma positiva em certos momentos.




   “Matar mockingbirds” é uma grande metáfora. Um tiro de espingarda num pássaro inofensivo e cantor expressa a condenação moral do capitalismo, no qual quem produz a riqueza e os bens que fazem a sociedade funcionar é quem pior é tratado por ela. Expressa todas as formas de preconceito e intolerância, que aniquilam gratuitamente a alma e o corpo do outro. Expressa o terrorismo, que faz do extermínio de inocentes meio de ação política. Expressa o modo como a sociedade trata crianças famintas, abandonadas, velhos doentes, mulheres indefesas, homens sem trabalho, aos quais se nega a dignidade de uma vida útil e a auto-estima. Expressa certas relações intersubjetivas, como a violência doméstica contra a mulher.  A ideia de transformar o mundo, no filme, está condensada na metáfora “to kill a mockingbirds”.











domingo, 14 de agosto de 2011

LONDRES SEGUNDO BAUMAN: CONFLITO EM NOME DO CONSUMO


   "As classes mais baixas querem é imitar
a elite. Em vez de alterar seu modo de vida para algo com mais
temperança e moderação, sonham com a pujança dos mais favorecidos."



    Reproduzo entrevista de Zygmunt Bauman. Interessa-me destacar um aspecto dessa entrevista. Trata-se de uma  explosão de ressentimento  sem direção ou sentido. A resposta ao aprofundamento de uma política antissocial de exclusão, que caracteriza a atual fase do capitalismo, não expressa uma revolta por justiça, nem o inconformismo moral pela ausência dessa primeira virtude das sociedades, a justiça. A contradição é empírica, não lógica: não se vê um protesto dirigido contra os fundamentos do modo de organização da sociedade, mas um protesto por não ser o beneficiário desse modo de organização.



   Chama a atenção também o contraste com a Praça Tahir. Os egípcios que foram às ruas derrubar Mubarak fizeram protestos pacíficos, organizados, não violentos. Foram bem sucedidos. Uma aula de  civilização à civilizada  Inglaterra. Os acontecimentos de  Londres, como a História já cansou de ensinar,  devem resultar no fortalecimento da direita e  dos aparatos repressivos do Estado. Esse é o caldo de cultura do fascismo. Consultem a história do declínio da República de Weimar e a ascensão do nazismo.




  


LONDRES - Um dos mais influentes acadêmicos europeus, já descrito por
alguns comentaristas mais entusiasmados como o mais importante
sociólogo vivo da atualidade, o polonês Zygmunt Bauman viu nos
distúrbios de Londres uma aplicação prática de suas teorias sobre o
papel do consumismo na sociedade pós-moderna. Um assunto que o
acadêmico, radicado em Londres desde 1968, quando deixou a Polônia após
virar persona non grata para o regime comunista e por conta de uma onda
de anti-semitismo no país, explorou bastante em conjunção com as
discussões sobre desigualdade social e ansiedade de quem vive nas
grandes cidades.



Aos 85 anos, autor de dezenas de livros, como "Amor
líquido" e "O mal-estar da pós-modernidade", Bauman não dá sinais de
diminuir o ritmo. Há cinco anos, no lançamento de "Vida para Consumo",
uma de suas obras mais populares, fez uma turnê por vários países. Em
entrevista ao GLOBO, por e-mail, ele afirma que as imagens de caos na
capital britânica nada mais representaram que uma revolta motivada pelo
desejo de consumir, não por qualquer preocupação maior com mudanças na
ordem social.



- Londres viu os distúrbios do consumidor excluído e insatisfeito.



O GLOBO: O quão irônico foi para o senhor ver os distúrbios se concentrando na pilhagem de roupas e artigos eletrônicos?



ZYGMUNT BAUMAN: Esses distúrbios eram uma
explosão pronta para acontecer a qualquer momento. É como um campo
minado: sabemos que alguns dos explosivos cumprirão sua natureza, só não
se sabe como e quando. Num campo minado social, porém, a explosão se
propaga, ainda mais com os avanços nas tecnologias de comunicação. Tais
explosões são uma combinação de desigualdade social e consumismo. Não
estamos falando de uma revolta de gente miserável ou faminta ou de
minorias étnicas e religiosas reprimidas. Foi um motim de consumidores
excluídos e frustrados.



O GLOBO:Mas qual a mensagem que poderia ser comunicada?



BAUMAN: Estamos falando de pessoas humilhadas
por aquilo que, na opinião delas, é um desfile de riquezas às quais não
têm acesso. Todos nós fomos coagidos e seduzidos para ver o consumo como
uma receita para uma boa vida e a principal solução para os problemas. O
problema é que a receita está além do alcance de boa parte da
população.



O GLOBO:Trata-se de um desafio a mais para as autoridades na tarefa de acalmar os ânimos, não?



BAUMAN: O governo britânico está mais uma vez
equivocado. Assim como foi errado injetar dinheiro nos bancos na época
do abalo global para que tudo voltasse ao normal - isso é, as mesmas
atividades financeiras que causaram a crise inicial - as autoridades
agora querem conter o motim dos humilhados sem realmente atacar suas
causas. A resposta robusta em termos de segurança vai controlar o
incêndio agora, mas o campo minado persistirá, pronto para novos
incêndios. Problemas sociais jamais serão controlados pelo toque de
recolher. A única solução é uma mudança cultural e uma série de reformas
sociais. Senão, a mistura fica volátil quando a polícia se desmobilizar
do estado de emergência atual.



O GLOBO:Jovens de classe baixa reclamam demais
da falta de oportunidades de trabalho e educação. O senhor estranhou não
ter visto escolas pegando fogo, por exemplo?



BAUMAN: Qualquer que seja a explicação dada por
esses meninos e meninas para a mídia, o fato é que queimar e saquear
lojas não é uma tentativa de mudar a realidade social. Eles não se
rebelaram contra o consumismo, e sim fizeram uma tentativa atabalhoada
de se juntar ao processo. Esses distúrbios não foram planejados ou
integrados, como se especulou no início. Tratou-se de uma explosão de
frustração acumulada. Muito mais um porquê que um para quê.



O GLOBO:Mesmo o argumento de protesto contra os cortes de gastos do governo não deve ser levado em conta?



BAUMAN: Até agora, não percebi qualquer desejo
mais forte. O que me parece é que as classes mais baixas querem é imitar
a elite. Em vez de alterar seu modo de vida para algo com mais
temperança e moderação, sonham com a pujança dos mais favorecidos.



O GLOBO:Mais problemas são inevitáveis, então?



BAUMAN: Enquanto não repensarmos a maneira como
medimos o bem-estar, sim. A busca da felicidade não deve ser atrelada a
indicadores de riqueza, pois isso apenas resulta numa erosão do espírito
comunitário em prol de competição e egoísmo. A prosperidade hoje em dia
está sendo medida em termos de produção material e isso só tende a
criar mais problemas em sociedades em que a desigualdade está em
crescimento, como no Reino Unido.







sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A Inacreditável Violência Moral contra Zaffaroni



  Do blog Sem Juízo, de Marcelo Semer (aqui), vem esta preciosidade escrita pelo juiz argentino Luis Niño. Raul Eugenio Zaffaroni sofre sórdida campanha movida pela direita argentina. Zaffaroni é um dos homens mais extraordinários que conheci. Tive a oportunidade de ouvi-lo na sede da Associação Juízes para a Democracia e jamais esqueci sua esplêndida inteligência jurídica e toda a sua capacidade posta a serviço da Democracia e do Direito. Não foi escolhido como alvo à toa. Defendê-lo é uma tarefa premente dos democratas de todo o mundo. No pasarán.













                                                Raúl, el Justo, por Luis Niño




En el tercer tomo de sus “Vidas Paralelas” describe Plutarco, con singular detalle, la vida de Arístides, brillante estadista y general ateniense. Explica que el pueblo supo honrar a ese hombre, pobre y plebeyo de origen, con el apelativo de “el Justo”, para asociar eternamente su figura con tal cualidad. Ni los reyes ni los tiranos de su tiempo habían aspirado a tal renombre, nos previene su insigne biógrafo, pues preferían ser conocidos como sitiadores, fulminadores, vencedores y algunos – valga la cita textual- como águilas y gavilanes, por preferir la gloria que dan la fuerza y el poder a la que proviene de la virtud.











La fama de Arístides, el Justo, resultaba insoportable para Temístocles, de pareja edad, arconte y militar como aquel. Distanciados ambos por causa de rencillas juveniles, el encono del segundo aumentó ostensiblemente al resultar descubierta su maniobra de sustracción de caudales públicos por el primero, tras ser elegido procurador de las rentas públicas. Para desquitarse, supo sembrar entre la muchedumbre el rumor de que, valido de su fama, aquél aspiraba secretamente a entronizarse en el poder como monarca, persuadido de que era invulnerable ante los tribunales.











El pueblo de Atenas, engreído por las victorias bélicas que el propio Arístides había contribuido a lograr con arrojo y molesto por el brillo personal alcanzado por éste, asumió de buen grado la injuriosa especie lanzada por su adversario, revelando un sentimiento que otro historiador, Cornelius Nepos, contemporáneo de Cicerón, acertó a llamar invidia. La animadversión del arconte malversador y el torvo recelo de quienes hasta entonces lo habían admirado con razón, arrojaron –pues- a Arístides, el Justo, al ostracismo.







 


Cuenta también Plutarco que, a la hora de inscribir en las conchas el nombre del ciudadano pasible de ser condenado a destierro, un campesino analfabeto entregó al propio Arístides el caparazón de ostra proporcionado a cada ateniense por los arcontes; y, para su sorpresa, le encargó que escribiese su nombre. El Justo preguntó al iletrado si aquel a quien deseaba condenar le había causado algún agravio: “Ninguno -respondió su interlocutor- ni siquiera lo conozco, sino que ya estoy fastidiado de oír continuamente que le llaman el Justo”. Arístides, ante esto, nada contestó; grabó su nombre y se la devolvió. Expulsado, a la sazón, de la polis por sus conciudadanos, levantó sus manos al cielo y, exclamando una plegaria enteramente contraria a la de Aquiles, pidió a los dioses que no llegara el tiempo en que su pueblo tuviera que recordarlo.











La persecución de que es objeto actualmente el ilustre jurista y magistrado Eugenio Raúl Zaffaroni conduce a evocar la historia de Arístides. Hoy depende de todos nosotros que la perversa combinación de interesada maledicencia, vulgar envidia y crasa ignorancia no triunfe en su oscuro designio.






















segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A ESCOLHA DE DILMA: CARL SCHMITT OU KANT








    O “Estadão” publicou na semana passada matéria dizendo que Dilma Roussef, após a nomeação de Celso Amorim para a Pasta da Defesa, se reuniu com os militares e os tranquilizou. Nada haveria além da Comissão da Verdade.




   Corre outra versão. Dilma teria na verdade advertido e “enquadrado” os militares. Foi o que publicou Paulo Henrique Amorim.




   A versão do jornal está de acordo com o que se vem percebendo, ainda que o tom da matéria (mostrando uma Dilma receosa e intimidada) possa ficar por conta da malícia do jornal. Ou seja, qualquer que tenha sido o exato tom da conversa, efetivamente nada passará da Comissão da Verdade.




   Dilma tem escolha. Cada uma delas tem um preço. Resta saber qual preço ela entenderá ser mais barato pagar.




   As escolhas são bem conhecidas na Filosofia Política.




   Há duas formas de exercer o poder. A normativa e aquela que desde Maquiavel costuma-se designar por Razão de Estado.




   Quando as duas coincidem, o que felizmente ocorre na maior parte do tempo, não há problema.




   Mas há momentos em que elas entram em conflito. A solução normativa (que nas democracias que o tempo contemporâneo construiu é o que confere legitimidade) parece colocar em risco o exercício do poder.




   Deixando de aplicar a via normativa, o governante assegura e fortalece, sem risco, a sua posição política de mando.





   Ao decidir política, e não normativamente, estaria observando a primeira regra do poder: assegurar sua sobrevivência.




   Com outras tintas ideológicas, isto é semelhante à teorização de Carl Shmitt, ideólogo e jurista do nazismo. O poder é absoluto e soberano. É teológico no exercício, no sentido de que, como Deus, não deriva de nada. É criador. Soberano, dizia Schmitt, é quem decide sobre a exceção. Em outros termos, quem decide quando certas normas não devem ser aplicadas. Quem decide se a democracia, em algum momento, deixa de valer.




   Teóricos de esquerda vem se valendo de Carl Schmitt e o colocaram na moda. Descobriram-no como um formulador brilhante do realismo político, e dele se apropriam para, entre outras coisas, explicar o funcionamento real do mecanismo de poder no Estado contemporâneo e – se o caso – aplicá-lo numa moldura de esquerda.





   Isto é mais do mesmo, o que vimos ao longo da história humana.




   Mas em outra vertente tentamos construir, para honrar a ideia de civilização, para por fim à barbárie política e social, algo completamente distinto do poder “schmittiano”. Devemos ser governados por normas, e nesta quadra histórica, pelas normas que asseguram o dever ser dos direitos humanos e da dignidade humana, expressão que sintetiza todo o universo de regras que reconhecemos como inerentes à condição humana ideal e justa.




   Em outros termos, em vez do exercício “realista” schmittiano de poder, tentamos construir um mundo que se aproxime da ideia kantiana de dignidade humana. Os homens são fins, não meios para que outros homens assegurem seus interesses. O exercício de poder somente se legitima e se justifica na medida em que é exercido nesta perspectiva.




   Deixar impunes os crimes brutais cometidos na época da ditadura em troca de conforto, em troca de assegurar sua sobrevivência política pacífica, é uma das opções de Dilma. É a opção Carl Schmitt.




   A outra opção – com vários precedentes na América Latina - é exercer o poder para dar um passo fundamental na construção da verdadeira democracia, respeitando o valor da vida humana e todo o arcabouço jurídico erguido após a II Guerra para que a barbárie nunca mais ocorresse. É a opção Kant. Para isto, basta cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.




  Em outros termos, presidenta Dilma Roussef, civilização ou barbárie







segunda-feira, 1 de agosto de 2011

INDIGNAI-VOS!



   Um pequeno manifesto (editado em 38 páginas)  está vendendo milhões de exemplares na Europa. Escrito por Stéphane Hessel, expressa a indignação pelos rumos tomados pelos Estados contemporâneos, aparelhos dominados pelo mercado financeiro, com suas políticas de exclusão social, cortes dos benefícios sociais, desmonte do Estado do bem-estar, restrições aos imigrantes e ataques a minorias.



   Uma pequena biografia de Stéphane Hessel:




   "Nasceu em Berlim em 1917, mas viveu desde os 7 anos em Paris. Em1941 uniu-se à Resistência e, em Londres, se incorporou à França Livre do general Charles De Gaulle. Preso pela Gestapo em 1944, escapa de uma morte certa em Buchenwald ao trocar sua identidade pela de outro preso. Após a guerra, tornou-se diplomata e em 1948 fez parte da equipe que redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 1977 ocupou o posto de Embaixador da França na ONU em Genebra."




   O grito "indignai-vos!" está ecoando na Europa. O livro de Hessel foi publicado na Espanha em fevereiro de 2011, e certamente teve um papel no movimento dos indignados que se espalha pela Espanha. Digitalizei algumas páginas.



    (Agradeço a Ney Duarte Sampaio, que me trouxe o livro de presente da Espanha)