domingo, 20 de maio de 2012

STF E OS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE

     

  Participei como palestrante do seminário “STF e os Direitos Humanos”, realizado na PUC-SP de 14 a 16 de maio. O texto abaixo foi redigido com base nas notas da minha intervenção. 

       

                  

      O que denominamos Estado é uma construção histórica. O Estado moderno não é o ente que denominamos Estado no Idade Média ou na Antiguidade.

   A estrutura de poder que corresponde contemporaneamente ao conceito de Estado caracteriza-se pelos chamados três monopólios: o monopólio da tributação, o monopólio da coerção/ violência e o monopólio da norma jurídica.

   O monopólio da norma jurídica tem uma evidente conexão com o Positivismo jurídico, que somente reconhece como Direito o que o Estado decide que é Direito por meio de determinados procedimentos formais. É a lapidar fórmula gesetz ist gesetz: a lei é a lei.

   Não por acaso expressa-se em alemão. O Positivismo jurídico não se confunde com o Positivismo filosófico (não obstante as fortes afinidades)  que somente vai surgir na França em meados do século XIX. (1)  Sua  gênese deve ser localizada na Alemanha no início do século XIX. Na Alemanha que será responsável pela grande tragédia do século XX e na qual o Positivismo jurídico desempenhou seu papel.

   O Positivismo jurídico implica uma rígida separação entre moral e Direito. A concepção básica é que o juiz ou o operador do Direito não devem submeter a norma jurídica a critérios de moralidade. Apenas reconhecer o Direito posto como fato, aplicar e, assim, dar-lhe eficácia.

   Ao mesmo tempo em que aparta a moral do Direito, embute uma “moralidade” ideológica, no sentido marxista da expressão: há um  dever incondicional de obedecer leis.

   O Positivismo foi hegemônico no pensamento jurídico durante o século XIX e a primeira metade do século XX. Sua superação  inicia-se a partir do fim da II Guerra, e ainda está em curso e a duras penas.

   A ascensão do nazismo mostrou como os três monopólios, com o formidável desenvolvimento tecnológico moderno, podem fazer do Estado um imenso aparelho de poder e destruição.

   O fascismo, monopolizando a violência, com  imensos recursos financeiros,  e monopolizando a norma jurídica, provocou uma até então inimaginável tragédia: o aniquilamento e o indizível sofrimento de milhões de seres humanos. Não era possível ver o mundo do mesmo modo depois de Auschwitz. Assim, nas palavras de  Adorno, a Humanidade tinha um novo imperativo categórico: pensar e agir para que nunca mais houvesse Auschwitz.

   Para o Direito, tratava-se de superar o Positivismo. Porque detinham o poder do Estado, as decisões dos celerados nazistas eram reconhecidas como válidas e ganhavam eficácia. Não era mais possível pensar, ingenuamente, que tudo se resumia, afinal, a uma “questão de método” ou a uma visão “científica” do Direito.

   Aquela “moral” ideológica servia de escusa.  Pessoas honestas cumprem a lei. Os perpetradores do genocídio eram bons funcionários que observavam  seus deveres e obedeciam ordens. Do mesmo modo as pessoas  comuns, bons cidadãos sujeitos ao império da lei. 

   Os singelos conceitos do Positivismo mostraram-se, portanto,  insuportáveis: como sustentar, diante do ordenamento jurídico nazista, que há um dever incondicional de obedecer leis, que Direito é o que o Estado diz que é Direito, bastando a observância de procedimentos formais, e que é vedado ao operador do Direito ou ao cidadão qualquer juízo moral diante do poder vinculante da norma jurídica, mesmo que ela signifique tratar seres humanos como animais e aniquilá-los? (2)

    A reação teórica e prática (como disse acima, ainda em curso) assentou-se em dois pontos que se implicam mutuamente:

   (i) O princípio da dignidade humana, colhido da Filosofia de Kant. Se um Estado arrogou-se o direito de decidir quem é humano e quem não é humano, quem deve viver e quem deve ser morto, afirma-se então que a dignidade humana é princípio básico e axioma de qualquer ordenamento jurídico. A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz  em seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. No art. 1º., que “todas as pessoas nascem livres iguais em dignidade e direitos”

   Na Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, a dignidade humana aparece pela primeira vez  como princípio constitucional. Hoje não se concebe um ordenamento democrático que não o contemple.

   (ii) A Humanidade como sujeito de direitos.  Pode-se ver aí um  desenvolvimento dialético histórico. Nas Declarações do século XVIII, o sujeito de direitos é o indivíduo considerado isoladamente. Com as lutas sociais dos séculos XIX e XX, aparece um sujeito de direitos coletivo: os trabalhadores. Após a II Guerra Mundial, num terceiro momento, é a própria Humanidade que se considera como sujeito de direitos. Isto nos confere uma tripla e indivísivel proteção jurídica: como indivíduos, como membros de uma coletividade e como membros da Humanidade. A ideia de que a Humanidade é sujeito de direitos condensa esses três aspectos.

   Tem-se duas consequências a partir desses pontos: certas condutas deveriam ser caracterizadas como crimes contra a Humanidade e a soberania estatal não podia mais ser  absoluta.

   Os crimes contra a Humanidade têm aspectos imanentes. Não são passíveis de autoanistia e são imprescritíveis.

   As razões são  muito claras. Se o perpetrador ou ordenador do crime contra a Humanidade puder subtrair-se de suas consequências o conceito desaba.  Sua ofensividade é intolerável  ao provocar imenso sofrimento para coletividades, grupos, minorias, assassinatos em massa  e o risco de comprometimento da Humanidade em sua inteireza. Por isso o tempo é indiferente.                     

    Todas estas considerações podem ser sintetizadas na ideia de que há dois paradigmas: o positivista e o  da dignidade humana. Ambos convivem no nosso tempo. O primeiro ainda como resquício intolerável do passado.  O segundo assenta-se no conceito de  inviolabilidade do ser humano.

   Crimes contra a Humanidade  persistem. No período da ditadura militar o Estado brasileiro torturou e  matou. Não foram acontecimentos fortuitos. Foram crimes contra a Humanidade porque constituíam   uma política de Estado.

   Segundo a Lei de Anistia, confirmada pela mais alta corte do país, seus ordenadores  e perpetradores estão protegidos.  O STF fundamentou sua decisão, basicamente,  em um alegado grande acordo político.

   Fácil ver como essa decisão segue o paradigma positivista. A norma que anistiou torturadores e assassinos é reconhecida como válida e ganha eficácia como mera expressão de vontade política à qual se confere juridicidade. O grande acordo é uma falácia histórica, já suficientemente desmascarada. Ainda que tivesse havido, não se poderia neste momento reconhecer-lhe qualquer validade diante da caracterização  de crime contra a Humanidade, do mesmo modo como nenhum alemão,  após a derrocada do nazismo, se entenderia sujeito à eficácia do ordenamento jurídico do III Reich.

   A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos expressa o paradigma da dignidade humana. Afirma que não vale a autoanistia, que ordenadores de  crimes contra a Humanidade não podem perdoar-se a si mesmos, que  não se pode praticar crimes dessa natureza sem qualquer consequência, bastando para apagá-los o fato de serem cometidos  sob  ordens e proteção do Estado.

   São dois caminhos: o da civilização e o da barbárie. Ou a  moderna construção do Direito, à qual estamos vinculados, seja pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, seja por força do princípio constitucional da dignidade humana, ou a ideia de que qualquer coisa pode ser jurídica, inclusive a barbárie, se conveniências políticas assim o determinarem.

  Por ora temos a Comissão da Verdade. Esperamos que, ao trazer para a luz do dia tudo o que ocorreu durante a ditadura militar, torne moralmente insuportável dar validade à Lei da Anistia e crie condições necessárias para o acatamento pelo Estado brasileiro da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

   O Brasil tem um encontro marcado com a civilização. Se não comparecermos, transmitiremos às futuras gerações, mais uma vez, a possibilidade da barbárie.

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1. Bobbio, O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito

2. Gustav Radbruch, jusfilósofo alemão, reviu após a guerra sua concepção positivista, expressando-se assim: “O Positivismo deixou a Jurisprudência e a Magistratura alemãs inertes diante daquelas crueldades e arbitrariedades plasmadas pelos governantes da hora em forma de lei” (Introdução à Filosofia do Direito).